Trabalhos artísticos na academia instauram novos conhecimentos
Docentes e pesquisadores ecanos apresentam arte como trabalhos acadêmicos; projeto Biblioteca Digital da Produção Artística da ECA pretende facilitar acesso a essas obras
Na ECA, não é raro que trabalhos acadêmicos sejam apresentados no formato de obras artísticas. No caso das artes visuais, por exemplo, isso acontece tanto nos Trabalhos de Conclusão de Curso (TCCs) e nas iniciações científicas (ICs), quanto nas pesquisas da pós-graduação (dissertações e teses) e do pós-doutorado. Nelas, os pesquisadores elaboram conceitos profundos do fazer artístico e produção de sentido em obras práticas, que muitas vezes dispensam a elaboração de um texto acadêmico, como é tradição em teses e dissertações.
Um exemplo comum desse tipo de trabalho são os chamados livros de artista, isto é, obras de arte na forma de livros que trazem gravuras, fotografias ou outros tipos de imagem, que podem ou não ser acompanhadas de textos, quer acadêmicos, como uma dissertação, quer artísticos, como poemas e contos. A justificativa para esse tipo de trabalho é que, muitas vezes, a produção de uma obra já é uma prova de conhecimento na área onde ela se manifesta, não sendo necessário um texto formal que a fundamente. Além disso, a existência dessas obras permite que o pesquisador alcance resultados inacessíveis ao texto acadêmico, abrindo espaço para uma discussão sobre a arte como forma de produzir conhecimentos, assim como ocorre nas ciências.
Arte: sonho, violência, natureza e conhecimento

Para Dora Longo Bahia, professora do Departamento de Artes Plásticas (CAP) da ECA, a ficção pode trazer conhecimentos que a ciência não alcança. A obra Do Campo a Cidade é a sua tese de doutorado, defendida em 2010 no Programa de Pós-graduação em Artes Visuais (PPGAV). No trabalho, Dora conta as trajetórias artísticas de Marcelo Campo, ativo no período da ditadura militar, e Marcelo Cidade, ativo no período do primeiro governo Lula, em uma narrativa que mescla fatos e ficção em textos e imagens.
Entre as histórias de Campo e Cidade, vê-se o destaque que a artista dá para imagens do campo simbólico da violência, como armas de fogo, manifestações públicas e conflitos, incluindo a Batalha da Maria Antônia, além de riscos e anotações por cima das fotografias, que acrescentam camadas de sentido ao que está exposto. Para a autora, “a violência [na arte] é o que tira as coisas de um lugar conformista”, que abre espaço para novos panoramas."

Flavia Ocaranza, mestra em Artes Visuais pela ECA com a obra Desenhos para um universo de bolso, encontra, em um campo simbólico diametralmente oposto, o seu caminho para reflexões semelhantes. Para a autora, que traz para a dissertação as referências de sua infância, como o mar, as salas amplas de revistas de decoração e as bibliotecas inalcançáveis que fascinaram seus primeiros desenhos, sua obra é “sempre um amor pelas pequenas coisas que engendram grandes espaços”, onde a pequenez da infância se encontra com a grandeza do desconhecido.

“Em algum momento brinco que escolhi esse título pois não seria preciso ter que prever o que seria desenhado, do que o desenho falaria, uma vez decretado que tudo poderia ser, já que o universo tudo é.”
Flavia Ocaranza, artista visual e mestra na área pela ECA
Para Flávia, “o ato de desenhar pode ser um jogo” com padrões que se repetem e imagens que se ajustam umas às outras ao sabor da imaginação, o que combina com o método usado durante a pesquisa, que envolveu colagens de desenhos uns sobre os outros. A autora afirma que “o ambiente acadêmico impõe uma reflexão sobre aquilo que você faz”, assim, o artista é responsável por uma pesquisa, como o cientista, mas enquanto a ciência busca alcançar um determinado fim, “a arte é mais focada em seu processo”.


“A arte é um processo contínuo” também para Evandro Carlos Jardim, professor aposentado do CAP. Em sua dissertação de mestrado, Jaraguá: sinais, manchas e sombras, defendida em 1980, o artista usa o pico do Jaraguá, em São Paulo, como o epicentro de uma visão que busca captar a cidade como um todo. “Lá de cima você tem todas as vistas”, diz o autor, que faz da paisagem natural e urbana o grande tema de sua obra.
Para Evandro, o fazer artístico depende do aspecto sensível, “do que você pensa sobre aquilo”. Uma ideia passa de um plano subjetivo, do artista, para o plano objetivo, da matéria na qual se manifesta. Esta, por sua vez, transmite algo ao espectador, caso ele se interesse. Nesse sentido, o autor considera que a “arte é em si uma forma de conhecimento”, pois remonta a um conjunto de saberes e técnicas, como o é a “arte de um ferreiro”, que articula saberes diversos no trabalho com uma matéria específica.


Anna Gabriela Santos, autora de Pântano generoso e outros humores noturnos, diz que “a arte é um conhecimento por si só”, já que a produção da obra depende da articulação de uma técnica e “se você não está constantemente experimentando o material, as coisas não vão sair do jeito que você quer”.

A obra de Anna, resultado de seu TCC do curso de Artes Visuais, consiste em um conjunto de litografias retratando alguns cenários reais e outros sobrenaturais. Na litografia, uma imagem é impressa em um suporte (em geral de papel) a partir de uma matriz, que pode ser de pedra ou outros materiais. Para a autora, seu trabalho reflete sobre a relação do homem com a natureza, onde o misticismo e o sobrenatural performam uma “extrapolação” dessa natureza, na qual o homem busca ir além do natural.
A artista também é educadora no ensino básico, e diz que a observação e contato com obras de arte é uma parte importante de seu trabalho, pois permite que o observador “se projete em uma obra criada por outra pessoa”, e afirma que esse convívio com os saberes do outro é enriquecedor para todos os envolvidos.
Um dos temas recorrentes entre os entrevistados foi a relação entre a arte e a educação. Para Evandro, por exemplo, existem equívocos no processo de educação em geral, onde a imposição da vontade de um pode suprimir a liberdade do outro. “Em arte não existe certo ou errado, existe o que você quer fazer”, diz, e reforça que não deve haver diferenças entre o fazer artístico dentro e fora do ambiente acadêmico.
Para Dora, o “lugar de erro”, isto é, a perspectiva de que os erros de um processo podem ser aproveitados para enriquecer seu resultado, é uma grande fonte de conhecimento artístico, e ressalta a necessidade de mais espaço na universidade para esse tipo de saber. Quando perguntada sobre como a arte pode ser uma forma de transmitir conhecimentos, sua resposta é “não sei se transmissão é a palavra certa, (...) porque transmissão pressupõe que existe algo que vai ser transmitido de um ponto para o outro e eu acho que no caso da arte é muito mais uma instauração de um conhecimento”.
Da arte ao alcance das mãos à arte ao alcance de um clique
Muitas obras como as de Dora, Flávia, Evandro e Anna acabam não sendo muito aproveitadas pelo público, já que é preciso ir fisicamente à Biblioteca da ECA e falar com a equipe responsável pelo acervo para então ter acesso aos trabalhos, uma vez que eles não circulam em galerias e exposições como outras obras de arte. Além disso, existem muitas obras que são de consulta restrita, dada a sua fragilidade. Elas ficam na chamada “coleção especial”. Nesses casos, é preciso que a pessoa interessada entre em contato com os bibliotecários, que permitem o acesso à obra em uma mesa específica. O nome da pessoa fica registrado e, após a consulta, a equipe verifica se está tudo certo com o trabalho. Esse procedimento é importante para a preservação da obra, contudo, torna sua visibilidade para o público ainda menor.
Atualmente, há centenas de obras artísticas catalogadas pela Biblioteca da ECA, e na tentativa de torná-las acessíveis para usuários de dentro e de fora da universidade, as professoras Vânia Mara Alves Lima, do Departamento de Informação e Cultura (CBD), e Lucia Koch, do CAP, em conjunto com a biblioteca da ECA, promovem uma iniciativa inédita: a Biblioteca Digital da Produção Artística (BDPA), que vai disponibilizar um catálogo on-line com o trabalho de gerações de artistas e pesquisadores ecanos. Muitas dessas obras não têm imagens disponíveis em lugar nenhum, o que ressalta ainda mais a importância de um projeto desse tipo.

“A biblioteca digital já existe”, afirma a bibliotecária Marina Macambyra, mas ainda não está aberta ao público. A saber, o projeto consiste em fazer uma curadoria das obras, entrando em contato com artistas para fazer entrevistas e pedir sua autorização para a reprodução dos seus trabalhos, que serão fotografados por uma profissional e, finalmente, incluídos na plataforma. Além das professoras Vânia, que coordena o projeto, e Lúcia, responsável pela curadoria, a BDPA conta com o trabalho de Marina e de outras bibliotecárias e bibliotecários, de estagiários e bolsistas, que atuam em diferentes etapas desse processo. Já são 244 itens catalogados, dos quais ao menos 200 possuem imagens em alta resolução.

Entre os principais desafios mencionados pela bibliotecária, está a dificuldade de contratação de fotógrafos profissionais, o que envolve um processo burocrático demorado. Além disso, Marina conta que é preciso de mais funcionários para lidar com a manutenção da plataforma onde a BPDA será disponibilizada. Para Marina, “a maior expectativa das pessoas envolvidas nesse projeto é poder disponibilizar essas obras não só para estudantes, mas para o público em geral”.