O luto em tempos de isolamento: o papel dos velórios virtuais na pandemia
Artigo publicado sobre o tema na principal revista científica do Brasil tem co-autoria de dois docentes da ECA
Durante a pandemia de covid-19, com as restrições sanitárias para diminuir a proliferação da doença, hábitos e tradições cotidianas precisaram se adaptar às medidas de distanciamento social. O artigo Prática de memorialização virtual no contexto da pandemia de COVID-19 no Brasil: rito do velório online, publicado na Revista Ciência e Saúde Coletiva, aborda o funcionamento de um deles — o velório.
O trabalho foi assinado por Lucidalva Costa de Freitas, mestre pelo Programa de Pós-graduação em Ciências da Reabilitação da Faculdade de Medicina (FMUSP), com a coautoria de Maria Helena Morgani de Almeida e Marina Piccazzio Perez Batista, docentes ligadas ao mesmo programa da FMUSP. São co-autores também os professores Luiz Alberto Beserra de Farias e Paulo Roberto Nassar de Oliveira, ambos do Departamento de Relações Públicas, Propaganda e Turismo (CRP). O encontro dos cinco pesquisadores ocorreu na disciplina Memórias Rituais, Narrativas da Experiência em Comunicação, ligada ao Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação (PPGCOM) e lecionada por Luiz e Paulo.
Velórios virtuais
No dia 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde (OMS) decretou que o surto de covid-19, iniciado alguns meses antes, já podia ser caracterizado como uma pandemia. Duas semanas depois, o Brasil tinha 114 óbitos causados pela doença e, em dois anos, o país viria a acumular mais de 600 mil. No total, em cinco anos, o número passou de 716 mil mortes por covid-19.
A data desse decreto da OMS marcou o início da coleta de dados para o trabalho. Essa coleta ocorreu por meio da ferramenta de pesquisa avançada do Google, que permite a busca com filtros específicos. Para a elaboração do estudo, foi realizado um levantamento de matérias jornalísticas publicadas no Brasil entre a data de início da pandemia e 27 de julho de 2021 — quando houve a primeira curva de redução no número de óbitos por covid-19. Utilizando palavras-chave relacionadas às práticas fúnebres virtuais, os pesquisadores chegaram a 65 matérias que abordavam a temática, que foram analisadas como documentos principais no artigo.
Com as restrições de biossegurança do isolamento social, o luto foi prejudicado pela impossibilidade da despedida dos entes queridos. À época, os protocolos sanitários obrigavam que os corpos fossem lacrados, colocados em caixões fechados ainda no hospital e enviados diretamente para o cemitério. Além disso, a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) recomendava que os corpos fossem cremados, o que levou a um aumento de 44% nessas atividades. O artigo aponta que todo esse processo pós-morte “exigia uma rapidez fora do habitual” e que “os sofrimentos psíquicos individuais e coletivos na pandemia foram agravados pelo aumento exponencial de mortes de forma abrupta e pela impossibilidade de um senso de realidade na despedida”.
Sobre os rituais de memorialização, o trabalho esclarece que “ver o corpo físico da pessoa, ter familiares e amigos presentes na cerimônia, poder se despedir configuram elementos importantes para o processo de elaboração da perda e sua ausência dificulta a assimilação da perda”. As famílias enlutadas ouvidas nas matérias coletadas para a pesquisa relataram que as restrições sanitárias, apesar de compreensíveis, “implicavam na perda da concretude da morte em função de não poder ver o corpo”. A realização virtual dos velórios, nesse sentido, “foi uma forma de ressignificar esse processo”.
“O ato simbólico do velar tem o potencial de contribuir na organização das emoções e no processo do morrer e no luto.”
Lucidalva Costa de Freitas, Paulo Roberto Nassar de Oliveira, Luiz Alberto de Farias, Maria Helena Morgani de Almeida e Marina Picazzio Perez Batista, pesquisadores
Os especialistas ouvidos nas matérias apontavam a necessidade de usar recursos de comunicação como alternativas para unir as pessoas enlutadas. Isso aconteceu, por exemplo, por meio de lives em redes sociais para missas de sétimo dia de óbito e a transmissão de enterros e velórios por meio de plataformas digitais. O estudo constatou que a realização de velórios e homenagens virtuais já era oferecida por empresas funerárias desde 2001, mas como um serviço extra dedicado a familiares e amigos que moravam longe. Já no período pandêmico, devido às medidas de biossegurança, “houve aumento da demanda por estes serviços para compensar as dificuldades e limitações às práticas do velório presencial” e o serviço se tornou uma oferta obrigatória das funerárias.
“Foi gratificante levar para dentro do estudo desenvolvido na área de Saúde a interface Comunicação/Antropologia. Foram quatro anos de trabalho, que rendeu um Mestrado e um Doutorado [de Lucidalva]”
Paulo Roberto Nassar, professor do Departamento de Relações Públicas, Propaganda e Turismo e co-autor do artigo
Segundo o trabalho, os velórios virtuais “oportunizaram à comunidade, aos familiares e amigos de perto e de longe se despedirem de forma segura do ente querido”. Além disso, esse modelo online também tinha o objetivo de permitir a participação de familiares que moravam longe nas cerimônias de despedida por meio das tecnologias de informação e comunicação. Além de expandir a territorialidade dos ritos, essas tecnologias também permitiram armazenar as gravações dos velórios por mais tempo, “enquanto outrora os ritos pertenciam apenas à memória daqueles que o vivenciavam e eram repassadas às gerações”.
O artigo ainda aponta que, com a realocação dos ritos do meio presencial para o virtual, o papel de condução dessas cerimônias é ampliado. O que no presencial é mais restrito aos profissionais das instituições realizadoras dos ritos, como líderes religiosos e cerimonialistas fúnebres, no online passa a ser exercido, também, pelos próprios enlutados e sua rede de apoio.
Revista Ciência e Saúde Coletiva
A Revista Ciência e Saúde Coletiva é um periódico organizado pela Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e atualmente é a maior revista científica do Brasil, segundo ranking do Google Acadêmico. Desde 1996, a revista publica textos relacionados às temáticas de alimentação, saúde mental e outros temas relevantes à saúde pública, bem como à demografia de doenças e transtornos de saúde no Brasil.