Manifesto pelos 60 anos da ECA

Comissão ECA 60 anos e direção lançam manifesto para marcar o início das comemorações pelos 60 anos da unidade, a serem celebrados em 16 de junho de 2026

Artigos
eca
história
memória
60 anos
Arte de um selo comemorativo. Na parte superior, o texto "eca" está escrito em uma fonte arredondada e minúscula, em lilás. Abaixo, um desenho do número "60" em forma de espiral, na cor laranja. Na parte inferior, a palavra "anos”, na cor lilás. O fundo é roxo.
Selo comemorativo dos 60 anos da ECA. Arte: Dorinho Bastos, Juliana Baracat e Susana Narimatsu.

Ecanas e ecanos, estudantes, pesquisadores, funcionários e professores da ECA, cada um que de algum modo se vincula a esta escola, à Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo, este manifesto-convite é para você.

 

A ECA está prestes a completar 60 anos e, como todo mundo sabe, fazer aniversário, mais ainda assim, em data redonda e avançada, é festejar, celebrar, comemorar, brindar, abraçar e agradecer; mas também refletir, pensar, questionar, preparar, planejar, projetar e sonhar. Abrir-se e introspectar-se, convidar para receber e parar um pouco para pensar, pensar na gente mesmo e na nossa vida.

 

Temos na essência a dualidade, aquela das comunicações e das artes, dois universos distintos, próprios, que se integram, se misturam, se combinam, se estranham, se diferenciam, mas que se unificam em primeiro lugar no humano. Somos uma escola e uma comunidade encravadas nas humanidades, portanto no simbólico. Mas o fato é que nos distinguimos porque, mais do que humanos, somos sentido, pensamento e gesto, somos o ato e o verbo em direção ao outro, ao que está do lado de fora, ao mundo e ao tempo que vai vir. A manifestação artística e a expressão comunicante têm dentro de si a certeza do seguinte instante, a crença no que vem depois — porque o susto, o suspiro, o encanto, o drama, o entendimento e a compreensão são, por parte de quem fala, diz e mostra, o lugar de chegada e o ponto de partida. A dúvida, o repúdio e a perturbação também. Existir em função da arte e da comunicação significa transitar o tempo todo entre a sensibilidade, a elaboração, o apuro técnico e o ato sígnico; significa ter em si o espírito do devir e o sentido do outro.

 

Fomos criados em 1966, como sempre se diz, mas como nunca é demais reforçar, em plena ditadura militar. Nascemos impregnados de luta, consciência, coragem, força, graça, juventude, irreverência, ousadia, confiança, esperança.

 

Foto em preto e branco de uma pessoa sentada e digitando em um computador a sua frente. Ela tem cabelos escuros, em tamanho médio e lisos, e veste uma blusa clara. Ao fundo, um quadro escuro, com uma placa retangular branca no topo com o texto “Jornal do campus”, escrito em preto.
Departamento de Jornalismo e Editoração (CJE), no final da década de 1980. Foto: Fernando Scavone/ Eduardo Peñuela.

Tudo aquilo que nos acostumamos a chamar de crítica é, no fundo, fruto desse nosso berço, meio de chumbo, meio de ouro.  Berço-trincheira, mais forjado em pensamentos filosóficos importados da Europa do que em bala ou facão. Mas foi com esse arsenal intelectual que tivemos que nos defender quando nos marginalizaram, quando nos perseguiram, quando nos mataram. Até porque nunca de fato fomos marginais — não ao menos na dimensão social que nos dá corpo de coletivo. Ou deu naquele tempo. Soubemos transformar em matéria acadêmica tudo aquilo que de artístico e comunicacional houvesse naqueles anos de tortura, censura e loucura. E assim nos criamos, crescemos, nos estabelecemos como a grande referência, nacional e internacional, do que é fazer pesquisa e formar em nossas áreas. Foi assim que nos convertemos em sinônimo de excelência, acadêmica, científica, artística, intelectual. Excelência conquistada com o talento dos sábios, cultivada com rigor dos mestres, protegida com o zelo dos diletos, posta à prova pelo novo contexto e pelo próprio espírito do tempo e agora prestes a ser confirmada — e reafirmada — em uma compreensão mais ampla, humana e responsável do que é ser excelente.

 

Foto de quatro pessoas, sentadas à frente de uma mesa retangular de madeira, participando de uma palestra. Um homem branco de cabelos curtos, lisos e escuros, vestindo uma blusa verde escura; uma mulher branca, de cabelos loiros longos e ondulados e usa uma camiseta branca; uma mulher branca, de cabelos avermelhados lisos na altura dos ombros, vestida de preto, falando ao microfone e um homem pardo, de cabelos pretos curtos e óculos, vestindo uma camiseta preta. À frente da mesa, há poltronas nas cores preta e vermelhas com uma pessoa sentada. Ao fundo, uma tela de projeção exibe um slide com o texto 'ECA CELEBRA ORGULHO LGBTI'.
Encontro ECA celebra o orgulho LGBTI (2019). Foto: Amanda Ferreira/ LAC-ECA.

Sempre lidando com o dilema de se estar entre a endogenia aliciante dos que combinam pioneirismo com proeminência e a vocação social dos que misturam o público, o estatal e o político, não podemos deixar de lembrar que nossa existência se dá no âmbito protegido e autônomo da Universidade de São Paulo, mas em direta e intensa conexão com a comunidade — que não apenas está ao nosso redor (porque a rigor nem ao redor está; está junto, dentro), mas que nos legitima, nos financia e, na verdade, nos dá razão de ser. De modo que a nossa trajetória só pode também ser pensada dos nossos muros (que nunca existiram) e das nossas grades (que ainda havemos de derrubar) para fora. A ECA é também o seu efeito nas sociedades paulista e paulistana, a sua inserção no mundo, a sua liderança nacional, a sua natureza latino-americana, a sua projeção sobre as mentes, os imaginários e os corações de todos os que já ouviram falar (bem) da gente.

 

Foto em plano geral de seis pessoas lado a lado, posando de pé e sorrindo, em frente a um prédio. Em primeiro plano, uma placa vermelha com texto branco diz 'SIMULAÇÃO DE EMERGÊNCIA PONTO DE ENCONTRO' com um ícone de extintor de incêndio. Ao fundo, uma faixa amarela com texto vermelho diz 'ALUNOS EM GREVE'.
Funcionárias da ECA durante treinamento para Brigada de Incêndio (2019). Foto: Susana Narimatsu/ LAC-ECA.

Só que a ECA é também uma escola de contradições, de paradoxos, tanto quanto de apaziguamentos e conciliações. Essa ECA mítica dos anos 1960 e 1970, essa que definiu nosso caráter fundamental, é aquela que, como parte da USP, sempre teve também em seu DNA algo de elite — se não apenas elite econômica, ao menos elite intelectual. Foram os professores e os estudantes daquela época, não é preciso ter vergonha de reconhecer, em sua maioria brancos, bem nascidos e bem criados, que lutaram com as armas de que dispunham — e com aquelas que souberam criar sozinhos — em favor de um país mais justo, democrático e livre. Essa ECA real de agora, das primeiras décadas do século XXI, essa que procura conciliar sua herança genética com sua personalidade contemporânea, essa, sim, e isso não pode ser também motivo senão de orgulho, é composta por corpos diversos, corpos que, na perspectiva mais ampla deste nosso complexo e desafiador país, são muitas vezes marginalizados.

 

Eis aí o tema que queremos para esta festa de 60 anos da ECA: democracia e diversidade. Um passado e uma herança, motivo de orgulho, que devem ser preservados; um futuro e um projeto, motivo de esperança, que devem ser perseguidos.

 

Fotografia em preto e branco captura de cinco pessoas conversando em uma sala de aula. Ao centro um homem está sentado e apoia os cotovelos na mesa a sua frente, em que também estão papeis e bolsas. Ao seu redor, outras pessoas estão sentadas, em cima das mesas ou em cadeiras. Ao fundo, uma lousa na parede.
Aula de Criação Publicitária (1982). Foto: Neide Alonso Caprino/ Ágora ECA.

​Como se nota, não é festa tola, apenas de sorrisos, brindes rápidos, abraços automáticos, afagos fáceis, comida para todos e parabéns para você. Também não é bolinho em casa, modesto, improvisado, mais com quem está ocasionalmente perto do que com quem se deveria de fato estar. É festa grande, festona, mas dessas mais interessantes, que misturam sentimentos, porque misturam pensamentos, porque misturam gente. Festa de chorar, de chorar de saudade (dos que perdemos, do que perdemos, do que vivemos), de chorar de alegria (do tanto que ganhamos, do tanto ainda que podemos), de chorar de emoção. Festa de rir, de satisfação (pela autoconfiança recuperada, pela consciência das nossas qualidades), de nervoso (diante do tanto que ainda temos por fazer, diante de tudo o que está por vir) e de contentamento. Festa de reaproximar, de fazer ficarem juntos os que estão apenas perto. Festa de exercitar o pensamento, a reflexão, a crítica — bom, isso é com a gente mesmo —, mas também o sonho, a fantasia, a criatividade e a imaginação — isso também é. Festa que exige casa arrumada, roupa nova, música alta, pasto da melhor qualidade e na maior fartura, tudo aquilo que, depois, se converte em chão sujo e copo quebrado, bagunça e ressaca. Mas também em amor renovado, ciclo fechado e peito aberto para o amanhã.

 

Festa que precisa contar com a presença dos mais velhos, das matriarcas e dos patriarcas, seja em corpo físico, seja nas melhores lembranças. São eles que, dando a bênção, vão garantir que nosso espírito fundante seja preservado e valorizado. Festa da defesa da democracia. Festa que precisa contar com a presença das crianças, dos jovens e dos agregados, dos vizinhos, dos bastardos, dos desgarrados e dos rebeldes. Sem eles também não tem graça. Festa da celebração da diversidade.

 

Vai ser uma festa bonita, mas não dessas festas que, quando a gente chega, já está tudo pronto. Vai ser festa de comunidade, de bairro, de condomínio, de aldeia, com todo mundo contribuindo um pouco com o que pode, com o que tem. Quem é de cantar que cante, quem souber tocar que toque, quem quiser só dançar, tudo bem. Quem for de falar fale bem alto, quem preferir só ficar na cozinha que festeje por lá também, os que só quiserem aproveitar que fiquem à vontade. Ninguém sairá dessa festa do mesmo jeito que entrou.

 

Foto de um grupo de pessoas em um palco de teatro segurando uma grande folha de papel com uma planta arquitetônica. O grupo é composto por indivíduos com diferentes tons de pele e cores de cabelo, tendo ao centro uma mulher negra, de cabelos negros e presos em um coque alto, vestindo uma camisa amarela. Eles estão olhando para o papel e uns para os outros, interagindo entre si. Ao fundo, observam-se os spots de iluminação cênica.
Ensaio do espetáculo 12 Cabeças e Uma Sentença, da Turma 74 da Escola de Arte Dramática. Foto: Amanda Ferreira/ LAC-ECA.

​Enfim, ecanas e ecanos, de todas as partes, de todos os tempos, de todos os jeitos, caras e tipos, a ECA está em festa. E que até as nossas lutas, os nossos embates, as nossas rixas, as nossas indisposições, os nossos duros atritos diários se amoleçam um pouquinho para que esse doce espírito festejante, tematizado na democracia e na diversidade, se entranhe nesses azedumes cotidianos. A gente sabe que defender a democracia e lutar pela diversidade não são exercícios ou desafios fáceis, simples ou que possam ser tratados com leviandade, ingenuidade, irresponsabilidade, alienação ou displicência. Mas também não se consegue nada disso sem algo que nos integre como grupo e nos inspire como coletivo. A festa é também para isso, para que uma história de defesa dos valores da democracia, inclusive o da diversidade, se reforce, se prolongue e se amplie com o reconhecimento de que o nosso devir democrático só vai fazer sentido na diversidade.

 

A ECA está em festa. Um ano de festa. 365 dias de festa. 365 oportunidades para honrarmos o nosso passado e colocarmos em plano e prática o nosso futuro.

 

Em nome dos que nos fundaram sob o signo da defesa crítica e intelectual da democracia e de seus valores hoje mais necessários; em função de todos os que nos compõem atualmente, expressão viva e brilhante da potência transformadora que sempre quisemos ter — e que agora temos e que vamos ter mais — na diversidade; a todos nós, um feliz aniversário!

 

 

 


Foto de capa: Susana Narimatsu/ LAC-ECA.
Notícias do