Como é produzir 30 anos de teatro: conheça Bertha Heller

Aposentada desde 2023, a ex-produtora executiva da Escola de Arte Dramática continua presente na memória e no espaço da EAD

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Um trio andava rumo ao Quadrado das Artes. “Parece que a Bertha vem hoje, ela te disse alguma coisa?” indaga alguém. “Ué, mas ela já veio terça… Olha lá! Berthinha!” Na direção oposta vinha a mulher de cabelos grisalhos e óculos vermelhos. Carregava duas bolsas: a primeira era uma mochila comum, com itens corriqueiros do dia a dia. Já a outra abrigava memórias de 30 anos de carreira. Era Bertha Heller, ex-produtora da Escola de Arte Dramática (EAD).

Aposentada desde setembro de 2023, a ‘Berthinha’ nunca deixou de fazer parte da EAD e, de quando em quando, faz visitas à Escola. Em suas três décadas de trabalho, além de muitas peças produzidas, ganhou histórias para contar e amigos. Um deles, José Mário Barbosa de Castro – o Mário, técnico de iluminação – foi convidado para dar entrevista sobre a trajetória da colega junto com ela. Em quase duas horas de conversa, os dois relembraram momentos especiais da carreira de Bertha.

Foto de uma mulher e um homem, ambos brancos. A mulher tem cabelos grisalhos e lisos na altura dos ombros, usa óculos de aros vermelhos e veste blusa de manga longa branca com manchas azuis. Ela sorri ao olhar para o homem que está a seu lado, que tem cabelos curtos e pouco grisalhos, usa óculos retangulares pretos e camiseta branca. Ao fundo, há uma parede branca com inúmeros cabos pendurados e uma caixa de força com alerta de perigo para choques elétricos.
Bertha Heller e José Mário Barbosa de Castro, técnico de iluminação da EAD. Como o Teatro-Laboratório está em reformas, a entrevista foi realizada na sala improvisada da iluminação, no fundo da EAD. Foto: Maria Luiza Negrão/ LAC-ECA.

 

Pré-produção

Bertha se formou em secretariado no Colégio Dante Alighieri. O interesse pelo teatro, apesar de não explorado na formação, sempre esteve presente em sua vida: “Minha mãe levava a gente, quando éramos crianças, minha irmã e eu. E eu também levava minhas filhas no [teatro] infantil”.

A primeira produção teatral foi voluntária, feita em 1992 para a peça O Violinista no Telhado, dirigida por Iacov Hillel, ex-colega de escola de Bertha. Iacov, à época, era orientador de arte dramática na EAD, mas o espetáculo não tinha nada a ver com a Escola, era uma produção externa. No entanto, foi por causa dele que Bertha começou na EAD, conforme contou: “eram 300 em cena, entre homens, mulheres e crianças, meninas e meninos. E eu gostei de fazer produção executiva. Daí ele [Iacov] falou: ‘Olha, lá na EAD estão abrindo concurso para produtora executiva. Você não quer prestar?’ Aí eu vim, prestei... E entrei, né?”.

Bertha iniciou o trabalho na Escola no ano seguinte, em 93, inicialmente como parte da extinta Seção Técnica de Teatro Laboratório, que prestava assistência acadêmica para a EAD e o Departamento de Artes Cênicas (CAC).

 

 

Bater perna, ter boa vontade e muita paciência

Foto de mulher branca sorrindo. Ela tem cabelos grisalhos e lisos, até os ombros e usa óculos retangulares de cor vermelha. Ela veste blusa de manga longa branca com manchas azuis e está apoiada sobre um balcão de mármore bege. Ao fundo está uma parede branca com muitos cabos coloridos, uma caixa de som e uma caixa de energia.
Bertha Heller. Foto: Maria Luiza Negrão/LAC-ECA.

“Tudo passa pela produção”, explica Bertha. Ela conta que o trabalho de produtora executiva, que exercia das 14h às 23h, engloba principalmente conseguir tudo que for preciso para a realização do espetáculo teatral. Além disso, Bertha também fazia a bilheteria do Teatro Laboratório, limpava os banheiros da EAD aos domingos e atuava na divulgação das peças, com o envio de releases para a imprensa. “Na bilheteria já me agrediram”, revela. “O cara enfiou a mão [no vão] e queria me agredir. Aí, quando reformaram lá [o Teatro Laboratório], que puseram um janelão, eu falei ‘precisa por uma grade lá, não quero ser agredida de novo’.” 

Na produção, boa parte do trabalho de Bertha era dialogar com empresas para conseguir itens doados ou emprestados. Ela se lembra de uma das primeiras doações que conseguiu. Eram vouchers de um restaurante espanhol, que foram presos sob os assentos das cadeiras do Teatro Laboratório, numa espécie de sorteio para os espectadores. Dessa mesma maneira, também foram sorteados outros itens posteriormente e um público fiel foi sendo construído a partir desses brindes, como conta Bertha.

Questionada sobre a parte mais interessante do trabalho, Bertha responde: “Eu gosto de fuçar, bater perninha. Às vezes, precisava de um tecido de malha e lá ia eu, no Bom Retiro”. Para ela, os itens essenciais de uma produtora são “uma perna boa, boa vontade e muita paciência”.

Nem tudo eram flores no trabalho de produção. Algumas coisas eram, na verdade, pedras. E madeira. E tinta. E o que mais a liberdade criativa do diretor pedisse –  como um colchão redondo, que Bertha conseguiu emprestado de um conhecido que era dono de motel. “Você saiu de carro oficial”, lembra o amigo sobre o momento em que a produtora foi buscar o item.

 

“A Bertha conseguia coisas maravilhosas para produzir espetáculos.”

José Mario Barbosa de Castro, técnico de iluminação da EAD

 

Já na produção de A Cozinha, o desafio é sugerido pelo próprio título: dirigido por Iacov Hillel e encenado em 1997 na EAD, o espetáculo exigiu a montagem de uma cozinha profissional inteira no palco. Uma firma doou todos os móveis da cozinha e outra doou papel alumínio para forrar o cenário, como se fosse aço inox. “Tinha tudo, tudo, tudo. Tinha tábua de bater carne. Tinha talheres. Eu consegui pratos e copos e daí, quando eles jogavam os pratos no chão, eu ficava assistindo e falava ‘ai, não quebra, ai não quebra, ai não quebra’”, conta Bertha. À época, o espetáculo ganhou a página 18 da edição de 5 de março de 1997 da Veja São Paulo, que colocou a peça como “a surpresa da temporada”. 

Foto de mulher branca de perfil apontando para um cartaz emoldurado na parede. Ela tem cabelos até os ombros, lisos e grisalhos, usa óculos de armação vermelha e veste blusa de manga longa com estampa marmorizada em azul claro e branco. Ela está em um corredor com outros cartazes pendurados nas paredes brancas e duas portas amarelas.
Bertha se lembra de cada peça que produziu desde seu início na EAD. Foto: Maria Luiza Negrão/ LAC-ECA.

 

Bertha também se recorda de um galho, que encontrou caído na rua e aproveitou para o espetáculo Lavoura Arcaica. Uma das atrizes foi Ângela Ribeiro, da turma 61, e Antonio Rogério Toscano dirigiu a peça. Ambos se lembram do tal “galho”: Toscano, atual diretor da EAD, conta que, na verdade, ele “tomava quase o palco todo. Eram essas árvores monumentais que tinham caído recentemente”. Para buscar o galho-tronco, foi preciso até mobilizar um caminhão junto à ECA e pedir autorização da prefeitura municipal para retirada.

Panfleto de divulgação em preto e branco composto por duas páginas. A primeira é a capa, com a foto de duas pessoas com figurinos de cena compostos por paletó e camisa branca. Uma delas está de pé atrás da outra, que aparece mais baixa. O fundo é escuro e, na lateral direita, há o texto Escola de Arte Dramática EAD/ECA/USP. A outra página é um expediente, no qual há informações sobre os funcionários da Escola de Arte Dramática, com nome e cargo, incluindo o nome de Bertha.
O nome de Bertha aparece em um catálogo da EAD da década de 90. Imagem: reprodução/acervo pessoal/ Bertha Heller.

 

Formada em 2013, Ângela relata que sua relação com a Bertha não era só como atriz –  ela também ajudava a produtora na confecção dos projetos gráficos de espetáculos, já que também é designer. Para Ângela, a Bertha “era uma pessoa que sempre sabia de tudo dentro da EAD”.

Uma se formou e a outra se aposentou, mas as duas ainda mantêm contato. “A Bertha se tornou uma amiga minha, inclusive sempre foi nos aniversários dos meus filhos e assistiu os espetáculos fora da Escola”, conta Ângela.

 

 “[A Bertha] não era alguém que fazia um trabalho burocrático e resolvia problemas simplesmente. Ela tinha laços de afeto com a Escola e com as produções da Escola. Foi muito bonita a passagem dela pela Escola de Arte Dramática.”

Antônio Rogério Toscano, atual diretor da EAD

 

Nas três décadas que separam o início e o fim da história de Bertha na EAD, ela destaca uma mudança: a chegada do sistema Mercúrio, que organiza as questões financeiras da USP. A mudança, no caso, foi para piorar as coisas, porque o sistema exige mais burocracia — e, por isso, mais tempo, que é um recurso valioso na produção teatral.  “Esse sistema, para a gente, engessa o trabalho de produção”, opina Mário. 

Foto de mulher branca em pé ao lado de uma placa. A mulher tem cabelos curtos e grisalhos, usa óculos de armação vermelha e retangular e sorri. Ela veste calças pretas e um casaco preto e segura um buquê de flores com as duas mãos. Ela também segura um guarda-chuva azul com estampa de nuvens e tem uma bolsa listrada apoiada em seu ombro. A placa é larga e mais alta que a mulher e, na parte superior, há os textos CAC e EAD e Teatro Laboratório. No meio da placa há um mapa colorido e, na parte inferior, o logotipo da Escola de Comunicações e Artes. O fundo é um gramado com algumas árvores atrás da mulher.
O post de despedida no Instagram da EAD, escrito pelo funcionário do CAC Marcos Felipe de Oliveira, é finalizado com o trecho: “Minha amiga Bertha atravessou milhares de pessoas, sem estar em cena. Minha amiga Bertha formou muitas gerações de artistas, sem estar em cena. Minha amiga Bertha, uma verdadeira artista da cena! ...Que os caminhos estejam abertos e que o futuro lhe traga muitos sorrisos soltos. Com admiração e afeto, Marcos Felipe”. Foto: Reprodução/Instagram/@escoladeartedramaticaoficial

 

Desde sua aposentadoria, há dois anos, a EAD ainda não recebeu uma pessoa para ocupar a vaga deixada por ela, conforme conta Toscano. Para o diretor da Escola, a dedicação exclusiva da Bertha dava segurança aos trabalhos de criação teatral, mas agora o trabalho é fragmentado entre diferentes funcionários do CAC e da EAD.

 

Pós-produção

Fora de cena desde 2023, Bertha ainda frequenta espetáculos teatrais, “tudo que me convidam, eu vou”. Ela relata um caso em que foi assistir o espetáculo Rita Lee, uma autobiografia musical, que esteve nos palcos do Teatro Porto Seguro de janeiro a junho deste ano. Ela ganhou um par de ingressos de um ex-aluno, que era assistente de direção da peça, e foi junto com a filha caçula, que mora em Londres e estava de visita ao Brasil. “Foi super legal, sentamos num lugar bem bacana. Aí, tinha alguns ex-alunos lá no palco. ‘Berthinha! Berthinha! Berthinha!’ Depois a gente se encontrou para se cumprimentar.”

Foto de mãos de mulher branca segurando e exibindo um panfleto, sendo uma mão na parte superior e outra na inferior. Ela usa um relógio veste uma blusa de manga longa branca e azul. O panfleto tem cor acinzentada com textos em letras pequenas e pretas. No fundo, há um sofá vermelho de couro com uma bolsa roxa aberta em cima dele, um gaveteiro branco com uma CPU de computador e paredes claras.
Mesmo aposentada, Bertha ainda guarda em sua casa um vasto acervo de programas de peças e outros itens relacionados à Escola de Arte Dramática. Foto: Maria Luiza Negrão/LAC.

 

Em seu atual estilo de vida, ela conta com uma diferença primordial: “Agora sabe o que eu faço? Tudo devagar.” As agitações pré-espetáculos foram substituídas por uma rotina pacata, com partidas de Rummikub e fofoca com as amigas uma vez na semana e duas sessões semanais de hidroginástica. Também não pede mais doações, pelo contrário: às quartas-feiras, é voluntária na produção de marmitas comunitárias. E, de vez em quando, arranja um tempo para visitar a EAD e tomar café com os antigos colegas.

“Agora eu tenho uma obrigação”, continuou. “Sábado e domingo eu tenho que emprestar meu carro, que é o único carro mecânico da família, porque a minha neta está estudando para a autoescola, então ela tem que treinar.”

 

 


Imagem de capa: montagem de Maria Luiza Negrão com foto do acervo pessoal de Bertha Heller e foto reproduzida do Instagram da Escola de Arte Dramática.
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