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Folia, ritual, performance: o traje do Afoxé Filhos de Gandhy

Artigo de professor do Departamento de Artes Cênicas reflete sobre o figurino de um dos mais tradicionais blocos do Carnaval baiano 

Comunidade

Muita gente acredita que a roupa é uma forma de expressão. Isso é ainda mais forte quando pensamos nos figurinos dos espetáculos artísticos e de folguedos populares. E é no Carnaval que a capacidade das roupas evocarem sentidos diversos ganha ainda mais evidência, por meio das fantasias, abadás e outros tipos de traje. Quase sempre, as roupas têm papel central na performance carnavalesca, seja no sambódromo ou na rua. 

 

“[A performance] é  o  ato  de  realizar  ou  executar  uma  tarefa,  principalmente  diante  de  um  ou  mais observadores.”

Nei Lopes, compositor, cantor e pesquisador

 

Essa capacidade, esse potencial de expressão e significado que as roupas possuem têm a ver com o conceito de performatividade elaborado pelo pesquisador estadunidense Richard Schechner, da Universidade de Nova York (NYU). Dentre as várias abordagens que esse conceito contempla, a professora Silvia Fernandes Telesi, do Departamento de Artes Cênicas (CAC), destaca duas: 

  • uma abordagem que considera o fato da performance nunca ser uma obra acabada, e sim “um processo, por estar ligada ao domínio do fazer e ao princípio da ação”;
  • uma abordagem que entende que “toda construção da realidade social tem potencial performativo” e que a performatividade, enquanto conceito, é uma ferramenta de análise desse potencial. 
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Um camelo e um elefante na avenida. Foto: Filhos de Gandhy. 

Foi a partir destas e outras ideias de diferentes autores que Fausto Viana, também docente do CAC, decidiu analisar a roupa do Afoxé Filhos de Gandhy, um dos blocos mais tradicionais do Carnaval da Bahia. No artigo A Performatividade do Traje - um Ensaio a Partir do Afoxé Filhos de Gandhy, publicado em 2022, o professor reflete  se a performatividade só se concretiza quando um figurinista desenvolve, com base em seus conhecimentos e habilidades,  um traje específico para um ato performativo (encenação, espetáculo, cortejo, procissão etc.) ou se a performatividade pode resultar “da ação de um complexo grupo de vetores, que conecta ancestralidades humanas, conhecimentos, desejos, esforços, crenças e muito mais que se materializa no formato de um traje”.  

 

Os Filhos de Gandhy

Do iorubá àfosé (encantação, palavra eficaz, operante), o afoxé é um “candomblé de rua”, nas palavras de Nei Lopes, e um cortejo carnavalesco. Com o intuito " ‘encantar’ os concorrentes”, segundo Fausto Viana, os primeiros afoxés surgiram a partir de 1895, época em que o candomblé era perseguido pela polícia e outras autoridades.

Ainda de acordo com o professor, o afoxé Filhos de Gandhy surge no final dos anos 1940, como uma “pândega”, uma “farra de rapazes”, e com o passar dos anos ganha “uma postura quase solene”. Mais precisamente, foi em 1948 que nasceu o precursor dos Filhos de Gandhy: o bloco Comendo Coentro, fundado por estivadores do porto de Salvador. O grupo, que saiu em um caminhão tocando instrumentos de metal, desfilou trajado com chapéu panamá, roupas de linho importado e sapatos famosa marca Scatamachia.

Mas a partir de 1949 o cenário mudou. Os efeitos da crise política e econômica pós-Segunda Guerra Mundial se aprofundaram e o então presidente do Brasil, Eurico Gaspar Dutra, interviu no Sindicato dos Estivadores. Uma das medidas foi a restrição ao direito de greve. Nesse ano, o  estivador Vavá Madeira propõe a saída de um bloco para os festejos do quarto centenário de Salvador. Influenciado pela mensagem de paz e não-violência de Mahatma Gandhi, assassinado em 30 de janeiro de 1948, ele sugere que o bloco faça uma homenagem ao líder indiano. “O  nome teria sido adaptado para Gandhy para não gerar confusão com a polícia durante o desfile, já que os integrantes do grupo eram do candomblé”. A religião não havia deixado de ser perseguida.

Um bloco carnavalesco sem mulheres e sem álcool

Fausto Viana conta que desde o surgimento do afoxé Filhos de Gandhy “ficou estabelecido que as mulheres não poderiam fazer parte do bloco – a mistura das mulheres com outros homens poderia gerar ciúmes. Junte-se a isso o fato de que a maior parte dos que iam desfilar tinham mais de uma esposa, amante ou namorada. Elas poderiam sair, mas ao lado do cordão que isola os participantes do bloco e o público. Também estava previsto que a bebida alcoólica ficaria de fora – não aconteceu e ainda hoje não acontece.” 

Além do próprio Gandhi, as roupas dos indianos vistas por Vavá no filme Gunga Din (1939) teriam influenciado a indumentária do afoxé. A cor branca era uma representação da paz e da pureza, além de ser uma das cores de Oxalá, um dos orixás reverenciados nos ritos dos Filhos de Gandhy. Foram as prostitutas da Rua do Julião, onde também ficava o sindicato, que fizeram os turbantes e providenciaram os lençois para cobrir o corpo dos estivadores. 

 

Folia ritual

Hoje, o traje dos Filhos de Gandhy se insere nas tradições africanas e brasileiras do candomblé, que por sua vez remontam aos calundus, os antecessores dos terreiros onde a religião atualmente é praticada e cujos primeiros relatos são de 1728. A influência do traje indiano também continua, porém “sob um viés quase alegórico”, afirma Fausto.

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Turbanteira em ação. Foto: Filhos de Gandhy

A parte principal da roupa é um lençol de 2,2m x 2m costurado nas laterais do corpo do folião. Em sua parte frontal, está estampado o tema do ano.  “Atitudes recentes de alguns participantes geram a ira de participantes mais antigos ao rasgarem a parte do peito para maior exposição corporal”, conta o professor. O turbante é composto por uma toalha, que é ajustada na cabeça do folião por pessoas especializadas, quase sempre mulheres, conhecidas como turbanteiras. Ele pode ser finalizado com um broche, na cor azul ou prata, comprado separadamente pelo folião, e que faz referência aos marajás indianos. 

Os colares e guias são feitos de contas nas cores branca (Oxalá) e azul (Ogum) e podem ser distribuídos para o público, como votos de paz. Há foliões mais jovens que, na contramão da tradição, o fazem em troca de um beijo. Feito de palha da costa e podendo levar búzios e vidrilhos azuis e brancos, o bracelete (também chamado de contra-egum, mocã ou senzala) é uma proteção espiritual. Completam o traje um par de sandálias brancas e meias azuis. Com menos frequência, alguns foliões usam luvas azuis ou brancas, que  “devem ser mantidas limpas até o final do desfile”, explica o docente.

 

“A avenida, que se torna o percurso do desfile, é uma extensão do terreiro de candomblé,  o  espaço  sagrado  em  que  os  ritos  acontecem.(...) Toda a ancestralidade, o sagrado, o ritualístico, antecedem o afoxé. E seus trajes.”

Fausto Viana, professor do Departamento de Artes Cênicas (CAC)

 

O desfile começa com um padê para Exu, oferenda para abrir caminhos e garantir que tudo transcorra em harmonia. Ao longo do percurso, os Filhos de Gandhy espalham pipoca e borrifam alfazema nas pessoas e ruas. A pipoca serve para sugar energias negativas e também é a “comida de santo do orixá Obaluaiê”, explica Fausto. Já a alfazema purifica o ambiente e atrai energias positivas. Tudo acontece ao som do ijexá, um toque de tambor de origem africana. 

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O Afoxé Filhos de Gandhy nas ruas de Salvador: Foto Elói Corrêa/GOVBA

“Se há um conjunto de características físicas presentes nos trajes do Gandhy, como já visto, é de fundamental importância entendermos como se dá esta elaboração em planos mais sensíveis, menos palpáveis, mas que estão projetados no traje – e na celebração, no folguedo, em geral”, diz o professor. Para isso, ele valeu-se de depoimentos de membros do bloco e de uma ferramenta emprestada da Antropologia - a imersão na comunidade. 

 

Do imaterial para o material

“Vem de dentro.” É assim que Sérgio Carvalho, folião do Gandhy, define a relação com o figurino do afoxé. “É um valor que a gente traz de casa, do momento em que você recebe a fantasia até o momento em que você se veste, e que faz o processo de colocar o turbante, de colocar um colar sobre o corpo”. A roupa e seus adereços não são mero enfeite do corpo, mas representam as questões espirituais que fundamentam o cortejo do bloco, ele completa. 

Magary Lord, outro integrante do bloco, lembra da seriedade por trás da folia: “Meu pai sempre saiu no Filhos de Gandhy. Então, era sagrado meu pai já estar com a fantasia do Filhos de Gandhy, com a roupa, com o  turbante,  já  preocupado com  as correntes (sic), com os adereços... E aí a gente queria pegar para brincar, para usar antes da hora, e aí ele arretava!”

A pesquisadora e educadora Vera Cristina Athayde ressalta essa dimensão da ancestralidade presente no traje: “quando  eu  coloco  aquela  roupa,  e  se  eu  tenho consciência  que  minha  mãe,  meus  pais,  meus avós,  meu tataravô,  sei lá,  toda  minha linhagem passou por aquilo, eu vou para a passarela da noite dos tambores preenchida de muita coisa.”

Nos depoimentos, de acordo com Fausto, fica evidente que o aspecto que mais importa para os foliões do Gandhy é “o resgate daquilo que os conecta a seus pais, às suas tradições e às suas memórias”. E como esses elementos imateriais podem ser transmitidos para a roupa e provocar sua alteração? “É através da ação de inserir na peça aquela energia, seja através do pensamento, da transmissão através do uso físico (suor  e memória) ou do resgate de simbologias  e representações”, responde o professor. 

Fausto ressalta como o mergulho em uma comunidade,  além de contornar a ausência de fontes documentais precisas (dificuldade tão comum aos estudos de folguedos e outras tradições da cultura popular), é fundamental para “compreender as características, o significado e a contextualização do traje. Só assim se entende como uma toalha de banho e um lençol trazem à tona a memória e a lembrança de um pai. Sem a prática da participação e do envolvimento, ou sem aplicar este princípio a algo que lhe seja caro, não é possível perceber o que é que o outro sente e vivencia quando na avenida está prolongando e honrando  o  terreiro  de candomblé,  um  sistema  de crenças baseado em energias e forças ancestrais.”

 

 


Imagem de capa: Foliões soltam pombas brancas durante o cortejo. Foto: Filhos de Gandhy