Docente da ECA analisa fábula inédita de Graciliano Ramos à luz de Paulo Freire
Thiago Mio Salla fala sobre manuscrito de Os filhos da coruja na última edição da revista do IEB; docente idealizou e organizou coleção do autor alagoano recém-lançada
"Quem ama o feio, bonito lhe parece". O ditado popular resume bem a moral da fábula A águia e a coruja, de Jean de La Fontaine. Não à toa, ele é evocado por Monteiro Lobato em uma das versões brasileiras para a fábula do poeta e escritor francês. Na história, a águia e a coruja combinam não devorar os filhotes uma da outra, e a águia acaba induzida ao erro pela descrição idealizada que a mãe coruja faz de seus filhos, que seriam belos e de canto doce. Ao ver filhotes horrorosos que emitem gritos perturbadores, a águia as devora sem pestanejar. Mas um manuscrito recém-descoberto de Graciliano Ramos traz a fábula para cenários mais terrenos e brasileiros e apresenta uma "moral não moralista".

Os filhos da coruja, documento de 1923 com duas páginas assinado por um tal de J. Calisto, era um dos itens da categoria 'Manuscritos recebidos de autores não identificados' do Fundo Graciliano Ramos, que integra o acervo do Instituto de Estudos Brasileiros (IEB) da USP. Acontece que J. Calisto deixou de ser um autor não identificado. Como explica Thiago Mio Salla, professor do Departamento de Jornalismo e Editoração (CJE) e especialista na obra do autor alagoano, "J. Calisto foi um dos muitos pseudônimos que Graciliano Ramos (1892-1953) utilizou principalmente no início de sua trajetória literária para encobrir sua autoria".
Na verdade, o docente e pesquisador afirma tratar-se de mais do que um simples pseudônimo. "Por meio dessa alcunha, Graciliano constrói a figura de um cronista irônico e sarcástico que se sobrepõe às personagens e aos fatos apresentados." Ao mesmo tempo que assume um papel de "observador sociocultural" crítico e debochado, J. Calisto incorporava às suas narrativas elementos familiares aos leitores, para manter-se próximo deles e conquistar sua cumplicidade "em novas leituras de velhos episódios".
Pedagogia da autonomia em "La Fontaine à brasileira"
No artigo “Os filhos da coruja” de Graciliano Ramos: pedagogia da autonomia em fábula inédita do autor de Vidas secas, publicado na última edição da revista do IEB, Thiago propõe uma interpretação da fábula que dialoga com concepções de Paulo Freire e a distancia das versões de Monteiro Lobato (em Fábulas de Narizinho, de 1921 e Fábulas, de 1922) e Justiniano José da Rocha (em Coleção de fábulas imitadas de Esopo e de La Fontaine, de 1875). Para isso, ele recorre a elementos da biografia e da obra de Graciliano.
Graciliano escreve Os filhos da coruja três anos após a morte de sua esposa, Maria Augusta Ramos, durante o parto da quarta criança e única menina do casal, que ganhou o nome da mãe. Em 1923, os meninos Márcio, Júnio e Múcio estavam prestes a completar, respectivamente, 7, 6 e 4 anos. O professor da ECA defende a hipótese "de que as três corujas no oco da árvore mencionadas no texto remeteriam alegoricamente a seus três filhos e de que o autor escreveu o texto dirigindo-se de início a eles – de modo análogo ao que observamos, por exemplo, em obras canônicas da literatura infantojuvenil como João Felpudo, de Heinrich Hoffmann, e Alice no país das maravilhas, de Lewis Carroll". Esse também seria o motivo para a fábula trazer em seu título não os protagonistas da história, como de costume, mas os filhotes vítimas da trágica confusão.

Como La Fontaine, o autor alagoano escreve uma fábula em forma de poema, com métrica e esquemas de rima variados, inserindo, nas falas da águia — abrasileirada para gavião —, menções ao Nordeste e à seca. São quatro blocos: no primeiro e no terceiro (com seis e oito versos, respectivamente), há um narrador em terceira pessoa que narra e descreve; no segundo, mais longo (40 versos), toma lugar o diálogo entre a coruja e o gavião; no último (com dez versos), expõe-se a moral da história. "Nessa parte, a frase 'Homem que me escutaste', ao evocar não uma criança, apela para a maturidade dos leitores ao mesmo tempo que vincula de modo explícito a história à tradição oral", destaca o docente da ECA.
"Deixa-se de lado a figura da 'mãe coruja' e prioriza-se uma lição de vida voltada a todos aqueles que mentem para si mesmos, iludem-se e transformam vícios em virtudes. O narrador destila a ideia de que todos temos de olhar criticamente para nossos próprios defeitos, nos libertarmos da falsa proteção das asas maternas, pois caso contrário seremos presas fáceis (indefesos filhotes de coruja) diante de outros homens (gaviões com seus bicos e garras)."
Thiago Mio Salla, professor do Departamento de Jornalismo e Editoração
Fábula antecipa imagens e ideias gracilianas
O professor ainda ressalta como a moral da fábula lembra outras imagens cunhadas pelo escritor alagoano e evocadas por João Cabral de Melo Neto no poema Graciliano Ramos, de 1961: "Falo somente por quem falo: por quem existe nesses climas condicionados pelo sol, pelo gavião e outras rapinas." Thiago também chama atenção para o papel da coruja em outras obras de Graciliano, como em São Bernardo (1934), romance em que o pio de uma coruja é o elemento desencadeador da narrativa em primeira pessoa de Paulo Honório, protagonista viúvo, derrotado e amargurado.
"Antes de seus romances, antes de seus livros de memória, dirigindo-se a um público restrito, Graciliano já procurava incutir a necessidade de uma ação libertadora fundada no juízo crítico em relação ao universo violento e excludente a seu redor", diz o docente sobre o que Os filhos da coruja revela a respeito de seu autor. Thiago ainda afirma que Graciliano, "avesso a dogmatismos, valendo-se de uma moral não moralista", defende que é preciso abandonar a vaidade e questionar certezas e incertezas para tomar consciência do que deve ser superado.
"Mas isso só seria possível se os oprimidos se assumissem como corujas num mundo repleto de gaviões. E, enquanto tais, reconhecessem suas mazelas e lutassem pela própria liberdade, visto que, conforme bem ensina Paulo Freire, ninguém pode ser considerado sujeito da autonomia de ninguém", diz o docente.

Professor é idealizador e organizador de coleção que traz texto inédito e clássicos de Graciliano Ramos
Em abril de 2024, a editora Todavia lançou as primeiras obras da Coleção Graciliano Ramos: o inédito Os filhos da coruja e novas edições de Angústia e Vidas secas. Na época do lançamento, o professor do curso de Editoração Thiago Mio Salla, idealizador e organizador da coleção, contou ao Jornal da USP que “a ideia é trazer um ‘velho-novo Graciliano’, no sentido de que estamos trabalhando com livros já conhecidos, mas com uma abordagem do ponto de vista editorial que procura trazer inovações, sobretudo no que diz respeito à restituição do texto à última vontade do autor, ou seja, pautada pela fidedignidade ao último ânimo autoral dele e de suas revisões”. Leia a matéria completa e saiba mais.