CTR | Departamento de Cinema, Rádio e Televisão



Realizadores negros ainda são minoria no audiovisual brasileiro

Tese apresentada ao Programa de Pós-graduação em Meios e Processos Audiovisuais faz estudo sobre a negritude dentro das políticas públicas para o setor 

Vida acadêmica

Seja em filmes, novelas ou séries, a baixa participação de atores negros é uma característica presente na história do audiovisual brasileiro. Apesar do aparente crescimento da negritude na TV, por exemplo, essa parcela da população, que equivale a 56% dos cidadãos do país, ainda é sub-representada — e não é só no elenco.

Algumas obras de realizadores negros ganham destaque. A Negação do Brasil (2000), por exemplo, do cineasta e doutor pela ECA Joel Zito Araújo, ganhou o prêmio de Melhor Documentário no Festival É Tudo Verdade em 2001. Já o longa Café com Canela (2017), de Glenda Nicácio em conjunto com Ary Rosa, foi considerado o melhor filme na 50ª edição do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro. 

Apesar de casos como os de Glenda e Zito, ainda há pouco espaço para  profissionais pretos e suas produções no audiovisual brasileiro. Muitos desses realizadores dependem de políticas públicas para que seus trabalhos sejam viabilizados, cheguem ao público e conquistem notoriedade. Esse caminho, no entanto, é cheio de impedimentos

 

A tese: vingança, mas não no sentido sórdido

É desses impedimentos que trata a tese Por uma política audiovisual preta no Brasil: estudo sobre a negritude dentro das políticas públicas audiovisuais brasileiras e as questões que envolvem ações afirmativas para produção audiovisual negra no BrasilA pesquisa de Renato Candido de Lima, realizada no Programa de Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais (PPGMPA) sob orientação do professor Almir Almas, também analisa a historicidade da presença de pretos na cinematografia do país.

Foto de um homem de pele negra e barba escura, sorrindo. Ele veste uma boina bege e uma camisa vermelha por cima de uma camiseta branca. Ao fundo, atrás do homem, uma parede de tijolos laranjas cobertos por cimento. Uma parte da parede é substituída por um pedaço retangular de madeira.
Renato produziu o média-metragem Jennifer e os curtas Dara - A Primeira Vez que Fui ao Céu e Simone. Ele também filmou Larissa, Deolinda e Janaína. Além de idealizar, junto a Renata Martins, a série Rua 9, ele roteirizou a série televisiva Pedro & Bianca, produção que ganhou o Emmy Kids em 2014. Foto: acervo pessoal

Renato é cineasta formado em Audiovisual e mestre em Ciências da Comunicação pela ECA USP, além de professor da Faculdade Paulus de Tecnologia e Comunicação (FAPCOM). Sua tese de doutorado, que será transformada em livro — ainda sem data de lançamento — teve origem em suas experiências pessoais como realizador negro. 

Depois de várias tentativas sem sucesso para conseguir viabilizar suas produções por editais, o pesquisador percebeu que outros profissionais negros também não conseguiam. Foi aí que ele começou a perceber como o racismo estrutural atingia a negritude no audiovisual.

“Até pensei: 'devo escrever mal, meu roteiro deve ser ruim’. Mas outras pessoas que eu fui encontrando também não estavam conseguindo, todo mundo preto. Então quer dizer que o buraco é mais embaixo”, conta. 

Na pesquisa, Renato analisa como se deu a distribuição de recursos para cineastas brancos e negros  a partir da Lei do Audiovisual de 1993. Em seguida, além de buscar entender a história da negação da presença negra por meio de políticas cinematográficas, o pesquisador apresenta,  ao final de  sua tese, uma lista de propostas que agem contra o racismo no audiovisual.

 

“Foi uma vingança fazer essa tese. É uma vingança [contra] o racismo, ainda que seja só uma tese. Não no sentido sórdido, mas é uma coisa do tipo: 'olha, não dá mais pra ficar esperando, a gente só se vira com resto de política pública’”.

Renato Candido, cineasta formado pela ECA

 

 

‘Sempre teve preto!’: a existência negra no audiovisual

Na tese, Renato destaca  nomes de alguns cineastas negros presentes em diferentes momentos do audiovisual no país. Nos anos 1940 e 1950, ele cita José Rodrigues Cajado Filho. Anos mais tarde, no contexto da Embrafilme, surgem Adélia Sampaio, Afrânio Vital, Agenor Alves, Antônio Pitanga, Ari Cândido Fernandes, Paulo Veríssimo, Odilon Lopez, Valdir Onofre e Zózimo Bulbul.

Foto na altura do ombro de uma mulher de pele negra com cabelo curto e grisalho e óculos de aro retangular. Ela sorri olhando para a câmera. Ao fundo, um cartaz com fundo verde e vermelho com algumas ilustrações e uma imagem da mesma mulher em preto e branco.
Adélia Sampaio é considerada a primeira cineasta negra do Brasil. Adélia dirigiu o longa-metragem Amor Maldito (1984), pioneiro em  retratar o relacionamento entre duas mulheres no país. Imagem: instagram/anabarbossa

Mesmo que essas realizadoras e realizadores se destacassem por suas produções, eles não conseguiam dar continuidade à sua carreira cinematográfica como outros cineastas  brancos do mesmo período.

Sendo minoria em um espaço majoritariamente branco, a presença de cineastas negros era pontual e a sua ausência pouco problematizada. Renato explica que a existência negra na cinematografia sempre foi uma realidade, mas como mão de obra de execução: ligar cabos, levantar tripés, colocar refletor, atuar como contra-regra, passar roupas.

 

“Tinha muita gente preta. É que o poder de criação da narrativa não estava nas nossas mãos”.

Renato Candido, cineasta formado pela ECA

 

Cartaz do filme Um Dia com Jerusa. Sobre um  fundo escuro, destaca-se  uma foto do perfil de uma  mulher idosa de pele negra. De frente para ela há uma pequena abertura com um feixe de luz direcionado entre os seus olhos iluminando parte de seu rosto. No topo, em letras brancas e amarelas, o texto  Odun Filmes apresenta: Um dia com Jerusa, um filme de Viviane Ferreira. Na parte inferior, vários logos de realizadores e de patrocinadores dispostos lado a lado.
Cartaz de divulgação do longa Um Dia com Jerusa, de Viviane Ferreira. Imagem: Instagram/Odun Filmes

Atualmente, o poder de criação chega a mais realizadores negros e negras. Como exemplo, Renato cita Gabriel Martins com Marte Um (2022), Viviane Ferreira com Um Dia Com Jerusa (2021) e Déo Cardoso com Cabeça de Nego (2020). “Essa galera toda está fazendo longa e está chegando mais gente dirigindo série, a gente está emergindo”, conta.

 

Os impedimentos na própria pele

O pesquisador relata que sempre procurou poesia nas coisas. Com o cinema não foi diferente. Seu gosto por filmes ultrapassava os blockbusters de Hollywood. As obras que tentavam dizer algo além do que comumente se esperava chamavam a sua atenção e o influenciaram a entrar no curso de Audiovisual. Antes de se tornar cineasta, ele se formou em Telecomunicações e Eletrônica. Ao trabalhar como eletrônico, se deparou com o contrário de poesia. 

“Trabalhar com eletrônica era lidar de uma maneira muito marcante e rasgada com o racismo. E eu imaginava, na minha ingenuidade, que no cinema ia ser diferente. Não foi. Foi até pior”, conta. 

Ao entrar na graduação, em 2002, as cotas na USP ainda não existiam. O pesquisador enfrentou seu primeiro obstáculo: ser um dos poucos estudantes negros em uma universidade formada por uma maioria branca.

Os impedimentos chegaram cedo. Renato conta que havia uma espécie de seleção de projetos internos para  financiamento no Departamento de Cinema, Rádio e Televisão (CTR). Projetos de outros estudantes brancos eram selecionados, enquanto o seu não. Produções suas e de outros colegas negros dependiam de financiamento coletivo para serem realizadas.

Mesmo depois de formado, as dificuldades permaneceram. O cineasta relata ter continuado a ganhar, em 2007, a mesma quantia de quando trabalhava como técnico de TV a cabo em 2001. “Isso me fez refletir: mano, parece que eu estou indo para trás em questão de evolução de trabalho e salário’’. 

 

Necessidade de mudança

“Não basta uma maior visibilidade de personagens negros e periféricos se seus retratos ou suas representações ainda são estereotipados”

Mesmo com a inserção de mais profissionais negros e negras no audiovisual, pessoas brancas ainda são maioria. Segundo a pesquisa Diversidade de Gênero e Raça nos Lançamentos Brasileiros de 2016, homens e mulheres brancos ocupavam cerca de 95,1% da direção de longas.

Na tese, Renato pontua a importância de diferenciar a produção negra audiovisual da presença negra em elenco. Somente contar com atores negros não faz de um filme, série ou novela uma representação da população negra brasileira. Quando uma produção é feita pela branquitude, as chances de estereotipar pretos, pretas e suas vivências são grandes. Por isso, mais produtores negros precisam chegar à direção e roteirização de obras.

Renato afirma que as políticas públicas do audiovisual brasileiro são influenciadas pela branquitude. Ele parte da hipótese de que as instituições de fomento audiovisual no país agem de forma racista. “A gente vai entendendo que os editais têm uma dimensão de questão racial”, diz. 

Para que um projeto seja selecionado em editais de financiamento, ele precisa passar por uma comissão formada, geralmente, por pessoas brancas. Com frequência, estas bancas são compostas por pessoas que ganharam editais anteriormente — o que reforça a pouca diversidade entre os responsáveis pela seleção. 

Essa banca, por vezes, escolhe os projetos vencedores influenciada por estereótipos racistas, segundo Renato: “aquelas pressuposições do tipo: 'ah, é preto, não vai entregar o filme, vai se embananar e fazer mau uso do dinheiro público'”. 

Para que esse cenário mude, a elaboração e implementação de políticas públicas audiovisuais voltadas para a negritude é necessária. Pensando nessa possibilidade, o pesquisador desenvolveu propostas que abordam desde a formação de cineastas, produção e distribuição, até a criação de um observatório de ações afirmativas.

Enquanto as mudanças não chegam, instituições como a Associação de Profissionais do Audiovisual Negro (APAN), entidade da qual Renato já foi presidente, continuam a lutar pela defesa de ações afirmativas para produções de realizadoras e realizadores negros.

Produções de Renato Candido

Montagem com cenas do filme. Em destaque, imagem na altura dos ombros de uma menina de pele negra, de cabelo crespo preso, sorrindo e olhando para cima. Ela segura nas cordas de um balanço com as duas duas mãos. Ao fundo, uma paisagem desfocada do céu azul claro e árvores. Abaixo, imagens de seis cenas do filme dispostas lado a lado.

Cartaz de divulgação do curta Dara - A primeira vez que fui ao céu", produção de Renato Candido, inspirada no conto “A primeira vez que fui ao céu” de Elizandra Souza. Imagem: reprodução/IMDb

Cena do filme Simone. Em primeiro plano, à esquerda da imagem, uma mulher de pele negra, com cabelo crespo escuro, olhando para o lado e com expressão neutra, dentro de uma estação de trem. Ela veste uma regata vermelha. Em segundo plano, há uma plataforma com um trem vermelho ao fundo no trilho.

Simone - Estorias em estação de transferência, curta de Renato Candido, inspirado em Estação de Transferência de Ana Paula dos Santos Risos. Imagem: reprodução/youtube

Cartaz do filme Jennifer. No centro da imagem,uma adolescente parda com a visão direcionada para o lado, com o cabelo escuro e ondulado preso por  uma faixa rosa na parte superior da cabeça. Ao fundo, a figura de uma rosa vermelha e desenhos em preto e branco da mesma menina e de outras pessoas sobrepostas.

Cartaz de divulgação do média-metragem Jennifer. Imagem: reprodução/IMDb

 

Entre o coletivo e o solidário, uma nova economia preta

Para o cineasta, a presença pontual de pessoas pretas em grandes produtoras não é suficiente para garantir a existência contínua da negritude no audiovisual. É preciso que sejam criadas políticas para que negros e negras possam viabilizar e estruturar suas próprias produtoras

 

“A visão de economia da cinematografia sempre esteve voltada para uma estrutura econômica baseada no racismo, na origem de um mercado baseado na criação de uma indústria, de um dono de um polo industrial. Essa maneira não leva em conta a nossa existência [pessoas negras]”.

Renato Candido, cineasta formado pela ECA

 

A ideia é que essas novas produtoras, feitas a partir da negritude, sejam inseridas em uma economia preta que extrapola a noção predominante de mercado audiovisual — mercado estruturado na acumulação de capital e protagonizado por grandes empresas produtoras e distribuidoras de conteúdo que recebem a maior parte dos recursos das políticas audiovisuais.

Dentro dessa lógica afrocentrada, as produtoras se estruturariam em uma economia solidária e coletiva que, além de movimentar outros setores econômicos, teria como prioridade o apoio à existência preta da comunidade à sua volta. 

Renato explica que para que produções audiovisuais aconteçam, a contratação de serviços locais voltados para a alimentação, cenário e transporte, por exemplo, é essencial. Esse processo não só faz com que o dinheiro circule pelo território, geralmente periférico, mas também contribui com a subsistência dos moradores. 

“Essa tese é um clamor para sensibilizar que essa [economia preta] e outras economias de cultura precisam ser financiadas e levadas a sério”, diz.

 

 

 


Imagem de capa: arquivo pessoal
 
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