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Jornalismo periférico: conheça duas agências que rompem com estigmas da periferia

Em artigo da Revista Alterjor, pesquisadoras expõem importância do jornalismo periférico para a democratização da informação e registro histórico de bairros periféricos

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Crimes, carência e desastres já foram os únicos temas para retratar a periferia. Ao longo de décadas, a mídia tradicional cobriu o que havia de pior nos bairros afastados do centro e isso criou uma visão estereotipada da periferia e dos sujeitos periféricos, tornando-os sinônimo de violência. Entretanto, o avanço da internet e das redes deu espaço para iniciativas independentes de jornalismo que, partindo da própria periferia, transformam seus estigmas e contam a história de bairros pouco lembrados pela mídia. 

O chamado jornalismo periférico apresenta um olhar inclusivo e autêntico desses bairros. Nesse olhar, os moradores das periferias são os protagonistas de histórias que interessam também a um público periférico. Além disso, busca-se pautar assuntos úteis para a comunidade, ouvir sua opinião e dar voz às pessoas que, vivendo à margem dos centros urbanos, ficaram também às margens da cobertura jornalística. O caminho dessas agências, porém, não é simples, pois elas enfrentam dificuldades, por um lado, em atrair público e, por outro, em continuar existindo e se custeando sem a estrutura financeira de uma grande empresa. 

Buscando discutir o jornalismo periférico em seus meios de operação e subsistência, as pesquisadoras Jaqueline Lemos, doutora em Ciências da Comunicação pela ECA-USP e Bruna Santos, graduada em Jornalismo pela Universidade São Judas, realizaram a pesquisa que resultou no artigo Jornalismo periférico: as iniciativas independentes da “Agência Mural” e “Periferia em Movimento”, publicado na mais nova edição da Revista AlterJor. As duas iniciativas de jornalismo periférico que atuam na cidade de São Paulo foram analisadas por meio de entrevistas com seus membros ativos.

Jornalismo tradicional, alternativo e periférico: qual é a diferença?

O jornalismo tradicional, explicam as autoras, é o que vemos nos jornais impressos, no rádio, na TV e, mais recentemente, em sites e nas redes sociais. Esse jornalismo segue as formas e perspectivas tradicionais do fazer midiático, podendo consolidar estereótipos ou reforçar os existentes.

Já o jornalismo alternativo é uma forma de produção e disseminação de notícias que busca oferecer uma visão crítica e fugir dos padrões da mídia tradicional. Assim, temas e perspectivas negligenciadas pela grande mídia são abordados por equipes pequenas e independentes. No Brasil, esse tipo de jornalismo começou com a imprensa alternativa na ditadura militar brasileira e foi impulsionado pelo surgimento da internet e das redes sociais.

O jornalismo periférico, por sua vez, decorre do alternativo e caracteriza-se por ser produzido por e para pessoas das periferias. Jaqueline e Bruna explicam que, para isso, as agências evitam matérias que reforçam os estereótipos de violência, dando atenção às histórias de pessoas e bairros periféricos, além de eventos de interesse para o público da região.

 

 

Agência Mural: moradores das periferias não são “coitados”

 

"O jornalismo periférico é um fenômeno que vai além de uma tendência passageira ou do simples relato de notícias, ele é uma resposta natural à necessidade de pluralidade de vozes e olhares na mídia."

Jaqueline Lemos e Bruna Santos, pesquisadoras

 

A Agência Mural é um coletivo de comunicação dedicado a cobrir as notícias e acontecimentos dos bairros periféricos de São Paulo. O projeto começou como um blog, em 2010, e já conta com cerca de 50 correspondentes locais, ou “muralistas”, todos pessoas periféricas. “Cada correspondente”, explicam Jaqueline e Bruna, “é responsável por cobrir as notícias e acontecimentos de uma determinada região ou cidade, na qual possuem maior afinidade e conhecimento”. 

O que distingue agências como a Mural do jornalismo tradicional, de acordo com as autoras do artigo, é a sua preocupação em refletir a diversidade da periferia tanto nas pautas quanto na própria equipe. Segundo os últimos dados coletados pela agência, 55% da equipe da Mural é composta por mulheres, com 56,5% de participantes negros e pardos. Além disso, eles vêm de formações diversas, desde comunicação até economia, com idades diversas e “diferentes credos e religiões, etnias e raças, gênero e orientação sexual”. 

Print de página do instagram com nove quadros coloridos dispostos em três fileiras e três colunas. Cada quadro traz uma imagem digital relacionada ao tópico abordado, com textos em branco na parte superior indicando o título da matéria. As imagens são de pessoas pretas e de pessoa indígena. Os títulos falam sobre programas sociais, cultura da periferia, religiões de matriz africanas, entre outros temas.
Atualmente a Agência Mural tem 31 mil seguidores e 29 mil curtidas em sua página no Facebook e 26,1 mil seguidores no Instagram, com um público alvo majoritariamente feminino e jovem. Imagem: Reprodução/Agência Mural.

 

Em suas matérias, a Mural cobre desde problemas de infraestrutura urbana até festas tradicionais das periferias, sempre na intenção de dar visibilidade às narrativas periféricas e protagonismo aos seus moradores. Para as pesquisadoras, a agência tem uma visão clara dos impactos que o projeto pode gerar, seja “destacando uma iniciativa, um trabalho inspirador ou a necessidade de políticas públicas para melhorar uma determinada região”. 

O impacto mais imediato do trabalho da agência, contudo, é o registro histórico de regiões periféricas. Muitos bairros pautados pela Mural só passaram a aparecer na mídia a partir da atuação da agência, sendo completamente ignorados pela mídia tradicional até então. 

A cobertura da Agência Mural segue 10 princípios no intuito de evitar a reprodução de estereótipos ligados à periferia: 

  • Tomar cuidado com o sensacionalismo e com clichês; 
  • Evitar lugares e falas comuns sobre moradores da periferia; 
  • Não tentar comprovar suas próprias teses; 
  • Não subestimar a capacidade política dos moradores; 
  • Lembrar que os moradores da periferia não são “coitados”; 
  • A periferia não é só violência e escassez de infraestrutura; 
  • Não esquecer que os bairros periféricos fazem parte da cidade como qualquer outro bairro; 
  • Não dar ouvidos somente para as fontes oficiais;
  • Ter em mente que na periferia há níveis de renda distintos.

Todos os colaboradores da agência são remunerados e, atualmente, a Mural se mantém por meio de financiamento coletivo, parcerias com empresas e novos produtos, como o Podcast Próxima Parada. Ainda assim, as pesquisadoras comentam que a subsistência é um dos principais desafios para agências de comunicação independentes. 

 

Periferia em Movimento: um olhar periférico para as narrativas da periferia

 

"Com o olhar apurado e sensível de um(a) morador(a) favelado(a) e/ou periférico(a), os(as) jornalistas destas iniciativas revelam que aquelas realidades não se resumem à violência, à pobreza e ao tráfico de drogas como historicamente foram retratadas."

Jaqueline Lemos e Bruna Santos, pesquisadoras

 

A agência foi fundada em 2009 como um Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) dos jovens jornalistas Aline Rodrigues, Sueli dos Reis Carneiro e Thiago Borges. Os estudantes perceberam que, ao olhar para os próprios bairros, “não os viam registrados nas mídias da melhor forma”, mencionando o papel da mídia tradicional na reprodução de estereótipos de locais e pessoas periféricas. 

Segundo as pesquisadoras, o objetivo central da agência é ampliar o alcance do jornalismo para todas as esferas da população paulistana, fornecendo conteúdo jornalístico pautado em dar visibilidade “às histórias daqueles que estão na linha de frente na luta pela garantia de direitos em áreas como cultura, saúde, educação, mobilidade, moradia, preservação ambiental, renda e trabalho”. 

A equipe da Periferia em Movimento também é diversa e inclusiva. Atualmente, composta por 12 profissionais, a agência conta com três integrantes transgênero, abrangendo homens, mulheres e pessoas não binárias, quatro pessoas brancas e oito negras. Os membros são das zonas sul, leste e norte de São Paulo. 

Print de página do Instagram com nove imagens dispostas em três fileiras com três imagens cada. As imagens são na sua maioria fotos de homens e mulheres negras e indígenas, sendo que o quadro central é uma arte digital em branco e laranja. Há textos em branco indicando citações ou título das publicações, que falam sobre projetos voltados à periferia, cursinhos periféricos e um festival de cultura indígena, entre outros temas.
A representatividade é um dos aspectos considerados de grande impacto social para a agência. A equipe da Periferia em Movimento, explicam as pesquisadoras, busca possibilitar o acesso das pessoas à informação a partir de suas vivências, perspectivas e territórios. Imagem: reprodução/Periferia em Movimento.

 

O que caracteriza o jornalismo da Periferia em Movimento é a busca por ir além das manchetes superficiais, mergulhando profundamente nas vivências e experiências das comunidades periféricas. Em primeiro lugar,  a equipe adota uma abordagem que considera uma notícia relevante quando envolve personagens periféricos, levando em conta também o interesse do público no tema. Assim, a agência aborda assuntos como desigualdade social, saúde mental e outras temáticas relacionadas às periferias, mas também matérias mais subjetivas, como projeções de futuro e desejos pessoais. Essa abordagem visa combater estereótipos e preconceitos, fornecendo uma variedade de notícias que possam informar e envolver os moradores.

Para além da comunicação, a agência organiza um projeto de educação midiática voltado para jovens da periferia. O projeto oferece cursos, palestras e oficinas de curta, média ou longa duração. “Esses encontros de aprendizagem” – como uma das criadoras da agência descreve – “proporcionam oportunidades para que jovens adquiram vivências e conhecimentos técnicos e desenvolvam uma perspectiva jornalística”.

 

Da produção de conteúdo à transformação social

 

"O jornalismo periférico transcende a mera produção de conteúdo e se torna um agente de transformação social, nos permitindo perceber a importância da relação entre os produtores de comunicação e o território."

Jaqueline Lemos e Bruna Santos, pesquisadoras
 
Imagem digital de pessoa negra de cabelos médios trabalhando em caixa de supermercado. Ela veste camisa marrom claro e avental azul com uma pequena estampa circular amarela. caixa tem um teclado e na esteira estão frutas e embalagens de produtos. Na parte superior da imagem, há uma névoa cinza com um quadro escrito setembro amarelo, a parte inferior da imagem é amarela e tem os dizeres meu ‘emprego está me deixando doente?’.
Segundo um dos posts da Mural, problemas de saúde mental ligados ao trabalho são agravados quando o trabalho é precário. Imagem: reprodução/Agência Mural.

As autoras observam que as agências estudadas se caracterizam por abordar temas locais, muitas vezes fazendo o registro da história dos bairros, sinalizar temáticas importantes para a população da periferia em questão, divulgar a cultura periférica e apresentar serviços úteis para a periferia, como informações sobre programas sociais, cursos ou projetos de capacitação. Dessa forma, “desempenham um papel fundamental para acesso à informação e no fortalecimento do debate público nas comunidades periféricas”.

Além disso, ao dar voz ao cidadão periférico, espaço para pautas de seu interesse, evitando temas já cobertos pela grande mídia, essas agências trabalham para desconstruir estereótipos e promover a inclusão, representatividade e diversidade nos meios de comunicação. Outro ponto destacado pelas autoras é que essas agências valorizam a diversidade tanto nas pautas quanto nas equipes, o que possibilita uma visão plural e inclusiva de espaços e pessoas historicamente negligenciadas. 

 

"Visibilizando pautas, personagens, fontes, que até então eram desconhecidas publicamente, [as agências de jornalismo periférico] geram conhecimentos plurais sobre os diversos Brasis existentes no nosso país e mostram que a cultura periférica e favelada é pura potência, dinâmica em termos econômicos, intelectuais, políticos e artísticos."

Jaqueline Lemos e Bruna Santos, pesquisadoras

 


Revista Alterjor

A Revista Alterjor é uma publicação semestral destinada a professores, estudantes, profissionais e interessados em Jornalismo Popular e Alternativo. A revista aceita submissões de artigos, ensaios, resenhas, entrevistas e reportagens. 

No segundo número de sua 32ª edição, a revista traz um dossiê sobre jornalismo popular e alternativo, com artigos sobre a narrativa de entretenimento na CazéTV, o que jornalistas pensam sobre a cobertura do esporte de mulheres no Brasil, entre outros temas. 

 

 


Imagem de capa: reprodução/Agência Mural.