Acervo da sonoplasta Tunica Teixeira dá origem a nova linha de pesquisa
Projeto da ECA contemplado em programa da Fapesp irá desenvolver metodologia para pesquisa sobre o som em espetáculos teatrais

Rafaella Uhiara, doutora em Artes Cênicas e pesquisadora do Centro de Documentação Teatral (CDT) da ECA, está reunindo uma equipe — da qual farão parte estudantes de graduação e pós-graduação, docentes e pesquisadores do Brasil e do exterior — para, nos próximos cinco anos, se dedicar à criação de uma nova linha de pesquisa: o estudo do som em espetáculos teatrais. O projeto da pesquisadora inclui o tratamento, a preservação e a disponibilização ao público do espólio de quase meio século da sonoplasta paulista Maria Antonia Ferreira Teixeira, conhecida como Tunica Teixeira, que está sob a guarda do CDT.
Arquivos sonoros de teatro: implementação de uma base para a pesquisa da dimensão sonora de espetáculos é o segundo projeto na área de Artes Cênicas contemplado pelo programa Jovem Pesquisador, da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp).
Sonoplastia: uma palavra bem brasileira
“O som é bissensorial, a gente não ouve só com os ouvidos, o som é vibração, é tátil. O som vibra no nosso corpo”. Para Rafaella Uhiara, ainda que o cinema também seja uma experiência presencial, no teatro, há uma percepção coletiva mais forte do público, uma sensibilidade maior da presença dos sons e dos atores e atrizes. Outra característica do teatro é a capacidade que o som tem de tomar conta de todo o ambiente. “Com a visão, você foca [no que quer ver]. Com o som, é sempre tudo ao mesmo tempo”.
Tanto na França, onde Rafaella fez pós-graduação, como em países de língua inglesa, não existe uma palavra no dicionário para designar a pessoa que cria o som para o espetáculo. Sonoplasta é um termo que tem origem no rádio, sendo usado no Brasil desde pelo menos a década de 1930, acredita a pesquisadora, para distinguir profissionais e funções diferentes nas emissoras. “Eu acho uma palavra incrível porque faz referência à plasticidade do som”.
O termo acaba migrando para outras artes, como o teatro, o cinema e a televisão, o que mostra como os profissionais da sonoplastia transitavam por várias áreas. "Quem são os sonoplastas da metade do século 20? A gente vai estudar tudo isso, mas provavelmente eram pessoas que trabalhavam na rádio, que trabalhavam na televisão. Então, tem-se ali um trânsito de saberes, de tecnologias e de técnicas que vai contaminar as diferentes artes”, explica Rafaella.
Para a jovem pesquisadora, a sonoplastia compreende os sons de um espetáculo como um todo, como é possível observar nos arquivos da sonoplasta Tunica Teixeira — acervo a partir do qual o projeto de pesquisa será desenvolvido. “Ela não criou aquele som para você ouvir sozinho. Aquele som foi criado em relação a muitas coisas, inclusive sonoras, em relação a uma voz, em relação a uma música. Ele faz parte de uma criação polifônica”. Isso torna o processo de criação sonora bastante complexo, com o envolvimento de muitas pessoas, conta a pesquisadora. “Se a gente considerar que o som engloba a voz do ator, então, inclui também o autor, o tradutor, o ator, preparador vocal, o diretor”.
O problema é que o vocabulário sobre o som em espetáculos parou por aí. “Não se fala sobre o som, até por isso, não tem vocabulário”, explica a pesquisadora. “A gente usa muitas metáforas ou pega emprestadas palavras da visualidade”, o que dificulta, conta Rafaella, a consulta a bases de dados e a pesquisa sobre o som em espetáculos.
Lacunas na pesquisa do som
Por muito tempo, a ideia ocidental de teatro foi profundamente atrelada ao texto dramático e somente a seus autores era reservado o status de artista. Foi somente no século XIX que a encenação também passou a ser valorizada como manifestação artística. Nessa época, conta Rafaella, “para distinguir a cena do texto teatral, passou-se a dar uma importância muito grande para a visualidade”. O som ainda era importante, mas, sobretudo, pela sua ligação com o texto, ou seja, pela métrica, pelas rimas dos versos e pela forma de recitar. Isso pode ter contribuído para que o estudo do som nos espetáculos tenha permanecido restrito às vozes dos atores e atrizes.
Com o passar dos anos, surgiram algumas pesquisas, ainda pontuais, sobre a acústica das salas, as técnicas sonoras e a música em cena. Porém, o estudo do som em espetáculos, enquanto linha de pesquisa, ainda dá os seus primeiros passos no Brasil e no exterior. Segundo Rafaella, não existe metodologia consolidada para lidar com arquivos sonoros de teatro. Daí a ideia de submeter um projeto para o programa da Fapesp. “O Jovem Pesquisador visa inaugurar um novo campo de pesquisa, que não existe ainda. O objetivo é menos resolver a questão toda, que é impossível, é grande demais. É mais no sentido de ‘vamos sair da folha em branco’ ”.
Para começar, a proposta é formar uma equipe com pessoas de várias especialidades que tenham interesse e possam contribuir com a nova linha de pesquisa. “Talvez a gente possa aprender coisas com práticas de outras disciplinas e de outros países”. Profissionais que atuam com efeitos sonoros, com música de cena e com interpretação e voz ou, até mesmo, pesquisadores de outros campos do conhecimento são bem-vindos.
Ao contrário de outros acervos teatrais, bastante fragmentados, o acervo de Tunica Teixeira tem mais de sete mil itens. “Ela guardou tudo. Ela tinha todos os cadernos em que anotava as criações sonoras (os cadernos de trabalho), os planos e roteiros de operação de som, os mapas de onde deveriam ficar os equipamentos, os textos de teatro anotados, os raiders [lista de equipamentos necessários para o espetáculo]”. O acervo inclui também toda a biblioteca e todo o acervo de discos, cassetes e gravações das apresentações.
Todo este material ajudará a equipe do projeto de pesquisa a entender o processo de criação sonora em espetáculos teatrais. Também permitirá entender um pouco melhor as mudanças tecnológicas pelas quais passaram os espetáculos teatrais de São Paulo, a partir dos diferentes suportes dos arquivos sonoros da sonoplasta paulista (por exemplo, open reels, cassetes e MDs). Na opinião da pesquisadora, “isso vai dar uma história interessante para a gente, porque a tecnologia acaba moldando também a estética”. Outra dimensão da pesquisa é o uso de arquivos sonoros em cena, ou seja, na criação cênica atual. “Os arquivos podem ser usados em processos criativos como fontes de inspiração. Por exemplo, no teatro documentário”.
O projeto aprovado prevê a organização de colóquios, disciplinas e publicações. Também haverá chamadas para ofertar bolsas para estudantes de graduação e de pós-graduação que queiram contribuir com a pesquisa.
Tunica Teixeira

A carreira de Tunica Teixeira começou cedo, aos 20 anos, na Escola de Arte Dramática (EAD) da ECA. Tunica foi aluna da segunda turma da Escola de Comunicações Culturais, atual ECA-USP, ingressando em 1968, no curso de Rádio e TV. Já no primeiro ano, Tunica passou a frequentar as aulas da EAD a convite de Miroel Silveira, diretor teatral e professor da Escola. Em 1969, começa a sua trajetória como diretora musical e sonoplasta, fazendo trilhas sonoras para montagens curriculares da EAD.
Tunica colaborou com trabalhos da EAD até 1974, quando passou a se dedicar integralmente à sonoplastia de espetáculos profissionais em São Paulo. O curso de Rádio e TV ficou inconcluso. Em 48 anos de carreira, Tunica Teixeira participou de mais de 300 trilhas sonoras para o teatro, além de trabalhos no cinema, na televisão, no rádio e em eventos. Após o falecimento da artista, em 2019, seu acervo foi doado para o CDT, centro de documentação e laboratório de pesquisa vinculado ao Departamento de Artes Cênicas (CAC) da ECA.