CAC | Departamento de Artes Cênicas



Teatro e pandemia: novas possibilidades de existência para os palcos

Com a covid-19, houve forte impacto nas produções teatrais, levando artistas a pensarem em novas formas de trabalho

Comunidade

O Dia Mundial do Teatro é comemorado em 27 de março. Neste ano, porém, a data será lembrada de uma maneira diferente.  O mundo já não é mais o mesmo com a atual pandemia de coronavírus. Países de todo o planeta estão sofrendo as consequências desta crise, que são econômicas, sociais e também psicológicas. Como em um filme, foi dada uma pausa no cotidiano da humanidade e, compulsoriamente, cada indivíduo é levado a pensar sobre sua forma de existir no mundo: o trabalho, as relações, a maneira como utilizamos nossos recursos, o que se espera de fato da classe política, como gerir pessoas em vulnerabilidade social, etc. São diversos problemas para serem resolvidos em um curto período de tempo e cada escolha pode determinar a vida e a morte de milhares de pessoas. 

No meio disso tudo, está também a classe artística, que lida há tempos com vários tipos de discriminação. Diante de uma criança brincalhona, com muita energia, é comum escutarmos frases como "está fazendo arte". Outra frase ouvida com frequência diz que “todo artista é vagabundo”. Esse tipo de comentário revela a predominância, em nossa sociedade, da ideia de arte como algo supérfluo, dispensável. Há, portanto, um preconceito estrutural em relação às artes, provavelmente atrelado à crença do valor mercadológico das profissões, no sentido de que há algumas mais importantes e "úteis" que outras.

Foto de pintura rupestre. Ela é composta por desenhos de seres humanos e de um animal, em tons de preto, marrom e vermelho. A maioria dos humanos retratados aparece em pares.
Pintura rupestre representa uma cena de dança ritual, na área de Cogul, sul da Espanha. Foto: Wikimedia Commons.

No entanto, o teatro é tão antigo quanto a humanidade, o que coloca esse imaginário em xeque. Transformar-se em outro é uma das formas mais fundamentais da expressão humana e, desde o período pré-histórico, o homem tem a necessidade da representação e de rituais, muitas vezes até para compreender o mundo que o rodeia. A existência de diversas vertentes na arte teatral,  em vários lugares do planeta, como o Teatro do Absurdo, Teatro de Bonecos, Teatro Grego, Kabuki, Teatro Nô, Commedia Dell'Arte, Teatro de Rua, entre muitas outras, significa por si só o caráter universal deste tipo de manifestação. O teatro canaliza a necessidade de expressão inerente à natureza humana e a vida em comunidade. 

Nos últimos anos, o setor vem travando batalhas contra a falta de recursos e apoio governamental, na linha de frente diante dos ataques à cultura. Há algumas pequenas vitórias. Para o professor Luiz Fernando Ramos, do Departamento de Artes Cênicas (CAC), houve um avanço com a criação do Programa de Fomento ao Teatro da Cidade de São Paulo, que objetiva a criação de trabalhos continuados, como os desenvolvidos pelas universidades: “Isso fez uma enorme diferença para o teatro de São Paulo, no sentido de inovar e criar novos grupos e novas perspectivas, com resultados variados e amplos, e esse crescimento foi suficientemente fortalecedor para que haja resistências, para que haja bases para resistir [aos ataques do governo]”, comenta. 

 

A sobrevivência do teatro em meio à pandemia

Com a pandemia de coronavírus na cidade de São Paulo, novas formas de existência tem sido pensadas para os artistas, não sem controvérsias e polêmicas, já que temporadas de espetáculos, apresentações e shows foram todos cancelados. Em decisão tomada no meio da crise, a Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo comunicou a elaboração de um edital para que os artistas da cidade fizessem apresentações de suas janelas. Com recurso inicial previsto de 10 milhões de reais, a iniciativa tinha o intuito de viabilizar as obras de artistas de teatro e músicos, como uma forma de atenuar os impactos da covid-19 na economia criativa. 

No entanto, a justiça suspendeu o edital no dia 23 de março. O motivo foi uma ação popular que questionou a realização do festival, alegando haver possibilidade de que as apresentações estimulassem aglomerações nas ruas. A ação também apresentou críticas ao deslocamento de 10 milhões de reais para a cultura, em um momento que pede prioridade para os investimentos na área de saúde. 

Em meio a uma crise que escancara a insuficiência de políticas públicas para todos os setores da sociedade (saúde, educação, cultura, etc.), os espetáculos teatrais, que tanto dependem do público, tem estado parados.  Para alguns artistas, uma alternativa tem sido as transmissões ao vivo, principalmente pelo Instagram. Muitos também são professores e migraram suas aulas de teatro para plataformas virtuais. 

Banner composto por foto desfocada ao fundo e texto. A foto apresenta uma mesa com cadernos e caneta. O texto anuncia as obras que serão apresentadas.
Banner de evento em que artistas de São Paulo participam de uma leitura dramática on-line. Foto: reprodução/ Facebook de Diego Monteiro, diretor teatral. 

O teatro também acaba sendo um bom antídoto para a solidão de muitas pessoas em quarentena. Um exemplo são as lives de contação de histórias, conduzidas por artistas que atuaram em séries e filmes de sucesso. Esse tipo de iniciativa tem ajudado muitos pais e mães que possuem crianças em casa, demonstrando na prática que o teatro se faz cada vez mais necessário, até como forma de auxílio emocional em meio ao distanciamento social e à crise.

Segundo Lev Vygotski, psicólogo russo  que viveu no século XX, o teatro tem grande importância para as crianças como forma de elaboração do mundo, uma vez que essa linguagem permite a combinação e a reelaboração de elementos de suas experiências pessoais. Por meio do teatro, as crianças exercem sua atividade criadora, dando origem a novas imagens e aprimorando suas formas de expressão e sua capacidade de empatia. 

Além de levar à reinvenção das formas de expressão artística, a pandemia é uma oportunidade para artistas se mobilizarem em prol de ações solidárias e de impacto coletivo. Muitos deles aproveitam a influência de suas imagens para divulgar ações como a SolidariedadeSP, uma rede de voluntários que entrega insumos de primeira necessidade para quem está desamparado neste momento. 

As Artes Cênicas sempre estiveram presentes na vida das pessoas, e no momento atual não deixariam de estar. De uma forma diferente da que estávamos acostumados, o teatro e as artes em geral têm marcado presença em nosso cotidiano, através dos feeds, dos portais, das redes. Em contextos de crise e de tensão econômica, política e social, a arte sempre teve o papel de proporcionar a contemplação necessária, seja de nós mesmos, seja da sociedade como um todo. Nessa contemplação, é possível obter o alento necessário para seguir em meio à adversidade ou um novo estímulo para buscar a transformação da realidade. Hoje, mais do que nunca, é preciso reafirmar a importância do teatro e das artes, para que eles não sejam esquecidos pelas políticas culturais e pela população. 

 

 

Imagem de capa:  Isabel Cristina López Hamze /Cubaescena