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Possibilidades de criação nos tempos de destruição

A docente da ECA Maria Lúcia Pupo reflete sobre os 20 anos da Mostra de Licenciatura em Artes Cênicas; edição deste ano começa dia 29 de novembro

Vida acadêmica
Fotografia em preto e branco. Maria Lúcia Pupo é uma mulher madura, de cabelos lisos e escuros na altura do ombro. Ela usa óculos de lentes ovais, colares e uma blusa estampada. Ela olha com semblante sério para a câmera.
Maria Lúcia Pupo, docente do Departamento de Artes Cênicas. Foto: Divulgação/ ECA USP. 

Um aniversário especial será comemorado na ECA entre 29 de novembro e 3 de dezembro deste ano. Estamos nos referindo à 20ª edição da Mostra da Licenciatura em Artes Cênicas, que reúne a cada final de ano letivo os trabalhos de conclusão de curso dos formandos, agora jovens docentes nas artes da cena.

Instituída na ECA-USP desde a década de 1970, a licenciatura em Artes Cênicas visa formar docentes que atuarão com teatro, performance, dança tanto no Ensino Fundamental quanto em modalidades de ação cultural e artística no âmbito de ONGs, associações, projetos e centros culturais, na ótica da chamada educação não formal.

Iniciativa assumida por estudantes que pretendiam ampliar o diálogo com a população em torno de suas práticas, a Mostra passou por diferentes formatos ao longo dessas duas décadas, mas vem mantendo as vertentes que fazem dela um acontecimento significativo para os estudantes, suas famílias e amigos, docentes e funcionários do Departamento de Artes Cênicas. O trabalho de conclusão de curso nesse campo se traduz em uma monografia resultante da intervenção do estudante junto a grupos de crianças, jovens ou adultos que vivem processos de aprendizagem nas artes da cena, o que inclui a apreciação dessas artes. Por ocasião da Mostra essa monografia é analisada por um ou mais convidados e debatida em sessão pública; na mesma ocasião as pessoas a quem essa intervenção foi dirigida apresentam a esse mesmo público algum aspecto ou passagem da experiência coordenada pelo discente.

A qualidade dos debates que a Mostra veio instaurando com os interessados se funde à alegria da conclusão da trajetória de cada turma de alunos, gerando uma comemoração de formatura marcada por múltiplos encontros.

Instaurada como ocasião para que os jovens formandos abram um bate-papo com a população mais ampla acerca da função social de práticas cênicas passíveis de serem desenvolvidas por toda e qualquer pessoa independentemente da noção de talento, a Mostra visa em alguma medida apresentar à sociedade os resultados da formação para a qual ela contribuiu. Assim, assumem o primeiro plano a valorização do trabalho coletivo, a capacidade de agir “como se” que nos permite estar simbolicamente no lugar do outro, assim como experiências que aprofundam a percepção sensível. A formulação de metáforas que passam pelo corpo – conhecidas de todos nós desde o faz-de-conta infantil- torna-se o eixo dos processos desenvolvidos pelos estudantes.

Do ponto de vista desses últimos, a monografia de conclusão de curso resulta de um projeto de pesquisa formulado a partir de uma interrogação pessoal no campo das Artes da Cena. Durante o último ano do curso essa pesquisa vai sendo acompanhada pelo docente e pela própria turma, que a discutem coletivamente. Na perspectiva dos alunos desses formandos é notável a satisfação de partilhar com uma plateia na própria USP uma parte das vivências por eles exploradas. “Ao voltar para casa vou dizer à minha mãe: hoje eu entrei na USP !!!” foi o comentário divertido de um jovem no Teatro-Laboratório da ECA que marcou a todos os que o escutaram. Ano após ano, outras falas ditas em meio a largos sorrisos ainda ressoam entre nós: “a gente aprende a respeitar o jeito do outro, a gostar de conversar”, “com o teatro a gente fica mais crítico” ou “o grupo é a melhor coisa da minha vida”. O desenvolvimento da capacidade de jogar teatralmente contribui para que essas crianças e jovens cresçam em termos da comunicação teatral dando forma à sua visão de mundo e assim, simbolicamente, exerçam uma ação sobre ele.

Fotografia colorida mostra estudante de Licenciatura em Artes Cênicas durante atividade na Escola de Aplicação da USP. Ele coordena uma roda formada por dezenas de crianças que aparentam ter entre 6 e 8 anos. Todos estão sentados no chão e algumas crianças levantam a mão em resposta às questões do estudante. No canto esquerdo da imagem aparecem as mãos de uma fotógrafa que registra a atividade. No fundo da sala, um grande espelho reflete a cena.
Estudante de Licenciatura em Artes Cênicas conduz atividade na Escola de Aplicação da Faculdade de Educação (FE) da USP. Foto: Diego Camelo. 

Como sabemos essas duas últimas décadas testemunharam aceleradas mutações no âmbito das artes da cena nos países do Ocidente, o que transparece também nos processos artísticos coordenados pelos estudantes. Se nos primeiros anos da Mostra havia tendência à apresentação de espetáculos curtos, hoje as variantes em torno de improvisações, performances, vídeos, instalações ganham o primeiro plano, reiterando a fragilização das fronteiras entre o teatro, a dança, o cinema, as artes visuais. O percurso histórico da Mostra é revelador do quanto a cena vem se reinventando para tentar dar conta das incertezas e instabilidades de sociedades em intensa transformação.

Temos observado que as aprendizagens proporcionadas pelos recém docentes vêm sendo cada vez mais calcadas no aguçamento de percepções sensíveis nas quais o encontro, a suspensão do isolamento e a constatação do embrutecimento engendrado pelos ásperos desafios do cotidiano ganham proeminência. Ano após ano temos acompanhado a proposta de relações que intencionalmente embaralham as funções dos atuantes e dos espectadores.

“Possibilidades de criação nos tempos de destruição”, título da Mostra que chega agora à sua vigésima edição remete diretamente à partilha da indignação que nos atravessa no momento brasileiro atual. Realizada de modo virtual – assim como temos feito nos dois últimos anos – ela se propõe a refletir sobre a força de transgressão contida na experiência cênica e nos desafios vinculados ao atuar junto que a caracteriza. Se por um lado continuamos nos ressentindo da lacuna das presenças, temos agora a oportunidade de acolher através da tela todas as pessoas interessadas, para além de limites territoriais.

Vida longa à Mostra de Licenciatura em Artes Cênicas da ECA! Que ela permaneça reinventando elos entre a cena, a educação e a esfera social, de modo a fortalecer práticas artísticas plenas em contextos diversificados e a responder aos amplos desafios suscitados pela relação entre a USP e a sociedade.

 

Publicado originalmente no Jornal da USP 

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