Como um mascote inofensivo virou centro de uma guerra de narrativas

Artigo publicado na revista RuMoRes analisa ressignificações do personagem Zé Gotinha no período pandêmico
 

Vida acadêmica

Durante a pandemia de covid-19, o personagem Zé Gotinha, responsável por promover o Programa Nacional de Imunizações (PNI) entre as crianças, se viu no meio de uma disputa política sobre a sua figura. É a respeito desse embate de narrativas que trata o artigo Saúde Mascarada: tensionamentos e apropriações do personagem Zé Gotinha durante a pandemia brasileira, assinado por Renné Oliveira França e publicado na última edição da revista RuMoRes

Renné é pós-doutor em Comunicação Social pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), além de possuir mestrado e doutorado nessa área pela mesma instituição. De início, o autor esclarece que personagens ficcionais também podem ser compreendidos como celebridades, já que eles veiculam valores e sentidos, além de mobilizar setores sociais.

Criado em 1986 pelo artista plástico Darlan Rosa para a campanha de vacinação contra a poliomielite, Zé Gotinha possui um traço antropomórfico, que o aproxima do público infantil, e sua imagem está comumente ligada à simpatia, bondade e alegria. Entre 2020 e 2021, no entanto, o personagem sofreu diferentes tentativas de alteração da sua imagem e dos valores associados a ele. Como o Zé Gotinha passou de um inocente mascote da vacinação a centro de uma guerra de significados simbólicos entre apoiadores e detratores do atual governo? 

 

A Imagem de Zé Gotinha
 
Foto de uma folha de papel onde há o desenho do personagem Zé Gotinha. Acima, está escrito “saindo do logo”. Na parte de baixo, há uma assinatura de Darlan, datada de 1987. A parte central da folha é ocupada por cinco figuras branco-azuladas com cabeça em forma de gota e corpo com pernas e braços. Cada uma delas está em diferentes posições e associadas a um ano, na seguinte ordem, da esquerda para a direita: 1986 a 1990.
Imagem: Darlan Rosa/Arquivo pessoal

Para responder essa questão, Renné analisou imagens e sentidos aos quais a figura de Zé Gotinha esteve associada ao longo de seus mais de 30 anos de existência. Nas diversas peças publicitárias e até mesmo pequenos filmes que ele estrelou até o fim dos anos 80, o herói mágico é a principal encarnação do personagem  – aqui, ele usa força e tecnologia, em uma abordagem que mistura mágica e ciência para se conectar com as crianças. 

Na época do governo Collor, que gostava de se apresentar como um homem saudável, Zé Gotinha assume um caráter esportista, combatendo vírus e doenças através do boxe, do caratê e do futebol, entre outros esportes. Gradativamente, ele se transforma em uma celebridade, em um processo que também se observa nos famosos de carne e osso . O artigo aponta que ele teve a “capacidade de personificar valores, anseios e ideias de uma determinada época e lugar”, a ponto de conseguir promover um programa de vacinação que erradicou totalmente a poliomielite, dando início a uma era de sucesso do PNI

Depois de uma década um pouco apagada, Zé Gotinha retorna aos holofotes em dezembro de 2020, durante o lançamento do Plano Nacional de Operacionalização da Vacina Contra Covid 19. Foi nesse evento que a sua figura começou a ser alvo das disputas narrativas. 

 

Três momentos-chave
 

Nesse evento de lançamento, Zé Gotinha se recusa a apertar a mão do presidente Bolsonaro. Além disso, apesar de se tratar de um boneco, ele é o único que está de máscara, ao contrário do presidente e de seu então ministro da Saúde. Renné considera essa a encarnação rebelde do personagem, que acaba protagonizando, de maneira acidental ou não, um ato de resistência contra o negacionismo científico do governo. Como ele está associado a valores positivos, a rejeição ao aperto de mão de Bolsonaro passa a significar uma luta contra o mal.

O pesquisador analisou as reações dos usuários da rede social Twitter, que rapidamente se engajaram em um embate sobre o significado da ação de Zé Gotinha. Eles chegaram a associar sua máscara à uma mordaça, pois somente coagido ele poderia estar naquele lugar. Como aponta Renné, Zé Gotinha foi “um vetor na disputa de sentidos que se dava naquele momento e um importante personagem na guerra de narrativas que se seguiria a partir dali. Reforçando seu caráter célebre, ele amplificou anseios de uma parte da população ao se negar a apertar a mão dos valores de outra". 

Um ano depois, Zé Gotinha logo se viu mais uma vez em uma cena que ganhou diversas interpretações. Em janeiro de 2021, ele foi chamado para receber a primeira leva de vacinas da Oxford, no aeroporto do Galeão, no Rio de Janeiro. Os  ministros da Saúde e das Relações Exteriores, também presentes ao evento, deixaram o mascote de lado desde o início. No fim, ele foi flagrado sozinho na pista do aeroporto, “abandonado” pelos ministros

Print de um tweet de Eduardo Bolsonaro, em que ele afirma “Nossa arma é a vacina” e publica uma ilustração do personagem Zé Gotinha, na qual ele usa a bandeira do Brasil como uma capa amarrada no pescoço e segura uma seringa em formato de fuzil. Ele dá um sorriso que busca parecer simpático. Atrás dele, está um fundo azul.
O post feito pelo filho de Bolsonaro provocou críticas de Darlan Rosa e da Sociedade Brasileira de Pediatria. Imagem: Reprodução/Twitter

Dessa vez, ele nem precisou fazer nada. Estar ali sozinho foi visto como um ato de resistência – já que apenas ele parecia ter permanecido durante o desembarque das vacinas –, e também uma síntese do descaso do governo em relação à política de imunização. A imagem que se espalhou nas redes sociais mostrava alguém que aparentava ser de fora, uma pessoa não desejada naquele espaço. Isso fez com que ele ganhasse, novamente, o protagonismo que deveria pertencer ao governo, ressignificando, numa chave contrária, a cena pensada pela equipe do presidente. 

Após os contrários ao governo terem se apropriado de Zé Gotinha para emitir seus valores e ideias, foi a vez do deputado Eduardo Bolsonaro, em março de 2021, fazer o mesmo. No seu Twitter, ele divulgou uma ilustração na qual o personagem, ornado com uma bandeira do Brasil, empunhava uma seringa em formato de fuzil. A imagem viralizou nos dois lados do espectro político, porém com interpretações distintas - os bolsonaristas gostaram, ao passo que muitos outros ficaram indignados com a imagem. Segundo estes últimos, tratava-se de uma deturpação dos ideais sempre encarnados por Zé Gotinha, isto é, bondade e pacifismo. 

 

Aspectos Políticos 
 

No entanto, Renné chama a atenção para o fato de que Zé Gotinha já foi, no passado, associado a um caráter bélico. Esse detalhe de sua biografia acabou sendo convenientemente esquecido na hora de criticar os discursos violentos do presidente e de seus apoiadores, bem como sua militância pela ampliação do acesso a armas de fogo. “O que parece ter chocado foi a ausência de um adversário. [...] Na imagem de Bolsonaro, ele faz apenas um uso fetichista de sua arma/seringa. Não há objetivo a não ser a destruição (ou morte) pela destruição”, afirma o pesquisador. 

Capturas de tela de dois trechos da animação Zé Gotinha - A História. A primeira mostra Zé Gotinha vestido de caubói, com um chapéu e uma cinta marrons e lenço vermelho no pescoço. Ele entra  pela porta de um saloon empunhando duas seringas e dispara o líquido que está dentro delas, que sai como se fossem tiros. Já a segunda captura traz vários Zé Gotinha dentro de naves redondas e azuis, que estampam a letra T na frente, em referência aos linfócitos T. As naves disparam tiros luminosos.
Cenas que mostram um Zé Gotinha menos pacífico e mais belicoso. Imagem: Zé Gotinha - A História/YouTube

Isso revela uma faceta interessante e talvez até inesperada de Zé Gotinha. Como celebridade e vetor de mobilização coletiva, ele está sujeito a interpretações de cunho político. A personagem está inserida no imaginário social, o qual define modelos de conduta. Dessa forma, controlar os sentidos e valores associados ao personagem garante mais poder e influência sobre uma importante fonte de regulação social. É por essa razão que o Zé Gotinha é muito mais do que só um boneco. Possuir o comando de sua narrativa significa um controle sobre o imaginário social. 

Quando a liderança e autoridade de Bolsonaro são questionadas pelo não cumprimento de Zé Gotinha, ou quando seu aparente abandono na pista do aeroporto espelha a ausência de uma política federal de saúde, membros do governo tentam ressignificar sua figura, trazendo-a para junto do imaginário bolsonarista. Contudo, segundo Renné, os imaginários dão aos personagens a força de um arquétipo, o que torna difícil uma mudança muito radical do seu sentido original e acaba provocando reações. Por isso, o tiro dado pela família Bolsonaro acabou saindo pela culatra, pois Zé Gotinha teve seu status reforçado e ampliado, desta vez por meio de uma nova ressignificação.

Agora, ele é também o salvador. A postagem de Eduardo Bolsonaro fez com que o signo se abrisse, “permitindo que qualquer um se desse o direito de ressignificar um personagem até então intocável. Várias imagens de um Zé Gotinha guerreiro, resistente, salvador, surgiram por artistas diversos”, escreve Renné. Ele é um baluarte contra o negacionismo e a favor da ciência. 

Renné conclui que o motivo que possibilitou o estabelecimento de Zé Gotinha como uma figura de resistência foi o fato de que ele opera na mesma esfera explorada pelos bolsonaristas. O governo atual se vale da ficção, com a disseminação de fake news e a circulação de narrativas nitidamente inventadas, para justificar suas falhas e combater seus inimigos. Nesse contexto, um personagem ficcional tem os atributos necessários para impor e disseminar uma contra-narrativa de resistência. Como nota Renné, “se quase toda publicização no govern o Bolsonaro é um constructo fake, um ser fake possui as mesmas dimensões e forças discursivas para operar como um revolucionário.”

 

Revista RuMoRes
 

A Revista Online de Comunicação, Linguagem e Mídia (RuMoRes) é uma publicação semestral do Grupo de Estudos de Linguagem e Práticas Midiáticas (MidiAto), responsável por divulgar artigos e resenhas que refletem sobre comunicação, cultura, mídias e linguagem. A edição atual traz o dossiê Celebridades, política e engajamento público, em que os estudiosos discutem “os regimes de visibilidades midiáticas contemporâneas”. Esse número  também traz artigos sobre outros temas, como a questão da violência doméstica no relato jornalístico. 

 

 


Imagem de capa: Reprodução/YouTube
 
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