Como arquitetos e designers dos EUA estão transformando museus brasileiros?
Artigo da revista ARS discute os impactos do design de Ralph Appelbaum para a museografia e a cultura nacional
Em dezembro de 2015, um incêndio atingiu três andares e a cobertura do Museu da Língua Portuguesa, causando a morte de um bombeiro. Em 2021, após uma reconstrução que demorou seis anos, o espaço foi reaberto ao público. O edifício, construído em 1867 e localizado na Praça da Luz, no centro de São Paulo, é um dos cartões postais mais antigos da cidade e abriga, desde 2006, um museu que foi pioneiro em unir arquitetura tradicional à tecnologia para contar uma história. Com muita interação digital entre visitante e conteúdo, o Museu da Língua Portuguesa é um dos resultados do trabalho do designer Ralph Appelbaum no Brasil.
O artigo As contribuições de Ralph Appelbaum para a museografia brasileira, escrito por Bianca Manzon Lupo e publicado na Revista ARS em 2024, analisa como o escritório de arquitetura Ralph Appelbaum Associates (RAA) teve um papel importante na construção e transformação de museus em todo o mundo, com enfoque no Brasil.

Novos conceitos de museu
Antes de fundar sua empresa, em 1978, Ralph Appelbaum atuou por muitos anos com o designer industrial Raymond Loewy, criador da garrafa da Coca-Cola. O escritório RAA é especializado em design de museus, atrações turísticas, exposições e ambientes educacionais. Hoje, tem filiais em Londres, Moscou, Berlim, Pequim e Dubai.
O trabalho de Appelbaum se destaca, segundo Bianca, por trazer novos conceitos e tecnologias à museografia tradicional. Museografia, de acordo com o dicionário Michaelis, é o conjunto de técnicas e procedimentos para selecionar, classificar, descrever e catalogar acervos de museus. A proposta do escritório de Appelbaum expande essa definição ao transformar o que é exposto em seus museus, isto é, seu acervo.
Para Appelbaum, a narrativa que será transmitida pelo museu é mais importante do que o acervo em si, pois é necessário contar uma história e garantir que o visitante seja protagonista dentro do espaço expositivo. Para isso, além do museu narrativo, o escritório RAA adotou outros dois conceitos-chave: o design integrador e a exposição-show.
O artigo explica que o design integrador é caracterizado pelo trabalho interdisciplinar e complementar que envolve profissionais de diversas áreas, como curador, designer, arquiteto, museógrafo, historiador, educadores, artistas, cientistas e especialistas em tecnologia e mídia.
Já a exposição-show é o uso de novos materiais, tecnologias, luzes e interatividade para criar a experiência desejada. “Appelbaum cria narrativas com elevada carga de dramaticidade, explorando recursos como o uso de ambientes escurecidos, iluminação teatralizada, efeitos sonoros, projeções audiovisuais, realidade virtual e games”, afirma a autora. Essas técnicas são utilizadas para ampliar e democratizar o acesso ao conhecimento, com o objetivo de tornar mais atrativa uma visita a um museu.
“ O que nós fazemos é transformar essa informação em uma narrativa e depois essa narrativa em uma experiência de imersão. A arquitetura e o design do museu são fundamentais para provocar essa experiência. Museus modernos são mais parecidos com uma peça de teatro, com a diferença de que você pode caminhar pelo palco.”
Ralph Appelbaum, designer de museus
Chegada ao Brasil
Os projetos de Ralph Appelbaum começaram a chegar no Brasil a partir da contratação de seu escritório pela Rede Globo/Fundação Roberto Marinho (FRM). O grupo patrocinou a criação de alguns museus brasileiros voltados para o edutainment, isto é, o entretenimento educativo, que usa ferramentas divertidas como jogos, imagens e músicas para tornar o processo de aprendizado mais envolvente e participativo. As estratégias do escritório RAA foram escolhidas para alcançar esse objetivo no Memorial do Rio Grande do Sul, no Museu do Futebol, no Museu do Amanhã e no Museu da Língua Portuguesa.

Nem todos os projetos foram idealizados integralmente por Appelbaum, mas todos receberam sua consultoria ou participação nas etapas iniciais, que foram posteriormente finalizados por designers e museógrafos brasileiros. Nos casos dos museus do Futebol, da Língua Portuguesa e do Rio Grande do Sul, as propostas expositivas foram criadas a partir de edifícios históricos já existentes e buscaram reunir acervos físicos com projeções audiovisuais integrativas para contar essas histórias.
Já no Museu do Amanhã, o escritório RAA participou da idealização inicial da exposição que seria instalada em um projeto arquitetônico completamente novo. Como esse é um museu voltado para discussões educativas sobre futuro, tecnologia e sustentabilidade, Appelbaum propôs uma narrativa estruturada em torno de cinco perguntas que foram tomadas como premissa para a continuação do projeto: de onde viemos? Quem somos? Onde estamos? Para onde vamos? Como queremos ir?
Segundo o artigo, esses novos museus “vêm contribuindo para a ruptura da concepção tradicional de museu com acervo”. Essas instalações possibilitam o desenvolvimento de experiências relacionadas à museografia audiovisual mediada por novas tecnologias e a reinterpretação de temas ligados à identidade nacional. Essas mudanças significam, para a autora, uma renovação do campo museal brasileiro.
Outros pontos de vista
Em seu artigo, Bianca não se restringe apenas às características e pontos positivos do trabalho de Ralph Appelbaum, especialmente no Brasil, como também traz algumas críticas feitas a ele. Segundo ela, alguns especialistas afirmam que essa teatralização e espetacularização dos museus pode prejudicar a compreensão e o pensamento crítico do visitante, levando-o a uma visão “unilateral e persuasiva” do que é apresentado. Para esses críticos, é preciso "refletir sobre o que não foi mostrado pelas telas touch screen ou pelos shows de luzes”.
Outro ponto levantado é a discussão ética sobre o risco de se monopolizar a forma como histórias são expostas em museus ao redor do mundo a partir de uma única perspectiva de um escritório estadunidense. A autora explica que, apesar da colaboração com profissionais locais, os modelos internacionais permanecem sendo repetidos no Brasil, simplificando ou até mesmo apagando contradições sociais locais e contribuindo para reiterar visões hegemônicas e estereotipadas.
“Torna-se necessário ampliar a reflexão crítica sobre os processos de construção do espaço museológico brasileiro, dadas suas implicações para a construção do patrimônio cultural contemporâneo.”
Bianca Manzon Lupo, arquiteta e pesquisadora

Sobre a autora
Bianca Manzon Lupo é arquiteta e urbanista formada pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU USP), onde também realizou seu mestrado e doutorado. Hoje, é docente na Universidade de Mogi das Cruzes (UMC) e na Universidade Nove de Julho (Uninove). Bianca pesquisa arquitetura de museus e design de exposições, com foco na relação entre museus e tecnologias da comunicação no contexto brasileiro.
Revista ARS
ARS (São Paulo) é uma revista do Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais (PPGAV) da ECA. Publicada em uma edição anual de fluxo contínuo, visa promover o debate sobre a produção artística no mundo contemporâneo, tanto na Universidade como fora dela. A revista publica artigos acadêmicos, ensaios artísticos e traduções.
A edição atual (volume 22) foi publicada em 2024 e conta com participação de dois ecanos nos textos O Mundo como Imagem e a Imagem do Mundo: Fotografando o Google Street View, de coautoria de Lucas Eskinazi, e O tráfego nas fotografias, traduzido por André Leite Coelho.
Acesse a edição da revista ARS (São Paulo) na íntegra.
Imagem de capa: montagem de Maria Eduarda Lameza. Fotos, em sentido horário: Museu do Futebol/Wikimedia Commons; Museu do Amanhã/Wikimedia Commons; Memorial do Rio Grande do Sul/Wikimedia Commons; Museu da Língua Portuguesa/Flickr.