Professora trans, Dodi Leal ministra curso na ECA: "espero que seja só o começo"
Educadora, performer e pesquisadora ministra disciplina na Pós-Graduação em Artes Cênicas como docente convidada neste semestre

Após cursar a graduação em Artes Cênicas na ECA, Dodi Leal voltou à Escola 10 anos depois com uma responsabilidade ainda maior: atuar como professora, ocupando um espaço que ainda carece de corpos não hegemônicos. Como parte de uma iniciativa do Laboratório de Práticas Performativas, do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas (PPGAC), a artista foi convidada pelo professor Marcos Bulhões para ministrar a disciplina Fabulações Travestis sobre o Fim, que acontece entre março e maio deste ano.
Dodi costuma dizer que sua experiência acadêmica foi bastante “indisciplinar”. A professora, além da licenciatura na ECA, cursou graduação em Ciências Contábeis, mestrado em Controladoria e Contabilidade e doutorado em Psicologia Social, todos na USP. Ao longo dessa trajetória, se manteve envolvida em projetos sociais relacionados à economia solidária, educação popular e, claro, arte e cultura. Atualmente, ela é professora efetiva da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) e docente colaboradora da Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC).
Para o professor Marcos Bulhões, que fez o convite, o PPGAC tem tudo a ganhar com a presença dela. O docente destaca que Dodi é uma pesquisadora com um trabalho muito relevante, “porque o cruzamento entre questões de gênero e a produção artística é um campo em que ainda não há tanta produção”. Além disso, Marcos comenta que o curso preparado integralmente por ela reúne um conteúdo bastante original e uma bibliografia complexa e densa.
“A fala de uma professora doutora travesti reconhecida nacional, e, cada vez mais, internacionalmente, dentro do PPGAC é uma renovação de ares, é uma luz a mais. É uma abertura epistemológica para outros corpos que estão falando deste lugar da docência da pós-graduação, que não são os mesmos corpos hegemônicos, em geral brancos, héteros e cisgêneros.”
Marcos Bulhões, professor do Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas
Dodi fica grata com a oportunidade e conta que é uma sensação gostosa voltar à ECA, agora como professora. Porém, ela destaca que é preciso entender o cenário e não romantizar a situação. Apesar de ser uma conquista, ainda há muita invisibilização de pessoas trans dentro da Universidade, segundo a professora. Para ela e para Marcos, não haver docentes trans efetivos na ECA é um sintoma muito grave, e a USP está muito atrasada nesse sentido. “Espero que não seja a última vez. Pelo contrário, espero que seja só o começo de muitas edições, e que não seja só eu”, acrescenta Dodi.
Após a divulgação na imprensa de que Dodi assumiria uma disciplina na ECA, ainda que como convidada, diversos ataques à professora surgiram nas redes sociais. “São pessoas covardes e transfóbicas, que não consideram e desconhecem a qualidade do trabalho realizado”, declara. O PPGAC se manifestou contra os comentários em uma nota de repúdio, alegando que são atitudes como estas que “contribuem para a perpetuação de dinâmicas transfóbicas de pensamento e convívio social, responsáveis por tornar o Brasil o país que mais mata pessoas trans e travestis.” O professor Marcos, além de lamentar e condenar os ataques, mantém a esperança: “acredito em mudanças na universidade, em um futuro utópico, quando uma professora doutora travesti não assustar tanto assim.”
Para estudantes do programa, é uma honra ter aulas com a artista. Morgana Manfrin, doutoranda trans do PPGAC, conta que a convivência com uma pessoa tão renomada e forte, como Dodi, “faz com que a gente também se fortaleça, faz com que eu me reconheça.” O mestrando Oliver Olívia, que se identifica como uma pessoa trans não binária gênero fluido, destaca que o convívio na faculdade se torna mais confortável. “Se a professora é trans, as pessoas cis tendem a se ligar mais sobre como receber e tratar bem pessoas trans. Elas começam a prestar atenção nelas mesmas e a não ‘passar pano’ para transfobias. Elas querem trabalhar profundamente a convivência com uma pessoa trans, isso já é incrível”, relata.
Fabulações Travestis sobre o Fim

A disciplina ministrada por Dodi é baseada em um artigo de mesmo nome publicado por ela em 2021 na revista Conceição/Conception. O curso é intensivo, com duração de três semanas, e em formato híbrido, o que permite a realização de, além da reflexão teórica, atividades práticas em conjunto com a turma, formada por 14 pessoas.
A professora conta que o programa trata das escritas, como roteiros, escritas de imaginário, programas performativos e até bilhetes, a partir da cosmopercepção trans — um posicionamento relacionado a desobediências de gênero de ruptura com os paradigmas cisnormativos — e faz uma crítica sobre os estudos do fim. Seja o fim da arte, fim do gênero, fim da humanidade ou o fim do mundo, todos se tornaram um produto estético e são alvos da vendabilidade, como ela chama. “E o que está sendo vendido com isso é o desespero, a ansiedade para que pensem ‘o mundo vai acabar, então eu preciso comprar e vender tudo que eu necessito, tudo que existe. Eu preciso chegar às últimas consequências, para me salvar do fim do mundo ou acabar logo de uma vez’”, explica.
Esse imediatismo, segundo Dodi, acontece sob uma perspectiva neoliberal, ocidental e cisnormativa do tempo, que é a linearidade — ideia de um tempo representado por uma linha contínua, com início, meio e fim. A disciplina discute o impacto dessas perspectivas na criação nas Artes Cênicas e sobre como, para além da linearidade, a fabulação trans ganha uma ritmação em que “o pêndulo da memória vai e volta, atua sobre as marcas coloniais do esquecimento e age nos hiatos temporais da história traçada pelos grupos dominantes”, explica a professora no artigo.
Além disso, são experienciados jogos desenvolvidos a partir da abordagem da Teatra da Oprimida aplicadas às práticas performativas, uma das áreas de pesquisa de Dodi. Como método avaliativo, a turma deve criar e executar programas performativos fabulares. O projeto de José Miguel, por exemplo, sugere uma performance em que o artista coleta objetos descartados no Rio Tietê, fabula sobre sua origem, destino e temporalidade e os amarra a seu corpo. Em seguida, os artefatos são oferecidos a transeuntes da cidade, que são incentivados a dar novos destinos ao objeto, a fim de que não volte ao rio. A ideia é, a partir da despoluição do Rio Tietê, trabalhar sobre a noção de corpo-território e questionar: “se o rio é uma extensão do nosso corpo, o que implica a decisão de deter o ecocídio sobre o rio Tietê?”
Para enriquecer as discussões, a artista convidou outras duas mulheres trans para participar das aulas. “Eu não só estou aproveitando essa oportunidade, mas estou abrindo para outras pessoas trans também ocuparem esse espaço”, afirma. A roteirista Alice Marcone foi convidada a dar uma oficina de textualidade no audiovisual e a artista-educadora Isadora Ravena ofereceu uma oficina de fabilhetações (de fábulas + bilhetes) na cena e uma conferência sobre travestilidade ambiental.
Tanto Morgana quanto Oliver relatam que a vivência universitária de pessoas não-cis é, no geral, bem solitária. Assim, a visita de Dodi e suas convidadas foi muito importante não só para um maior acolhimento interpessoal, mas também para suas pesquisas de pós-graduação. Para Oliver, “ter o tipo de debate e de provocações que eu estou tendo na aula dela só faz a minha pesquisa aumentar”.
O mestrando explica ainda que é complicado pensar uma perspectiva trans de trabalho dialogando com pessoas cis — por mais qualificadas e interessantes que essas sejam — porque para elas é difícil acessar essa perspectiva. Nesse sentido, Dodi, Alice e Ravena “estão num nível similar de complexidade da discussão”, acredita.
Laboratório de Práticas Performativas
Fabulações Travestis sobre o Fim é apenas uma das disciplinas oferecidas pelo Laboratório de Práticas Performativas, que elaborou matérias tanto para a graduação quanto para a pós. O laboratório foi criado em 2010 pelos professores Marcelo Denny, falecido em 2020, e Marcos Bulhões , ambos do Departamento de Artes Cênicas (CAC), com o objetivo de traçar uma cartografia da produção de artes, tratando de artivismo (combinação entre arte e ativismo) e de práticas performativas contra hegemônicas.
O grupo atua em interface com outras áreas — como dança, música, tecnologia, arquitetura e urbanismo — e também se dedica a produzir pesquisas, performances e espetáculos performativos de cena expandida, sendo reconhecido e premiado internacionalmente por essas obras.
Segundo Marcos, as reuniões do Laboratório para discutir temas de pesquisa acontecem quinzenalmente e estão de portas abertas para quem se interessar. Mais informações podem ser obtidas no perfil do Instagram do grupo.