Massacre do Carandiru: trinta anos, zero culpados

Pesquisadora da ECA detectou política institucional que apaga a memória do ocorrido e não se esforça para mudar a situação no presente
 

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Há 30 anos, no dia 2 de outubro de 1992, acontecia a maior chacina até os dias de hoje em um presídio brasileiro - o Massacre do Carandiru. Ainda há controvérsias acerca das origens da rebelião, mas ao que tudo indica, ela começou como uma briga de facções após uma partida de futebol. Sob a alegação de que as coisas tinham fugido do controle, a Tropa de Choque de São Paulo foi ordenada a invadir o Pavilhão 9 do presídio. 

O saldo foi de, ao menos, 111 detentos mortos e mais de 100 feridos. A Polícia, por outro lado, não contabilizou nenhuma perda. A chacina chocou o Brasil e o mundo, tendo escancarado a situação crítica do sistema carcerário. No entanto, a memória desse evento sofreu e ainda sofre com fortes tentativas de apagamento, o que levou Adriana Mariana de Araujo Rodrigues a se debruçar sobre essa questão em sua dissertação de mestrado pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação (PPGCI) da ECA.

 Adriana, que atualmente é doutoranda pelo PPGCI, é graduada em Biblioteconomia pela ECA e em Letras pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências e Humanas (FFLCH). Ela também é bibliotecária da Biblioteca Beth Lobo, do Núcleo de Estudos de Gênero Pagu da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Com o título Carandiru: formas de lembrar, maneiras de esquecer. Informação, memória e esquecimento, sua dissertação, defendida no ano passado, buscou mostrar como e através de quais mecanismos se dá essa política de esquecimento deliberado do passado. 

 

A memória do Carandiru
 

10 anos depois do massacre, a Casa de Detenção de São Paulo, mais conhecida como Carandiru, encerrava suas atividades e, tempos depois, teria sua estrutura implodida. No lugar foi inaugurado o Parque da Juventude e a Escola Técnica Estadual (Etec) homônima, além da Etec de Artes. Adriana conta que durante pouco mais de um ano chegou a lecionar em uma dessas escolas, o que a levou a algumas reflexões. 

“Sempre me chamou a atenção a forma como essa memória era retratada. Porque o Carandiru foi uma coisa grande, que existiu ali por muitos anos. E, de repente, tudo aquilo era colocado abaixo”, ela diz. Mas antes de esclarecer o que estava sendo feito com o passado do Carandiru, a pesquisadora buscou compreender a memória de modo mais geral. 

A memória, em especial a coletiva, não é algo que pode ser resgatado, pois ela é construída a todo momento, com base em uma narrativa. Como as narrativas são formadas através de informações, as memórias apresentam essa mesma estrutura, característica que conduziu Adriana a uma abordagem pelo escopo da Ciência da Informação, algo ainda raro, segundo ela. Por fim, as narrativas são um meio muito importante para convencer as pessoas sobre um determinado ponto. 

No caso do Carandiru, o Governo do Estado de São Paulo tenta lavar suas mãos da responsabilidade que possui frente às vítimas, ex-presidiários, familiares e sociedade através do apagamento. Para o Estado, não é vantajoso que o passado seja lembrado, pois isso significa a evidência da culpa e da percepção de que o cenário atual é o mesmo daquela época. Assim, criou-se uma política que faz de tudo para depositar a verdade debaixo do tapete. 
 

Foto aérea de centenas de presidiários em um pátio do Carandiru, a maioria negros, sentados de costas e com as mãos por trás da cabeça. Atrás deles, outros presos encontram-se deitados de barriga para o chão, com as mãos na mesma posição. Todos eles estão apenas de cueca. Algumas dezenas de policiais encontram-se ao redor dos homens. Muito lixo está espalhado por todo o canto.
Antes um presídio modelo, o Carandiru foi passando por um processo de sucateamento até chegar a uma absurda superlotação. Imagem: Reprodução/ José Luiz da Conceição - Arquivo O Globo 
 
 
Política de apagamento x memória como resistência
 

Adriana empreendeu uma ampla pesquisa de campo, na qual teve a oportunidade de visitar, em mais de uma ocasião, o Museu Penitenciário Paulista, também localizado na área do Parque da Juventude. A pesquisadora declara que percebeu a existência de uma diretriz operando ali, com a finalidade de ocultar a real natureza do ocorrido no Carandiru. Ela chega a afirmar que os funcionários não concordavam com a visão expressa pelo órgão, mas tinham que reproduzi-la, já que se tratava de uma orientação institucional. 

Uma das Etecs possui uma biblioteca, mas que também não tem a prerrogativa de preservar a memória do massacre. Essa preocupação, aliás, não se encontra em nenhum dos espaços que substituíram o Carandiru. “Quando você não resolve estruturalmente essas questões, a memória continua a vir à tona. Ali é um espaço mal resolvido, não adianta só dizer ‘eu vou fazer um belo parque para a juventude, escola, biblioteca’, se não tem um trabalho de memória”, afirma a pesquisadora. 

Outro exemplo do apagamento perpetrado pelas instâncias oficiais são as tentativas de mudar o nome da estação da linha azul do metrô, de Carandiru para Parque da Juventude. Adriana encontrou quatro projetos de lei nesse sentido, todos com justificativas que defendiam o esquecimento. Esse esforço em ocultar a memória é muito perigoso, não apenas por esquecer do sofrimento das vítimas. Ao fazer isso, corre-se o risco de que os erros cometidos no passado se repitam no presente. 

No entanto, existem algumas ações que propõem o resgate do genocídio, como o portal Memória Massacre Carandiru, que reúne documentos e materiais para refletir sobre o acontecimento, além de mapear a situação atual do nosso sistema carcerário. Adriana também aponta a arte como meio de não deixar a memória se perder. Um dos exemplos mais famosos é a música Diário de um Detento, do grupo Racionais MC's, que retrata a invasão através do rap. O filme Carandiru, de Hector Babenco, é um outro exemplo citado pela pesquisadora em sua dissertação. 

Ela ressalta que é indispensável haver esse contraponto de narrativas, a fim de que a realidade do passado não acabe sendo, aos poucos, substituída por um simulacro que só beneficia os responsáveis pelo massacre. “Existe muita resistência, ainda bem! Da arte, de instituições, de familiares, de sobreviventes. Para que essa memória não suma, o importante é continuar resistindo”, ela afirma.  

 

Os efeitos do apagamento
 
Foto de um corredor do Carandiru alagado de sangue. Nos cantos, as paredes externas e as portas das celas estão muito sujas e desgastadas. Na esquerda, é possível ver a mão de um presidiário esticada pela janela de uma porta. Ao fundo, é possível divisar dois homens, localizados em uma região mais iluminada do corredor.
Diversos ex-presidiários presentes na ocasião relatam que eram
obrigados a carregar os corpos das vítimas. Imagem: Reprodução 

Atualmente, o Brasil é um dos países com maior número de presidiários e maior superlotação. Em 2019, por exemplo, aconteceu o Massacre do Presídio de Altamira, a maior tragédia depois do Carandiru, com 62 mortos no total. Não é à toa que a polícia brasileira é uma das que mais matam no mundo. Ou seja, ignorar a história do massacre não é um caminho efetivo para que a precariedade da situação carcerária e a violência policial sejam solucionadas. 

 

 

 

“O Carandiru não é coisa do passado, mas, mais do que nunca, é parte das preocupações do presente e de gerações futuras. É uma profusão de feridas abertas, nos corpos de 111 mortos, soterrados sob os destroços da implosão de um presídio, uma mentira escondida sob a grama verde de um belo parque.”

 
Adriana Mariana de Araujo Rodrigues, pesquisadora 

 

 

Ao contrário, tal política se mostra muito eficaz para legitimar as atrocidades que acontecem ainda hoje. Pois ao se propagar uma narrativa deliberadamente amnésica, as ações que ela busca esconder acabam sendo justificadas e até mesmo incentivadas. A prova cabal disso é que nenhum dos responsáveis pela invasão foi preso, apesar de 74 policiais terem sido condenados pelo crime.

Alguns meses atrás, a Comissão de Segurança Pública (CSP) da Câmara dos Deputados aprovou um projeto que concedia anistia a esses policiais condenados. Dias depois, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Luís Roberto Barroso anulou a decisão, mantendo a condenação. Adriana entende que essa atitude da CSP demonstra que o Estado enxerga os autores do massacre como dignos de perdão. E se perdoam o que ocorreu há três décadas, por que não haveriam de perdoar no futuro?

 

 

Foto de capa: Maurício Lima/ Agência Brasil 

 
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