Mesma doença, efeitos desiguais: como favelas, comunidades quilombolas e indígenas lidam com a Covid-19
Professor Ivan Siqueira analisa os desafios trazidos pela pandemia para diferentes segmentos sociais no Brasil

A rotina de todo o planeta foi transformada desde o surgimento da atual pandemia. Comércios e serviços dos mais variados fecharam, escolas e universidades suspenderam aulas presenciais, tornando quase desértica a paisagem de grandes cidades. Por parte das autoridades, discursos expressam o constante embate entre salvar a vida das pessoas, controlar o colapso nos sistemas de saúde e a tentativa de minimizar os impactos negativos na economia. A frase imperativa do momento é “fique em casa”, já que o isolamento social é a principal recomendação da Organização Mundial da Saúde e é a forma mais eficaz para achatar a curva de contaminação, fato comprovado em países que passaram pelo pico da doença antes do Brasil.
Essa medida de prevenção, no entanto, revela a ferida não cicatrizada da estratificação social brasileira: pessoas com menor poder aquisitivo não possuem condições para cumprir o isolamento social. Sem reservas financeiras e vivendo de bicos ou ocupações autônomas na área de serviços, a maior parte dessa população não pode suspender seu trabalho ou adotar o home office. Além disso, as condições precárias de saneamento e habitação impedem o adequado combate ao coronavírus mesmo para aqueles que conseguem se manter em casa. A situação é ainda mais dramática para as pessoas em situação de rua.
Pouco ou nada citadas na cobertura da covid-19, as comunidades indígenas e quilombolas sofrem com a ausência de políticas públicas específicas para enfrentamento da pandemia. Por motivos culturais e econômicos, o isolamento social também representa um grande desafio para essas populações. O contato esporádico ou frequente que algumas dessas comunidades mantêm com pessoas e cidades do entorno é um fator potencial de propagação da doença, ao mesmo tempo que desempenha papel importante para o sustento de seus habitantes.
Na entrevista a seguir, o professor do Departamento de Informação e Cultura (CBD), Ivan Siqueira, comenta as dificuldades enfrentadas por diferentes segmentos sociais do país, assim como suas estratégias de auto-organização diante da crise. Desde 2015, Siqueira é membro do Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial (CNPIR), que propõe políticas para superação da desigualdade social, política e cultural que atinge negros e outros grupos raciais e étnicos da população brasileira.
Os desafios envolvem desinformação e informação elaborada sem considerar a realidade das favelas; as dificuldades financeiras decorrentes da ausência de recursos para arcar com as despesas cotidianas mais elementares. O desafio de não saber o que fazer com as crianças. Por outro lado, algumas favelas têm exibido capacidade de organização – arrecadação e distribuição de alimentos e tentativas visando prevenir a contaminação em massa pela covid-19. Há muita gente ajudando com recursos, donativos e inteligência operacional. Infelizmente, as informações disponíveis indicam que não é essa a realidade nacional.
Comunidades quilombolas e comunidades indígenas têm como características a estruturação da vida em rotinas comunitárias. O conceito de afastamento social, de ficar em casa, não faz sentido pra elas, chegando a ser impraticável em muitas localidades. Se a vida está assentada na divisão das tarefas, do cuidar, da partilha e do contato frequente, como substituir esses gestos e economia repentinamente? No caso de algumas comunidades indígenas há ainda outras questões: linguísticas, culturais, costumes. Nesta pandemia, desconheço políticas governamentais efetivas endereçadas a essas comunidades até o presente.
O CNPIR, por agregar conselheiros representativos de vários segmentos populacionais, com especialistas e também participação do governo, deveria ter construído um plano para os mais vulneráveis, incluindo indígenas, quilombolas, populações ribeirinhas, ciganos, umbandistas, candomblecistas. A informação deveria ser tratada como um bem de primeira necessidade, e naturalmente seguida de políticas efetivas que preservassem a vida dessas pessoas. Em função disso, no início da pandemia elaborei apressadamente um manual com informações e sugestões de ações a serem executadas nessas comunidades e encaminhei à direção do CNPIR. Também tenho interagido com algumas organizações da sociedade civil e diretamente com algumas comunidades, subsidiando-as por meio de vídeos explicativos e notas com indicações práticas (rotinas de higienização, alocação do espaço, transmissão do vírus, cuidados com eventuais doentes). Tudo com base em informações de canais oficiais internacionais e nacionais, inclusive da nossa Universidade de São Paulo.
Eu realmente torço para que encontremos condições de evitar o que parece ser uma tragédia anunciada. Entretanto, circulam informações apontando casos de violência em função da pandemia, da extrema carestia e do colapso crescente da vida diária de privações. Não havendo intervenção adequada, podemos presenciar uma mortandade avassaladora.
Muito poderia ter sido feito, mas ainda é tempo, caso haja interesse. Vimos acompanhando mundo afora as consequências da covid-19. No entanto, em inúmeras localidades a rotina segue como se a pandemia não existisse. Não são poucos os que não acreditam que podemos ter contaminação em massa e um contingente de doentes que não encontrariam recepção nos sistemas de saúde. A desinformação está plenamente realizada. Não falta apenas olhar governamental, faltam recursos e planejamento, decorrentes da falta maior de sensibilidade para com o povo pobre, preto e favelado. Falta sobretudo coração!
Vai depender das consequências após o decurso da pandemia. O fato de convivermos sem remorso com a miséria ao nosso lado por tanto tempo nos vacina contra a sensibilidade e a indignação de ver quão injustificáveis, desumanas e inaceitáveis são as condições de vida de milhões de brasileiros. As meticulosas decisões políticas que prepararam as condições sociais que ampliaram desmesuradamente a possibilidade desse sacrifício são bem conhecidas. Nada muito diferente para um país tão desigual que já foi premiado com o título de “monumento à negligência social”. Eu atualizaria para “irresponsabilidade civil”.