CBD | Departamento de Informação e Cultura



Mesma doença, efeitos desiguais: como favelas, comunidades quilombolas e indígenas lidam com a Covid-19

Professor Ivan Siqueira analisa os desafios trazidos pela pandemia para diferentes segmentos sociais no Brasil 

Comunidade
Fotografia colorida mostra a Favela de Paraisópolis vista do bairro Morumbi, em São Paulo. Em primeiro plano há várias casas de alvenaria espalhadas de maneira desordenada ao longo dos diferentes níveis do terreno. Ao fundo, diversas torres de condomínios residenciais de classe média e classe média alta.
Diante da ausência de políticas públicas, diversas comunidades enfrentam a pandemia com a auto-organização. Foto: Eduardo Knapp/Folhapress

A rotina de todo o planeta foi transformada desde o surgimento da atual pandemia. Comércios e serviços dos mais variados fecharam, escolas e universidades suspenderam aulas presenciais, tornando quase desértica a paisagem de grandes cidades. Por parte das autoridades, discursos expressam o constante embate entre salvar a vida das pessoas, controlar o colapso nos sistemas de saúde e a tentativa de minimizar os impactos negativos na economia. A frase imperativa do momento é “fique em casa”, já que o isolamento social é a principal recomendação da Organização Mundial da Saúde e é a forma mais eficaz para achatar a curva de contaminação, fato comprovado em países que passaram pelo pico da doença antes do Brasil. 

Essa medida de prevenção, no entanto, revela a ferida não cicatrizada da estratificação social brasileira: pessoas com menor poder aquisitivo não possuem condições para cumprir o isolamento social. Sem reservas financeiras e vivendo de bicos ou ocupações autônomas na área de serviços, a maior parte dessa população não pode suspender seu trabalho ou adotar o home office. Além disso, as condições precárias de saneamento e habitação impedem o adequado combate ao coronavírus mesmo para aqueles que conseguem se manter em casa. A situação é ainda mais dramática para as pessoas em situação de rua.

Pouco ou nada citadas na cobertura da covid-19, as comunidades indígenas e quilombolas sofrem com a ausência de políticas públicas específicas para enfrentamento da pandemia. Por motivos culturais e econômicos, o isolamento social também representa um grande desafio para essas populações. O contato esporádico ou frequente que algumas dessas comunidades mantêm com pessoas e cidades do entorno é um fator potencial de propagação da doença, ao mesmo tempo que desempenha papel importante para o sustento de seus habitantes.

Na entrevista a seguir, o professor do Departamento de Informação e Cultura (CBD), Ivan Siqueira, comenta as dificuldades enfrentadas por diferentes segmentos sociais do país, assim como suas estratégias de auto-organização diante da crise. Desde 2015, Siqueira é membro do Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial (CNPIR), que propõe políticas para superação da desigualdade social, política e cultural que atinge negros e outros grupos raciais e étnicos da população brasileira. 

 

Quais estão sendo os principais desafios para os moradores de comunidades e periferias em lidar com a pandemia? Como as favelas estão se organizando?

Os desafios envolvem desinformação e informação elaborada sem considerar a realidade das favelas; as dificuldades financeiras decorrentes da ausência de recursos para arcar com as despesas cotidianas mais elementares. O desafio de não saber o que fazer com as crianças. Por outro lado, algumas favelas têm exibido capacidade de organização – arrecadação e distribuição de alimentos e tentativas visando prevenir a contaminação em massa pela covid-19. Há muita gente ajudando com recursos, donativos e inteligência operacional. Infelizmente, as informações disponíveis indicam que não é essa a realidade nacional. 

 
Quais são os principais obstáculos no cuidado aos quilombolas e comunidades indígenas diante do atual cenário, considerando as políticas governamentais existentes?

Comunidades quilombolas e comunidades indígenas têm como características a estruturação da vida em rotinas comunitárias. O conceito de afastamento social, de ficar em casa, não faz sentido pra elas, chegando a ser impraticável em muitas localidades. Se a vida está assentada na divisão das tarefas, do cuidar, da partilha e do contato frequente, como substituir esses gestos e economia repentinamente? No caso de algumas comunidades indígenas há ainda outras questões: linguísticas, culturais, costumes. Nesta pandemia, desconheço políticas governamentais efetivas endereçadas a essas comunidades até o presente.

 
Qual é a atuação do Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial (CNPIR)? Como ele pode ajudar nesse contexto?

O CNPIR, por agregar conselheiros representativos de vários segmentos populacionais, com especialistas e também participação do governo, deveria ter construído um plano para os mais vulneráveis, incluindo indígenas, quilombolas, populações ribeirinhas, ciganos, umbandistas, candomblecistas. A informação deveria ser tratada como um bem de primeira necessidade, e naturalmente seguida de políticas efetivas que preservassem a vida dessas pessoas. Em função disso, no início da pandemia elaborei apressadamente um manual com informações e sugestões de ações a serem executadas nessas comunidades e encaminhei à direção do CNPIR. Também tenho interagido com algumas organizações da sociedade civil e diretamente com algumas comunidades, subsidiando-as por meio de vídeos explicativos e notas com indicações práticas (rotinas de higienização, alocação do espaço, transmissão do vírus, cuidados com eventuais doentes). Tudo com base em informações de canais oficiais internacionais e nacionais, inclusive da nossa Universidade de São Paulo.

 
Como o senhor acha que poderá ficar a situação dos moradores das favelas com a atual situação?  

Eu realmente torço para que encontremos condições de evitar o que parece ser uma tragédia anunciada. Entretanto, circulam informações apontando casos de violência em função da pandemia, da extrema carestia e do colapso crescente da vida diária de privações. Não havendo intervenção adequada, podemos presenciar uma mortandade avassaladora.

 

Há alguma medida que o senhor acha que poderia ter sido tomada com mais rapidez para garantir a saúde e o bem-estar desses moradores? Falta um olhar governamental?

Muito poderia ter sido feito, mas ainda é tempo, caso haja interesse. Vimos acompanhando mundo afora as consequências da covid-19. No entanto, em inúmeras localidades a rotina segue como se a pandemia não existisse. Não são poucos os que não acreditam que podemos ter contaminação em massa e um contingente de doentes que não encontrariam recepção nos sistemas de saúde. A desinformação está plenamente realizada. Não falta apenas olhar governamental, faltam recursos e planejamento, decorrentes da falta maior de sensibilidade para com o povo pobre, preto e favelado. Falta sobretudo coração!  

 

O senhor acha que, após a quarentena, haverá um outro olhar ou maior reflexão da sociedade e dos governantes em relação a essas comunidades?

Vai depender das consequências após o decurso da pandemia. O fato de convivermos sem remorso com a miséria ao nosso lado por tanto tempo nos vacina contra a sensibilidade e a indignação de ver quão injustificáveis, desumanas e inaceitáveis são as condições de vida de milhões de brasileiros. As meticulosas decisões políticas que prepararam as condições sociais que ampliaram desmesuradamente a possibilidade desse sacrifício são bem conhecidas. Nada muito diferente para um país tão desigual que já foi premiado com o título de “monumento à negligência social”. Eu atualizaria para “irresponsabilidade civil”.

 

 


Foto de capa: Ricardo Moraes/Reuters