Pesquisa mostra o papel das editoras independentes na publicação de livros LGBTQIAP+

A tese mostra quem faz esse trabalho e o que está por trás da escolha de abrir uma editora voltada para o nicho

Comunidade

Páginas coloridas: editoras independentes pela diversidade investiga editoras que publicam livros de temática LGBTQIAP+ e o papel do profissional do livro. Para o autor, Alex Francisco, a tese é um “pontapé inicial” para abrir a discussão sobre “como a democratização do processo de produção do livro e uma economia nova do livro devem ser pensadas localizando grupos que usam a literatura como instrumento de representatividade”. 

A tese foi defendida no começo de 2022 para a obtenção do título de mestre pelo Programa de Pós-graduação em Ciências da Comunicação (PPGCOM) da ECA USP. Jornalista por formação, hoje Francisco leciona e é coordenador dos cursos de Comunicação na Universidade de Guarulhos (UNG).

Francisco explica que as editoras que publicam exclusivamente conteúdo de temática LGBTQIAP+ normalmente são criadas por pessoas que se viam invisibilizadas pelas grandes casas editoriais e por um sistema econômico do livro “que tem outros objetivos e focos”.

 

“É claro que o objetivo dessa interpretação não é dizer que existe um jeito melhor ou pior de se produzir livro no país, mas mostrar uma corrente criativa muito grande de pessoas que não encontram um espaço comercial como farda dos seus corpos, dos seus desejos, das suas vontades, da sua sexualidade, mas que conseguem abordar temas que são urgentes para uma comunidade por meio do livro.”

 

Alex Francisco, professor e pesquisador

 

O autor chama a atenção para o fato de que, apesar de vivermos em um país muito intolerante com pessoas LGBTQIAP+ e com baixos índices de leitura, esses agentes comunicadores conseguem “romper a bolha” e fazer circular histórias sobre diversidade sexual.


 

Precursores e o mercado editorial LGBTQIAP+ brasileiro

 

A capa de um jornal envelhecido. Na parte de cima está escrito o título "LAMPIÃO". Abaixo, a manchete "A MATANÇA DOS HOMOSSEXUAIS". Mais abaixo, em um fundo amarelo, lê-se as manchetes da edição.
 Edição do jornal Lampião da Esquina. Imagem: Reprodução/Wikipedia

A pesquisa mapeou ao todo 14 editoras independentes e quatro selos editoriais dedicados à publicação de literatura LGBTQIAP+. Os selos editoriais pertenciam a editoras de diferentes portes que não publicavam exclusivamente conteúdo LGBTQIAP+. A seleção representa uma tentativa ambiciosa de identificar todas as editoras que “se fizeram visíveis” voltadas para o nicho no Brasil.

A lista recupera nomes marcantes como o Lampião da Esquina. Publicado  durante a ditadura, o Lampião da Esquina foi um jornal específico para o público LGBTQIAP+. Em meio ao cenário de censura e perseguição à imprensa, publicava manchetes sobre temas como relacionamentos homoeróticos, sexualidade, transexualidade e denunciava violências cometidas contra a comunidade. A tese defende o Lampião como a primeira editora voltada para o nicho, apesar dessa não ser sua principal atividade, porque o veículo indicava livros voltados para o público LGBTQIAP+, publicados e muitas vezes escritos pelos colaboradores do jornal.

O trabalho identificou que, no momento da conclusão da pesquisa, 14 (77,8%) das 18 editoras e selos investigados seguiam em atividade. Outro dado levantado é que, de todas as casas editoriais ativas, 12 (66,7%) são dirigidas por mulheres.

Francisco comenta que é possível traçar um perfil dessas mulheres que encabeçam o mercado editorial independente de literatura voltada para o público LGBTQIAP+. “São mulheres lésbicas ou com relações homoafetivas, que além de atuarem como editoras possuem um trabalho paralelo e que, como as mulheres costumam fazer hoje, executam um acúmulo de tarefas”.

O trabalho se detém a investigar com mais atenção as editoras Vira LetraPEL e Dita Livros, escolhidas por serem as editoras ativas no estado de São Paulo. As três foram criadas e são mantidas por mulheres.

Francisco explica que essas editoras priorizam dar visibilidade para os livros sobre temática LGBTQIAP+, deixando o lucro em segundo plano. O objetivo não é necessariamente o sucesso editorial, mas viabilizar a publicação das obras com remunerações justas para os escritores, revisores, capistas e outros profissionais que atuam na produção do livro — muitos deles também LGBTQIAP+ ou apoiadores da causa.

Na foto há duas pessoas. À esquerda, Paula Curi, uma mulher branca, de cabelo grisalho e curto. Sorri, veste uma camiseta preta, colares, brincos e um de seus braços expõe tatuagens. A sua direita, Elvis Stronger, um homem negro de cabelo curto e barba pretos. Sorri, usa um casaco com estampas e carrega um crachá com as cores do arco-íris onde é possível ler "DIRETORIA" e "PARADA SP", além do seu nome.
Paula Curi e Elvis Stronger, autor publicado pela Editora PEL, na Feira Cultural LGBT da Parada. A tese de Francisco ressalta a importância desses eventos para a captação de novos leitores. Imagem: Reprodução/Instagram da Editora PEL

A editora Vira Letra só publica histórias de mulheres lésbicas com finais felizes. “Existe toda uma literatura que sempre suicida, pune os homossexuais pelas suas relações”, explica Francisco. Manuela Neves, criadora da editora, busca quebrar essa tradição.

A gestão de uma editora voltada para o público LGBTQIAP+ também passa por escolhas de contratação. A Dita Livros, da Luciana Benatti, é voltada para o público feminino e só contrata profissionais mulheres. Já a PEL, da Paula Curi, contrata simpatizantes e membros da causa LGBTQIAP+.
 

 

Literatura LGBTQIAP+ e o papel do editor

 

Para Francisco, é difícil definir o que é uma Literatura LGBTQIAP+.

 

“O que pode ser considerado uma literatura de temática LGBTQIAP+ ou pela diversidade? É o personagem principal ser LGBTQIAP+? É a história falar sobre isso? Se tem um personagem LGBTQIAP+ na história, pode ser considerado?”

 

Alex Francisco, professor e pesquisador

 

Esse conflito também está presente quando tentamos definir um “cânone” desse tipo de literatura. Apesar dessa discussão estar mais presente nos estudos literários do que em sua área de estudo, Francisco cita o caso de Riobaldo e Diadorim em Grande Sertão: Veredas, de Guimarães Rosa, visto por muitos críticos como um exemplo de representação homoafetiva na literatura clássica brasileira.

A sigla LGBTQIAP+
 

A sigla surgiu inicialmente como LGB, por volta dos anos 80. Nos anos 90, popularizou-se a versão LGBT e de lá para cá novas letras incorporam a sigla. O L representa mulheres lésbicas. O G, homens gays. O B representa bissexuais, pessoas que se atraem por mais de um sexo. O T, travestis e transexuais. O Q significa queer, pessoas que não se encaixam em padrões cisnormativos e heteronormativos. O I, intersexo, pessoas que nascem com características físicas masculinas e femininas. O A engloba pessoas que não sentem atração sexual (assexuais) ou romântica (arromânticas) por nenhum sexo. O P se refere a pessoas pansexuais, que sentem atração por todos os gêneros ou independente do gênero. O + inclui todas outras possibilidades de atração sexual, gênero e expressão de gênero.

Segundo o autor da tese, a definição do que é essa literatura pela diversidade também é influenciada pelos profissionais do livro. “Os editores são responsáveis por materializar aquilo que a história vai guardar como uma literatura LGBTQIAP+ daquela época".

"O profissional do livro é um mediador e tem uma responsabilidade social muito grande a partir do momento que ele decide publicar determinadas temáticas. Mas precisamos também entendê-lo como um profissional que é transpassado por diversas questões”, chama a atenção. Ao mesmo tempo que ativista, esse profissional precisa garantir a manutenção da editora.

Para continuar de pé, essas editoras precisam criar algumas estratégias de venda. Francisco conta que algumas dessas editoras abrem a pré-venda de livros, esperam ela ter sucesso e usam esse dinheiro para financiar a primeira tiragem. Outra estratégia importante é a manutenção de uma comunidade de clientes que acompanham o trabalho da editora.

Diferente do que acontece em grandes grupos editoriais, as editoras-chefes dessas marcas independentes costumam ser conhecidas pelo público. “Elas que estão nas feiras, que vão para os eventos, que fazem as lives… elas estão muito mais presentes, muitas vezes sobrepondo o próprio nome da editora ou dos autores”, explica. Para o autor, é possível que os leitores comprem os livros exatamente por causa das editoras-chefes.

 

 


Imagem da capa: Reprodução/Wikimedia Commons