Das ruas às redes: o ativismo pró-Palestina em mídias sociais

Dissertação de mestrado investiga como imagens são usadas pelo ativismo palestino em diferentes redes sociais

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As redes sociais conferiram a seus usuários um papel ativo na construção de narrativas sobre eventos de importância global, mesmo que muitas das informações recebidas estejam sujeitas ao funcionamento de algoritmos projetados por empresas. Antes sob o controle exclusivo dos grandes veículos de comunicação, imagens e narrativas de guerras e conflitos armados competem agora com memes e dancinhas no feed de pessoas comuns. Ao decidirem o que compartilham ou não, os usuários colaboram com a ascensão ou com a queda do que é considerado verdade pela maioria.

Foto de mulher branca sorrindo. Seus cabelos são castanhos, lisos e longos, o fundo é preto.
Vitoria é formada em artes e mestra em comunicação pela ECA. Foto: Acervo pessoal/Vitoria Baldin.

Com a intenção de investigar como os ativistas a favor da causa palestina usam imagens nas redes sociais para construir suas narrativas sobre o conflito, a pesquisadora Vitoria Paschoal Baldin, mestra pelo Programa de Pós Graduação em Comunicação (PPGCOM) da ECA, desenvolveu a pesquisa que resultou na dissertação Entre testemunhos e afetos: imagens, narrativas e ferramentas do ativismo digital palestino, orientada pela professora Daniela Oswald, do Departamento de Comunicações e Artes (CCA) da ECA. 

A pesquisa trabalhou com centenas de imagens postadas por perfis de apoiadores da causa palestina no Instagram, Facebook e X (Twitter) entre julho e dezembro de 2022. Partindo de uma perspectiva afetiva, que busca “superar a dicotomia entre verdade e mentira” para se concentrar no conteúdo emocional evocado pelas imagens, e de uma metodologia híbrida de análise, a autora investiga quais são as narrativas mais comuns na comunicação pró-Palestina, os elementos visuais com os quais essas narrativas são trabalhadas e como essas narrativas são apresentadas em diferentes redes sociais

Vitoria traz, além disso, um panorama das dificuldades técnicas enfrentadas por ativistas pró-Palestina no manejo de suas redes, e do forte contraste com a estratégia de comunicação das Forças de Defesa de Israel. Por fim, a pesquisadora elenca estratégias que podem contribuir para melhorar a comunicação dos grupos ativistas e a efetividade de suas publicações.

 

Como assim “superar a dicotomia entre verdade e mentira”? 

 

“A produção de imagens técnicas segundo a lógica testemunhal teve seu potencial frustrado, por desconsiderar as complexidades das relações que atravessam o digital”.

Vitoria Baldin, mestra em Ciências da Comunicação 

 

Para entender como a lógica testemunhal trabalha contra a comunicação afetiva, é preciso, primeiro, definir o que é imagem técnica. A pesquisadora se baseia na definição de imagem técnica do filósofo checo-brasileiro Vilém Flusser, que as caracteriza como aquelas produzidas por intermédio de uma máquina, como as fotografias. Segundo ele, a capacidade dessas imagens de reproduzir a aparência do real acrescenta “camadas de legitimidade a tal representação”, ao mesmo tempo mascarando as operações de cálculo por trás da imagem, como a escolha do enquadramento e outras particularidades técnicas do próprio aparelho. 

Embora a imagem fotográfica tenha, ao longo do tempo, mantido para si uma espécie de equivalência com a noção de verdade, o surgimento de outras tecnologias de produção de imagens, como desenhos e colagens digitais, e, mais recentemente, da inteligência artificial, tornou mais evidente a artificialidade das imagens técnicas

 

“A natureza intrinsecamente programática dessas imagens técnicas, juntamente com as possibilidades de manipulação digital, destaca a ideia de Flusser sobre a crescente artificialidade das imagens na contemporaneidade, em que a máquina desempenha um papel crucial na construção da visualidade contemporânea.”

Vitoria Baldin, mestra em Ciências da Comunicação

 

Em relação às imagens técnicas, ainda, a pesquisa afirma que o uso de imagens muito elaboradas em elementos como composição e edição pode não ser o ideal para o ativismo digital, pois “se o agente é percebido como tendencioso e manipulador na seleção e edição das imagens, isso pode minar a confiança do público na sua veracidade”. 

A autora comenta que um dos problemas do ativismo pró-Palestina é a fixação na lógica testemunhal das imagens. Essa lógica se apoia justamente nas imagens técnicas como equivalência da verdade, usando-as como testemunha ocular dos eventos do conflito entre Israel e Palestina. Elas formam a maior parte do material disseminado pelos ativistas, com fotografias e vídeos de violência contra inocentes e da destruição da guerra transmitidos com a intenção de mostrar que “isto está acontecendo”.

Essa perspectiva tem como obstáculo o questionamento da veracidade e da atualidade das imagens disseminadas pelos ativistas, o que, para a autora, desencoraja o público a compartilhar esse conteúdo. Tal questionamento tem origem, em parte, em  “redes de desinformação” organizadas, uma das complexidades que atravessam os debates hoje travados na arena digital. 

 

“É necessário pensar nesse processo de desinformação como parte das reminiscências da lógica colonial, em que as acusações de fraude fazem parte das estratégias para reprimir as vozes dos colonizados, permitindo a continuidade da violência.”

Vitoria Baldin, mestra em Ciências da Comunicação

 

A autora afirma que é importante superar a lógica testemunhal tanto durante a pesquisa e análise das imagens quanto na estratégia do ativismo transnacional. No fazer da pesquisa, a perspectiva afetiva tem como função superar a validação das imagens como “verdadeiras” ou “atuais”, e focar nos afetos que elas provocam e no tipo de narrativa que elas constroem ao serem disseminadas em um contexto de ativismo digital.

Para Vitoria, existem diferentes tipos de imagem que não se encaixam no conceito de imagem-testemunho, mas que ainda assim servem para reverberar os afetos que seus elementos trazem à tona. Como um exemplo, a autora comenta imagens da bandeira da Palestina, a bandeira de Israel, ou mesmo o mapa da Palestina pré 1948, que não são usados como representação de uma realidade ou “testemunhas” de algo que está acontecendo, mas como símbolos ou metáforas que contribuem para a formação de diferentes narrativas.

 

Colagem de imagens com fundo vermelho. As imagens, que variam entre fotos, ilustrações e colagens, mostram uma bandeira verde, preta e vermelha, com ou sem a presença de pessoas.
Colagem de imagens com a temática “bandeira da Palestina”. Imagem: Vitoria Baldin.

 

 

“A bandeira palestina é um emblema de autodeterminação e identidade coletiva. No espaço digital, ela é utilizada como símbolo unificador, objetivando também reunir apoio global para a causa palestina. É um estandarte sob o qual a solidariedade se cristaliza e a resistência se politiza. No ativismo, a bandeira não é apenas uma representação de território, mas também de legitimidade e a aspiração pela consolidação política do Estado-nação.”

Vitoria Baldin, mestra em Ciências da Comunicação

 

Sua presença constante nas imagens é um lembrete visual da luta pela autodeterminação e soberania, e é estrategicamente posicionada para evocar solidariedade e manter a causa palestina visível na arena global. “Nos eventos globais”, como a Copa do Mundo da FIFA de 2022, continua Vitoria, a bandeira palestina ocupou um lugar de destaque, conforme evidenciado pelas imagens. “A presença da bandeira nestes eventos é uma manifestação do constante esforço de reconhecimento internacional”. Por exemplo, imagens da bandeira em estádios demonstram uma estratégia de ocupar espaços de grande visibilidade, transmitindo a mensagem de que a causa palestina está presente e é relevante em contextos globais. 


O ponto de vista palestino e seus elementos visuais

A pesquisadora analisou centenas de imagens coletadas nas redes sociais de indivíduos e grupos ligados à causa palestina, usando uma metodologia mista da análise formal de Tamsyn Gilbert e da análise visual de Milman e Doerr. Assim, as imagens selecionadas são analisadas a partir de como o sujeito se utiliza dos meios de produção de imagens e de seus respectivos recursos formais, como composição e simbolismo. Essa análise é dividida em três etapas:

  1. Descrição do conteúdo evidente da imagem;
  2. Estabelecimento de relações entre os elementos da imagem;
  3. Consideração do contexto de produção, buscando mais informações e análises de outros pesquisadores.

 

Esquema informativo com vários quadros representando as etapas de um processo de análise. No topo há um quadro vermelho onde está escrito Etapa 1 - levantamento e seleção de imagens. No centro, há quadros laranjas para Etapa 2 - análise formal das imagens e Etapa 3 - análise de narrativas. Por fim, um quadro verde para Etapa 4 -análise de ferramentas e um quadro verde escuro com os dizeres Etapa 5 -organização dos dados obtidos.
As duas metodologias se complementam, com a análise de Milman e Doerr aprofundando a análise formal de Gilbert. Imagem: Vitoria Baldin.

 

Vitoria chama atenção para o uso de metáforas visuais em inúmeras imagens analisadas, nas quais, por exemplo, um prisioneiro palestino se mistura com o contorno do mapa do país, em uma imagem que faz lembrar as raízes de uma árvore “para afirmar a ancestralidade e a relação orgânica entre o povo e sua terra”. Outra metáfora recorrente são as imagens de crianças em frente ao mapa com a declaração "We will return", o que infunde a luta por direitos, retorno e continuidade. 

 

Colagem de fotos e ilustrações sobre um fundo vermelho. As imagens mostram o mapa da Palestina de forma estilizada, ora misturado com silhuetas humanas, ora com objetos como flores e vestimentas.
Um dos quadros da dissertação de Vitoria, reunindo distintas imagens com o elemento visual “bandeira da Palestina”. Imagem: Vitoria Baldin.

 

Deste modo, a pesquisa buscou identificar as principais narrativas ligadas ao ponto de vista palestino sobre a guerra, além de quais elementos visuais são mais usados para trazer essas narrativas à tona. As principais narrativas disseminadas pelas publicações analisadas foram as de vitimização ou martírio, com mais de 50 imagens levantadas, além de resistência e solidariedade, com cerca de 30 imagens cada uma. 

 

Gráfico de barras verticais vermelhas com fundo branco.
Gráfico das narrativas levantadas pela pesquisa de Vitoria, evidenciando a preponderância das narrativas de vitimização, resistência e solidariedade. Imagem: Vitoria Baldin.

 

Outras narrativas como direito ao retorno, identidade palestina e ocupação apostam em evidenciar o impacto da ocupação de Israel na vida de civis palestinos, com imagens de violência e destruição associadas a textos que ampliam o sentido das imagens. 

 

Como Israel e Palestina usam as redes sociais para mobilizar afetos

 

“Quando a gente olha para a atuação de Israel nas redes sociais, a gente olha para um desenho estratégico que só é possível de ser organizado e controlado nesse nível por conta de uma organização hierárquica muito bem estruturada.”

Vitoria Baldin, mestra em Ciências da Comunicação


Para a pesquisadora, a estratégia de comunicação do exército e outros órgãos de Israel é clara: há  uma desumanização do conflito e, ao mesmo tempo, uma super humanização de seus soldados, que acaba por afastá-los da realidade da guerra. Para isso, a violência do campo de batalha dá lugar ao que Vitoria chama de war cuties (fofuras de guerra) como soldados cuidando de bebês ou militares “blogueiras” encenando comandos de forma humorada ou simplesmente “sendo bonitas". Esse conteúdo é produzido e divulgado pelo instagram oficial das Forças de Defesa de Israel (IDF, na sigla em inglês), que acumula 1,6 milhão de seguidores. 

 

Print de reels no instagram. No lado esquerdo, há uma mulher branca de cabelos longos, lisos, loiros e presos vestindo uniforme militar marrom. Do lado direito, está a aba de comentários da publicação.
Nesse reels das Forças de Defesa de Israel, a soldada explica a implementação de forças na área de separação entre Israel e Síria. Imagem: Reprodução/@idf. 

 

“O movimento de Israel nas redes”, diz Vitoria, “começou com a Gal Gadot, atriz da Mulher Maravilha, que ficou famosa no instagram das Forças de Israel simplesmente por ser uma soldado e ser linda”. Para a autora, existe uma questão afetiva nisso, já que super humanizando os soldados, você afasta a sua imagem do fato de que “é um exército de pessoas que estão ali para matar gente”.

Para os grupos de ativistas pró-Palestina, por outro lado, essa comunicação tende a ser mais difícil. Em primeiro lugar, existe uma dificuldade estrutural de acesso às redes, resultado da ocupação israelense e de estratégias bem-sucedidas das Forças de Defesa de Israel. Além disso, os grupos e ativistas pró-palestina têm suas contas bloqueadas e conteúdo restrito na maioria das redes sociais, devido a acusações de terrorismo

Assim, limitados a perfis pessoais de apoiadores isolados, circulam imagens e vídeos que retratam cenas reais do conflito e da situação de civis palestinos durante os ataques, sempre com uma lógica testemunhal, isto é, da imagem como “testemunha ocular” do confronto. Essa limitação a perfis individuais também atrapalha a construção de uma coesão do movimento em torno de uma narrativa única. Vitoria diz que tais indivíduos e grupos frequentemente discordam sobre como usar as imagens, o que prejudica ainda mais seu alcance e favorece o questionamento do público sobre a veracidade ou validade das imagens compartilhadas. 

Além dessa falta de centralidade, é comum que os perfis de ativistas pró-Palestina não logrem nem amplo alcance nem forte engajamento devido à falta de domínio sobre o algoritmo das plataformas, o que causa desmotivação em seguir publicando ao longo do tempo. 


Quais são os caminhos para a comunicação pró-Palestina?

Para Vitoria e outros autores citados na dissertação, é evidente que a lógica testemunhal, na qual a imagem se apresenta como testemunha ocular do conflito entre Israel e Palestina, não é o suficiente para mobilizar a opinião do público acerca da causa palestina. Afinal, quer pelo questionamento da veracidade quer pela sua falta de impacto em um mundo digital já repleto de imagens chocantes, elas não são capazes de mover os afetos das pessoas que alcançam. Assim, a pesquisadora sugere construir uma comunicação ativista orientada  para essa mobilização de afetos, onde as imagens são usadas para reforçar as narrativas do ativismo palestino e não para “testemunhar um fato”. 

 

“Ao utilizar representações de crianças, mortos e escombros, os ativistas buscam não apenas transmitir uma mensagem política, mas também mobilizar afetos específicos, como empatia, indignação e solidariedade, com o objetivo de influenciar a opinião das pessoas. (...) Essa operacionalização política da emoção visa moldar horizontes de significado, utilizando a estética como ferramenta para conotar afetos negativos em relação à ocupação israelense.”

Vitoria Baldin, mestra em Ciências da Comunicação

 

Contudo, para que as imagens se articulem em narrativas coerentes, afetivas e efetivas, é preciso que haja uma organização dos grupos (ou indivíduos) ativistas em torno de objetivos e diretrizes comuns. “A falta de uma literacia em relação a usos mais estratégicos dessas ferramentas”, diz Vitoria, “apresenta um obstáculo central para o desenvolvimento de redes de apoio transnacional mais amplo.”

 

Foto de três crianças, de costas e paradas diante de um tanque de guerra. Sobre a imagem, há uma legenda em inglês que diz Pare a limpeza étnica israelita de Massafera Yatta, em letras grandes, e A maior expulsão forçada de palestinos desde 1967, em letras menores. À direita da imagem, há a aba de comentários do post.
O uso de imagens de crianças em meio a violência é um dos recursos mais comuns para a mobilização de afetos do público. Imagem: reprodução @jewishvoiceforpeace.

 

Um dos pontos destacados pela pesquisadora é que, fora do contexto do ativismo digital, há uma postura de resistência que é definida pelo povo palestino como sumud (firmeza, em árabe), ou “resistência cotidiana”. Ela consiste na crença de não desistir da vida cotidiana mesmo diante dos avanços militares de Israel, como se o fato de “seguir vivendo” ou “não deixar de ser feliz” fosse em si um ato de resistência. Disso, surgem imagens de mães e de crianças em diversos formatos e suportes, como grafites nas ruas, pinturas e, principalmente, fotos. Essas imagens, que apelam para a vulnerabilidade das mulheres e crianças, são um exemplo de como seria possível construir uma narrativa através das imagens que não dependa somente  de um viés testemunhal.

 

“Ao examinar o caso palestino, a pesquisa busca contribuir para uma compreensão mais ampla das complexidades do ativismo em contextos de conflito e opressão, oferecendo perspectivas que podem ser aplicadas a outras situações semelhantes ao redor do mundo."

Vitoria Baldin, mestra em Ciências da Comunicação

 

 


Foto de capa: grafite do artista Banksy na cidade palestina de Beit Sahour. Reprodução/Cultura Genial.
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