Entidade dedicada a estudos sobre audiovisual premia duas pesquisas da ECA

Lívia Perez e Renato Trevizano ganharam os prêmios de melhor tese de doutorado e melhor dissertação de mestrado, respectivamente
 

 

Vida acadêmica

A Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema e Audiovisual (Socine) divulgou os resultados do Prêmio Socine de Teses, Dissertações e Trabalhos de Conclusão de Mestrado e Doutorado 2023 no último dia 26 de outubro, e entre eles estão dois pesquisadores ecanos: Lívia Perez e Renato Trevizano. A cerimônia de premiação ocorreu no dia 8 de novembro, durante o XXVI Encontro Socine, na Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila), em Foz do Iguaçu.
 

Re-reconhecimento da cineasta Norma Bahia Pontes

Lívia Perez, cineasta, pesquisadora e professora adjunta do departamento de Film and Digital Media da Universidade da Califórnia, foi a vencedora da Melhor Produção – Nível Doutorado, com sua tese Encontros e reencontros com Norma Bahia Pontes: realizações, deslocamentos e interlocuções de uma cineasta, videomaker e ensaísta. Sua pesquisa foi desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais (PPGMPA), de 2017 a 2022, e orientada pela professora Esther Hamburguer

Foto de Lívia Perez, uma mulher branca, de cabelos lisos, longos e castanhos, vestindo uma blusa bege.
Foto de Lívia Perez. Imagem: Reprodução/ Instagram

Durante a sua graduação e mestrado, Lívia nunca tinha escutado o nome de Norma Bahia Pontes. O foco de sua pesquisa, inicialmente, era mulheres diretoras no audiovisual brasileiro. Não apenas mulheres contemporâneas, “mas mulheres de outras épocas em que eu pudesse me inspirar”. Ao entrar em contato com Rita Moreira, cineasta brasileira nascida em 1944 e autora de diversos documentários, descobriu DVDs que ela havia gravado com Norma, que havia sido sua companheira

Rita e Norma foram pioneiras na documentação do movimento feminista lésbico em Nova Iorque nos anos 1970, quando gravaram vídeo-documentários como Lesbian Mothers e She Has a Beard. Lívia conta que alguns artigos e livros já citavam Norma, mas “não se aprofundavam em quem tinha sido a Norma”. Depois deste encontro com Rita, decidiu mudar o rumo de sua pesquisa. 

A pesquisadora tinha em mãos, agora, uma cópia do primeiro curta-metragem de Norma: Os Antilhenses, fornecido por Rita. Se tratava de uma peça raríssima, um filme em 16mm que falava sobre o racismo sofrido pelos imigrantes das Antilhas — também conhecido como Caribe — na cidade de Paris e seus impactos subjetivos, como efeitos na saúde mental. Lívia revelou e digitalizou este filme que seria o seu primeiro contato direto com a cineasta. 

Norma era uma mulher lésbica, feminista, militante e cineasta, nascida em Salvador, em 1941. Era muito próxima do Cinema Novo.
 

Foto de fitas de filme sobre uma mesa branca. No centro, duas mãos brancas seguram um rolo de fita filmográfica com uma etiqueta que diz She has a beard, by Norma Bahia e Rita Moreira, black and white, 30 minutes.
She Has a Beard, em fita 16mm, por Norma e Rita. Imagem: Reprodução/ SwanDive Media

 

Além disso, a cineasta também era voz do cinema diaspórico, lançando Os Antilhenses em 1966, e fez seu último filme, em 1988, sobre os 100 anos de abolição da escravidão e sobre o movimento negro no Brasil, chamado A Cor da Terra. Também organizou, ao lado de Rita, o Clit (Collective Lesbian International Terrorrists) em Nova Iorque, nos anos 70, publicando manifestos alternativos na imprensa dos EUA.

Mesmo sendo uma figura de destaque nacional e internacional, um dos temas abordados na tese de Lívia é a negligência e falta de memória sobre o legado de Norma. Isso ocorre “tanto pelas pessoas que acabaram não lembrando do nome dela e acabam não passando essa história pra frente, como pelas dificuldades que a gente tem de preservação do nosso patrimônio audiovisual”. Além disso, ela também era uma mulher lésbica, feminista, que inovou o projeto cinepolítico brasileiro, e isso é uma expriência coletiva de mulheres cineastas latino-americanas, segundo Lívia. “Isso mostra muito da memória (ou da falta de memória) que a gente tem no audiovisual”. 

 

Foto, a partir do alto, de uma pessoa segurando e observando uma fotografia preto e branco em uma mesa retangular branca sobre a qual estão outras fotografias preto e branco, mais escuras. A pessoa tem cabelos escuros, veste camisa de mangas longas azuis e tem a pele clara. Com as duas mãos, ela segura  uma foto do rosto de Norma Bahia, uma pessoa de pele clara e cabelos curtos escuros.
Lívia teve acesso a fotografias de Norma tempos depois de conhecê-la através de suas obras. Imagem: Reprodução/ SwanDive Media

 

“Até a minha pesquisa, a gente sabia o nome dela, mas a gente não sabia mais nada… por meses eu fiquei pesquisando os textos [da Norma]. Eu fiquei lendo, tentando entender a subjetividade, quem era aquela mulher. Eu não conseguia ter acesso a uma foto, né? Não conseguia saber o rosto dela. A Rita tinha uma foto que elas estavam de perfil, mas não existiam fotos disponíveis” 

Lívia Perez, pesquisadora e cineasta

 

Lívia percebeu nas entrevistas diferenças no modo como mulheres e homens lembravam de Norma, com a presença, entre os homens, de um "tom paternalista”.

 

Foto de Esther Hamburguer segurando o certificado de premiação da Socine. Esther é uma mulher branca, de cabelos médios, castanhos e um pouco grisalhos. Ela usa óculos, relógio de pulso, pulseiras, colares e blusa regata preta. Em segundo plano, está uma mesa com toalha azul e cadeiras pretas. Ao fundo, em uma parede branca, estão projetadas informações sobre a premiada, Lívia Perez, e sua pesquisa.
A orientadora do doutorado premiado, Esther Hamburguer, recebeu o certificado em nome de Lívia, que não pôde comparecer à cerimônia. Imagem: Reprodução/ Socine.

 

Ao saber que tinha sido premiada, a pesquisadora diz que ficou muito feliz.  O Prêmio consiste em um certificado, um salário mínimo em dinheiro e a publicação da tese em formato e-book. “É um reconhecimento não só para mim, mas acho que pra Norma, pra figura da Norma, pra Norma enquanto diretora. A partir de agora, ela será reconhecida na história do audiovisual brasileiro. Isso foi muito gratificante”.
 

O cinema onde o religioso e o queer se encontram

Renato Trevizano, graduado e mestre pela ECA, foi o vencedor da Melhor Produção – Nível Mestrado, com a sua dissertação Os estranhos corpos de Cristo: reflexões sobre mito, cinema e arte queer a partir de Pasolini, Jarman e Rodrigues. Sua pesquisa foi desenvolvida no PPGMPA, de 2019 a 2022, e orientada pela professora Cecília Antakly de Mello

A dissertação de Renato procura entender a relação dos corpos queer dentro da religiosidade judaico-cristã  brasileira. Para ele, essa questão está presente no exercício de controle e domínio sobre os corpos e desejos. “A gente sabe que as implicações dessa intersecção entre sexualidade e religiosidade muitas vezes vem pela chave da opressão, da proibição, e muitas vezes em perseguições oficiais”, comenta. 

Foto de Renato Trevizano dos Santos segurando um microfone em frente a um palanque. Renato é um homem branco, de cabelo raspado, castanho e barba. Ele veste uma camiseta preta com traços brancos, usa um alargador na orelha e óculos de armação preta e quadrada. Ao fundo, há uma parede branca e parte de um pôster azul.
 Renato durante a premiação. Imagem: Reprodução/ Socine

Em 2018, ano de escolha do tema e do processo seletivo para o seu mestrado, foi período de eleições presidenciais, e o governo eleito se pautava muito em  questões religiosas. “Tinha tanta coisa acontecendo em relação à religião e aos corpos LGBTs no Brasil... por que não olhar pra isso?”, comenta. Um dos eventos que menciona é a censura da peça Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu, que era protagonizada por Renata de Carvalho, uma mulher trans. As reações transfóbicas foram motivo para a censura oficial por outras prefeituras e governos. Segundo ele, “não foi só uma ocorrência”. 

Além deste episódio, Renato também cita a vinda de Judith Butler, filósofa estadunidense, queer e feminista, à cidade de São Paulo, em 2017. Ela veio apresentar uma conferência sobre os impasses sofridos pela democracia contemporânea frente ao autoritarismo, e foi atacada, devido aos seus estudos de gênero, por manifestantes ultraconservadores, que chegaram a queimar uma boneca de bruxa representando a teórica. Renato relembra da situação como um eco da Idade Média. “Num primeiro momento era até ridículo, risível. De repente, se tornou preocupante”, relata.

Tudo isso o levou a pensar que a sociedade brasileira está numa “encruzilhada entre o religioso e o queer”. Ao se inscrever no mestrado, pensou “tá tudo isso acontecendo aqui do lado, eu tô no meio disso. Então, porque não pensar mais sistematicamente, teoricamente, sobre isso?”. Ele queria causar um eco no presente, intervir de algum modo além de pensar criticamente. 

Através do método de análise fílmica, que consiste em ver, rever e fazer decupagens — divisão e descrição dos planos que compõem um filme — de obras cinematográficas, seu projeto foi tomando forma. Os filmes analisados foram O Evangelho Segundo São Mateus, de Pier Paolo Pasolini (1964), O Jardim, de Derek Jarman (1990) e O Ornitólogo, de João Pedro Rodrigues (2016). Esses filmes foram escolhidos devido à sua temática interseccional direta entre a religião e corpos queer.
 

Cena do filme O Jardim. Duas pessoas brancas, sem camisa, com calças pretas, carregando uma enorme cruz de madeira.
Cena do filme O Jardim, de Derek Jarman. Imagem: Reprodução/ o Jardim

 

Renato comenta que a sua pesquisa tem um olhar cronológico sobre o cinema analisado. Primeiro, um olhar sobre Pasolini dos anos 40 até os anos 70. Segundo, análises sobre Jarman nos anos 70 até os anos 90. No fim, debruçou-se sobre as obras de João Pedro Rodrigues dos anos 2000 até hoje. E assim o fez. 

O pesquisador sentiu muito medo de sofrer represálias pelo tema que escolheu investigar. Conta que mesmo antes de entrar no mestrado já estava com receio: “eu fiquei em crise: porque que eu fui escolher esse tema agora?” Temeu perseguições, tanto públicas como as que atingiram Judith Butler, quanto oficiais, por parte do Governo brasileiro. Porém, a recepção da banca de mestrado e de sua orientadora foi positiva. “Aí eu já respirei aliviado”, conta. 

Contudo, ele não conseguiu, de início, o financiamento de uma agência de fomento para a sua pesquisa. Para realizar sua pesquisa, o cineasta obteve uma bolsa que é fruto de um convênio entre a Universidade Virtual do Estado de São Paulo (Univesp) e a USP.

O Prêmio Socine também veio como um alívio para o pesquisador. Com a conquista de Melhor Produção – Nível Mestrado, Renato conta que sente vontade de continuar a pesquisar sobre cinema e corpos queer em seu doutorado. “Agora acho que eu consigo fazer isso com um pouco mais de segurança e sinto que eu tô num lugar que estou mais confiante”, comenta. Para ele, seu grande prazer é o exercício da pesquisa e a questão queer é inesgotável; novos olhares são sempre possíveis.

 

Foto de Renato e sua orientadora Cecília. Renato e Cecília estão de pé, lado a lado. Renato é um homem branco, de cabelos castanhos claros raspados e barba. Ele veste camisa preta com traços brancos e segura o certificado do seu prêmio em mãos. Cecília é uma mulher branca, com cabelos louros médios. Ela veste camiseta preta e tem um crachá verde e roxo pendurado no pescoço. Em segundo plano, está uma mesa com toalha azul e cadeiras pretas. Ao fundo, há uma parede branca com uma projeção com informações sobre a pesquisa de Renato.
 Renato e sua orientadora, Cecília Antakly de Mello. Imagem: Reprodução/ Socine

 

“Eu acho que é uma vitória pessoal, mas também coletiva nesse sentido enquanto comunidade LGBT e queer dentro dos estudos de cinema no Brasil.”    

Renato Trevizano dos Santos , pesquisador

 

Socine

A Socine, criada em 1996, promove encontros que são espaço de debate e apresentação de estudos e pesquisas recentes do cinema e audiovisual brasileiro. O Encontro ocorre anualmente, com o apoio de órgãos institucionais tais como a Capes, CNPq e Fapesp. Seus sócios são, principalmente, professores e estudantes de pós-graduação, totalizando mais de mil participantes.

 

 


Foto de capa: Montagem com imagens de reprodução/ O Jardim, arquivo pessoal/ Renato Trevizano, reprodução/ Instagram, reprodução/ Vídeo tese de Lívia Perez.