Pós-doc da ECA lidera departamento dedicado à neurociência da música

Maestro Allan Christian coordena o Departamento de Neurociência e Estudos da Mente da Universidade Benhoblô, em Guiné-Bissau

Vida acadêmica

Em junho deste ano, Allan Christian Domingues Souza, pós-doutorando do Departamento de Música (CMU), recebeu um convite do outro lado do Atlântico. O maestro foi nomeado diretor e coordenador do Departamento de Neurociência e Estudos da Mente (DNEM) do Instituto de Ciências Biológicas e da Saúde (ICBS) da Universidade Benhoblô, na Guiné-Bissau.  

Este é o primeiro departamento de uma universidade em todo o mundo a se dedicar integralmente à pesquisa em neurociência da música. Allan define a neurociência da música como “o ramo da neurociência que estuda os fenômenos da prática musical passiva e ativa”. Por se especializar nesse tema desde seu mestrado, Allan colaborou na fundação do departamento, em julho, e desde então está conduzindo a coordenação. O professor tem como principais objetivos desenvolver atividades de pesquisa, ensino e extensão e – após a  regulamentação do governo da Guiné-Bissau, que está em processo –, o programa de Pós-Graduação em Neurociência da Música (mestrado e doutorado). “Tenho um imenso desafio pela frente, mas certamente será gratificante e frutífero para a minha carreira”, afirma.

 

Modelo composicional de Ligeti
 
Foto em preto e branco do rosto de um homem idoso. Ele é branco, tem cabelos lisos e grisalhos e olhos escuros. Ele  usa óculos de aro quadrado e veste camisa e suéter.
György Sándor Ligeti se destacou como um dos mais conceituados compositores de música erudita do século XX. Imagem: Wikimedia Commons

Em sua pesquisa de pós-doutorado em andamento na ECA, o maestro percorre diversos campos de conhecimento. “É um projeto fundamentado na área da música, porém contempla as áreas da acústica (física), psico-acústica (sob a ótica da neurociência), história e estética musicais, dentre outras”, explica.

A micropolifonia é um modelo composicional desenvolvido por Ligeti na segunda metade dos anos 1950. Este modelo funde elementos sonoros diversos em uma massa única, de modo que não seja possível identificar individualmente cada um desses componentes dentro da resultante sonora. Ou seja, “o ouvinte escuta algo completamente distinto da somatória dos elementos sonoros”, o pesquisador esclarece.

Mas como isso acontece? A psicoacústica é a área que investiga a maneira como o corpo humano recebe e processa os estímulos sonoros. Ligeti se apropriou de ferramentas e princípios da psicoacústica (resolução temporal auditiva humana, espacialidade, simultaneidade, permutação tímbrica, etc) e manipulou o material sonoro em suas composições de forma que a recepção destes fosse "sensorialmente distinta em relação aos sons emitidos pelos instrumentos". Desta maneira, Ligeti emulava fenômenos em massas sonoras que eram percebidos de maneira completamente diferente da soma dos sons que as compunham.

Entre as mais notáveis obras Ligetianas concebidas sob este modelo, estão Apparitions, Atmosphères, Requiem, Lux Aeterna e Lontano. Confira a seguir a composição Lux Aeterna.

 

Áudio: Reprodução/Youtube

 

 

 

 

 

Neurociência da música
 

A explicação para essas alterações da percepção sonora está na neurociência, especialmente na neurofisiologia da escuta musical, área de foco de Allan. Ele afirma que esse “é um ramo que estuda a maneira como as estruturas anatômicas do sistema nervoso funcionam [...] e investiga o ‘mapeamento’ neuronal dos fenômenos inerentes ao corpo humano”. 

O maestro explica que diversos fenômenos neurológicos são desencadeados durante a escuta musical. Cada um deles são “caminhos” que os impulsos percorrem dentro do sistema nervoso, e podem variar de pessoa para pessoa. Após passar pelo córtex auditivo - região que processa os estímulos sensoriais que foram captados e absorvidos na forma de som pelo ouvido -, os estímulos sonoros se convertem em impulsos sinápticos que seguem para o cérebro, onde são processados e geram respostas. A partir daí, o organismo de cada indivíduo recebe e processa individualmente os elementos  do discurso musical.

Ilustração  digital da anatomia de um ouvido humano. É possível identificar a parte externa da orelha, o canal por onde entram as ondas sonoras, ossos pequenos e nervos. A imagem é bastante colorida e todos os elementos são nomeados em letras pretas.
O ouvido pode ser dividido em três partes: externo, médio e interno. Cada uma delas têm sua função na captação, transformação e recepção das ondas sonoras. Imagem: Wikimedia Commons

Entretanto, no caso da micropolifonia há distinções no fenômeno da escuta desde o processo de captação pelo ouvido. Isso porque a micropolifonia ultrapassa certos limites que o ouvido humano possui. Esse órgão tem uma resolução temporal – a capacidade de captar frequências – de 20 Hertz a 20.000 Hertz, e consegue  perceber individualmente até cerca de 20 estímulos por segundo.

Allan explica: “se batermos em uma mesa, ouviremos o som de uma batida na mesa. E você consegue perceber que o som advém da batida na mesa, pois ele possui um timbre (uma assinatura sonora, a grosso modo) facilmente reconhecível. Porém, se batermos continuamente mais de 20 vezes por segundo nesta mesma mesa, não mais ouviremos as batidas, e sim um som contínuo. E este som contínuo possui um timbre completamente distinto do timbre que as batidas na mesa emitem. Assim, transita-se, por exemplo, da propriedade da duração ou ritmo (incidência de batidas na mesa) para a propriedade timbre, ao romper a barreira das 20 batidas por segundo”.

O pesquisador acrescenta que existem diversos outros fenômenos de manipulação da percepção auditiva humana fundamentais para o modelo micropolifônico e para a obra de Ligeti. Ele cita a permutação tímbrica e a exploração espectral (manipulação dos harmônicos que compõem um som natural) como alguns desses recursos.

O estudo desses fenômenos “abre um horizonte infinito de possibilidades de conquistas científicas e aplicações diretas e indiretas para as mais variadas áreas do conhecimento humano”, segundo o pesquisador. Entre outras, ele destaca possibilidades em:

Imagem de uma cabeça com uma peça faltando. O formato de um rosto de perfil foi cortado em uma folha de papel branca . No meio da região onde estaria o cérebro, foi recortada uma área com o formato de uma peça de quebra-cabeça. O fundo da imagem é azul.
Segundo o professor, a neurociência da música também pode colaborar na investigação da resistência da memória musical ao Mal de Alzheimer. Imagem: Freepik
  • Criação de redes computadorizadas baseadas em simulações neurais e algoritmos musicais;
  • Aplicações clínicas para tratamentos psicológicos, psiquiátricos, auditivos, endocrinológicos, etc.;
  • Produção de instrumentos eletroacústicos, aparelhos auditivos e de áudio; 
  • Neuroplasticidade (capacidade do cérebro de se adaptar estrutural e funcionalmente após novas experiências);
  • Desenvolvimento do estudo da composição e da performance musical.

 

 

A Universidade Benhoblô e o DNEM
 
Foto de estudantes em frente ao prédio do Instituto. Diversos homens e mulheres estão reunidos posando para a foto. Alguns estão em pé e outros estão abaixados. Todos são negros. A fachada do prédio é branca e tem algumas janelas. Duas vigas da fachada estão pintadas com os dizeres  “Instituto Superior Politécnico Benhoblô”, em letras brancas com fundo azul
Foto tirada em outubro de 2011 com estudantes  do então recém-inaugurado Instituto Superior Politécnico Benhoblô. Imagem: Acervo da Universidade Benhoblô

Em 2011, foi fundado o Instituto Superior Politécnico Benhoblô, que se transformou na atual Universidade Benhoblô, uma faculdade internacional que busca propiciar a integração entre instituições. Com atuação presencial e remota, docentes de diversos países se esforçam para fomentar o ensino e a pesquisa científica na Guiné-Bissau. Atualmente, há acordos em vigor com a University of Birmingham, da Inglaterra, com a Universidade Federal de Alagoas (UFAL) e com o Centro Universitário Ítalo Brasileiro.

A Universidade, além de oferecer para Allan os postos de professor e pesquisador, concedeu a ele e ao diretor do ICBS plena autonomia para eleger os temas de estudo do Instituto. “Foi aí que prontamente decidimos pela neurociência da música, devido aos potenciais científicos e às nossas áreas de expertise”, relata o compositor, que logo em seguida ajudou a fundar o DNEM.

Foto da biblioteca da Universidade. Nas paredes, estão encostadas prateleiras de metal repletas de livros. Mesas de madeira formam um semicírculo no meio da sala. A maioria das cadeiras é de plástico. Um rapaz está sentado em uma delas. Ele é negro, tem cabelos curtos e escuros e veste uma camiseta verde. Ele está lendo um livro. O ambiente é escuro, apenas uma lâmpada amarela o ilumina.
Imagem: Acervo da Universidade Benhoblô

Os projetos do Departamento se dedicam a objetos relacionados aos fenômenos neurais da prática musical e aos elementos da música que são inerentes à neurociência. Além dos programas de iniciação científica e pós-doutorado nessas áreas que já são oferecidos, está sendo produzida a primeira edição de uma revista científica sobre o tema, a Neuroversum Musicum.

 


 

 

 

 

Imagem de capa: Reprodução/ NPR
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