Por uma comunicação interseccional: questionar o poder, ouvir as margens

Professora Dayana Melo retoma a história do conceito de interseccionalidade e reflete sobre sua importância na comunicação

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Foto de mulher negra em semi perfil sorrindo. Ela tem olhos castanhos, cabelos cacheados, longos e castanhos com as pontas claras e usa óculos com armação preta e arredondada e batom vinho. O fundo é cinza.
Dayana Melo. Foto: acervo pessoal/Dayana Melo.

Muito antes de ganhar nome e espaço nos debates acadêmicos, a interseccionalidade já estava presente em escritos e práticas de mulheres que experienciavam cotidianamente múltiplas formas de opressão. Mulheres negras, indígenas, latinas, entre tantas outras sujeitas racializadas e subalternizadas, expressaram, com base em suas próprias trajetórias, que raça, classe, gênero e sexualidade não podem ser pensadas como categorias isoladas. Ao compartilhar histórias, organizar lutas, produzir saberes e imaginar outros mundos possíveis, essas mulheres criaram, mesmo sem nomeá-lo, um pensamento interseccional em movimento.

Assim, embora sua cunhagem seja usualmente creditada à pesquisadora e ativista afro-americana Kimberlé Crenshaw, que em 1989 propôs o termo para evidenciar como o direito falhava em proteger mulheres negras por considerar separadamente as dimensões de raça e gênero, a interseccionalidade carrega um legado anterior de luta e formulação política. Na atualidade, ela tem sido aprofundada por autoras como Patricia Hill Collins, que propõe pensá-la como paradigma, práxis e teoria social crítica. Ao deslocar o olhar do centro para as margens, a interseccionalidade permite compreender como os sistemas de poder modernos se cruzam, atravessam corpos, mentes e territórios e produzem desigualdades complexas, ao mesmo tempo em que aponta para estratégias de justiça social e resistência.

 

Por que a interseccionalidade importa na comunicação?

No contexto latino-americano, Lélia Gonzalez oferece uma contribuição fundamental ao refletir, ainda em 1988, sobre as opressões enfrentadas por mulheres negras e indígenas da região. Ao propor os termos “amefricanas” e “ameríndias”, evidencia o caráter triplo da discriminação vivenciada por esses grupos, marcada pela intersecção entre raça, gênero e classe. Sua abordagem revela como essas mulheres, em sua maioria pertencentes ao proletariado latino-americano, encontram-se na base da pirâmide social, tendo suas diferenças convertidas em desigualdades.

 

Foto de mulher negra sorrindo e olhando diretamente para a câmera. Ela tem cabelos curtos, escuros e crespos, olhos castanhos, veste camisa amarela com detalhes pretos e usa um lenço amarelo e preto enrolado e amarrado na testa. Atrás dela há uma ilustração de peixes coloridos em fundo azulado.
Lélia Gonzalez, professora, filósofa, antropóloga e ativista brasileira. Foto: reprodução/ acervo Instituto Memorial Lélia Gonzalez/ Alma Preta.

 

Uma lógica que não se expressa apenas nas relações materiais, mas também no campo simbólico. E é aí que os meios de comunicação exercem um papel central. Para além dos estereótipos associados às mulheres negras — como a mulata, a doméstica ou a mãe preta — e às mulheres indígenas — como a figura da selvagem ou da exótica — os meios de comunicação também são responsáveis por transmitir, segundo Gonzalez, a ideologia do branqueamento, considerada a forma ideológica mais eficaz do racismo latino-americano. Ao afirmar os valores da cultura ocidental branca como universais e verdadeiros, essa ideologia atua em dois sentidos: de um lado, nega e desqualifica corpos, saberes, estéticas e modos de vida afro-diaspóricos e indígenas; do outro, estimula a interiorização do desejo de embranquecimento como promessa de valorização e pertencimento social.

A crítica de Gonzalez evidencia, portanto, a centralidade dos meios de comunicação hegemônicos na consolidação das opressões interseccionais. Seja no campo do audiovisual, da publicidade ou do jornalismo, tais meios operam como dispositivos de visibilidade e invisibilidade. Eles enquadram, selecionam, silenciam ou amplificam narrativas, não apenas refletindo, mas também reforçando estruturas de poder. 

 

Estudos da tecnologia feminista negra interseccional

Com o desenvolvimento das tecnologias digitais em rede, tais dinâmicas foram reconfiguradas por meio de plataformas, dados e algoritmos, que operam sob lógicas opacas, mas igualmente excludentes. É nesse cenário que os estudos da tecnologia feminista negra interseccional propõem analisar os impactos do digital com base em uma abordagem que considere toda a complexidade das estruturas sociais presentes e passadas.

Como bem lembra Safiya Noble, os estudos sobre o digital, ao longo de décadas, falharam em incorporar uma perspectiva interseccional, ignorando as formas como raça, classe, gênero, entre outros marcadores sociais da diferença, estruturam o desenvolvimento tecnológico. O interesse da pesquisadora pelo tema surgiu a partir de uma experiência pessoal, em 2010, ao buscar presentes para sua enteada e sobrinhas e se deparar, ao digitar “black girls” (garotas negras) no Google, com sites pornográficos como primeiros resultados. Esse episódio levou Noble a questionar de que maneira a organização algorítmica da informação reflete e amplifica desigualdades estruturais, perpetuando representações estereotipadas de grupos historicamente marginalizados. 

 

Foto de mulher negra sorrindo e olhando diretamente para a câmera. Ela tem cabelos longos, cacheados e castanhos, olhos castanhos e veste camisa azul. Ao fundo, um gramado e a fachada de casas em desfoque.
A socióloga, professora e pesquisadora estadunidense Safiya Noble. Foto: reprodução/iowapublicradio.

 

Os casos e exemplos são inúmeros: sistemas de reconhecimento facial com altas taxas de erro para pessoas negras; algoritmos que dificultam o acesso a crédito e emprego ao associar marcadores raciais a riscos; bases de dados que rotulam imagens de mulheres negras com termos ofensivos; tecnologias de policiamento preditivo que reforçam a vigilância sobre corpos e territórios racializados; aplicativos de imagem que associam beleza à brancura. Isso sem falarmos da transformação de populações racializadas em mão de obra invisível para a sustentação das infraestruturas tecnológicas contemporâneas, atuando desde a extração de minérios essenciais para a fabricação e funcionamento de dispositivos eletrônicos, até a filtragem de conteúdos para manter a “higiene” das plataformas digitais.

Todas essas práticas evidenciam, portanto, que as tecnologias de comunicação, longe de serem neutras, perpetuam desigualdades históricas. Diante desse cenário, pensar a comunicação interseccionalmente é fundamental para desnaturalizar essas hierarquias, tensionar representações hegemônicas, visibilizar narrativas contraoficiais e afirmar modos plurais de (r)existência.


 
Para entender mais

COLLINS, Patricia Hill. BILGE, Sirma. Interseccionalidade. São Paulo: Boitempo, 2020.

COLLINS, Patricia Hill. Bem mais que ideias: a interseccionalidade como teoria social crítica. São Paulo: Boitempo, 2022.

CRENSHAW, Kimberlé. Demarginalizing the intersection of race and sex. University of Chicago Legal Forum, p. 138-167, 1989.

GONZALEZ, Lélia. Por um feminismo afro-latino-americano. Rio de Janeiro: Zahar, 2020.

NOBLE, Safiya Umoja. A future for intersectional black feminist technology studies. Scholar & Feminist Online, 2016, vol. 13, n. 3, p. 1-8.

 

Sobre a autora

Dayana Melo é professora do Departamento de Comunicações e Artes da ECA USP. Graduada em Comunicação Social, com habilitação em Jornalismo, pela UFPB, e em Ciências Sociais pela USP, mestre em Comunicação e Culturas Midiáticas pela UFPB, com estágio Procad de mobilidade acadêmica na ECO UFRJ, e doutora em Sociologia pela Université Sorbonne Paris Cité. Realizou estágio pós-doutoral na ECA USP e no IEA USP. Seus principais temas de pesquisa estão, atualmente, relacionados aos estudos das tecnologias digitais em rede, territorialidades e interseccionalidades.  

 

 


Imagem de capa: Freepik.