50 anos de história na ECA: Dirceu Miranda
Conheça a trajetória do técnico de pintura que completou cinco décadas de trabalho
No dia 3 de junho de 1974, segunda-feira, Dirceu Miranda, um jovem de apenas 20 anos, iniciava o que viria ser a sua extensa trajetória de trabalho na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Dirceu é o técnico do ateliê de pintura localizado na famosa sala C9 do Departamento de Artes Plásticas (CAP), onde é responsável pela manutenção, pelos materiais e por auxiliar estudantes e docentes.
50 anos e alguns dias depois, em 27 de junho de 2024, Dirceu recebeu de seus colegas de departamento uma homenagem e um certificado como reconhecimento por todo seu tempo de trabalho. Emocionado com o carinho e, ao relembrar sua história, ele conta que trabalhar na ECA é um privilégio e um motivo de orgulho.
“Eu acho que eu fiquei esses 50 anos porque fui cercado de pessoas muito legais, eu tive muitos amigos bons, alguns já se foram. Se não fosse pelos amigos que eu tive, professores, alunos e funcionários, eu não teria conseguido nada.”
Dirceu Miranda, técnico do ateliê de pintura
A gráfica da ECA e a máquina Heidelberg de estimação
O início dessa história se deu na então gráfica da Escola. Convidado por um amigo da família, que já trabalhava na ECA, Dirceu ficou entusiasmado com a ideia de realizar trabalhos manuais na USP, algo que ele sempre gostou de fazer. Sua contratação ocorreu dessa forma, pois, antes da Constituição Federal de 1988, era possível se tornar funcionário da USP sem prestar concurso público. Depois de apenas cinco meses trabalhando na impressão, o técnico sofreu um grave acidente: prendeu a mão em uma máquina e rompeu todos os tendões.
Quando retornou ao trabalho, após um mês de repouso, Dirceu conta que seus colegas pensaram que ele não fosse querer operar máquinas novamente, mas ele gostava tanto que não conseguiu ficar longe delas. Nesse momento, ele passou a trabalhar com a impressora Heidelberg, que foi sua “criança super poderosa por 33 longos e maravilhosos anos”. Ao lado de sua companheira, a máquina alemã, Dirceu produziu o Jornal do Campus, os impressos administrativos da Escola e os livros dos professores até 2007, quando a gráfica da ECA foi oficialmente fechada, após um processo que teve início em 2005 com a transferência da gráfica para os “barracões”, edifícios térreos que ficavam onde hoje é o Inova USP e o Centro de Difusão Internacional (CDI).
O professor Marco Francesco Buti, docente de gravura e de desenho do CAP, que, durante os anos 2000, era chefe do departamento, explica que a gráfica e seus profissionais eram muito importantes não apenas para a impressão dos materiais da Escola, mas também para a formação de estudantes, principalmente, dos cursos de Editoração, Jornalismo e Artes Visuais. O docente tentou fazer com que as máquinas e seus operadores fossem alocados no CAP para fins acadêmicos, mas a terceirização e a burocracia o impediram, lamenta. Assim, a querida Heidelberg de estimação do Dirceu foi perdida e os funcionários da gráfica foram realocados em diferentes departamentos.
A chegada no Departamento de Artes Plásticas e a sala C9
Com o fim da gráfica, Dirceu foi transferido para o CAP. “Me lembro de vir até aqui quase chorando, como se estivesse indo para o matadouro, não queria sair da gráfica”, conta o técnico. De início, ele fazia serviços de office-boy, como levar documentos de um lugar para o outro. O professor de pintura Geraldo de Souza Dias Filho afirma que, quando chegou ao departamento, não entendia muito bem qual era a função do Dirceu: “ele parecia perdido, subaproveitado”.
Geraldo explica que, na época, não havia ninguém responsável pelo ateliê de pintura e esse espaço era uma bagunça. Para o professor, a presença de um técnico com habilidades manuais e conhecimento prático de tintas era essencial, uma vez que quem pinta entende de estética, mas nem sempre dos materiais e da organização. Dessa forma, quando a atribuição de um funcionário para esse cargo foi aprovada, o nome do Dirceu foi a conclusão óbvia.
“Ele renasceu, não estava mais perdido, finalmente havia se encontrado”. Foi assim que o professor Geraldo descreveu o momento em que Dirceu passou a trabalhar na sala C9, o ateliê de pintura. Hoje, esse é um dos espaços favoritos dos estudantes do curso de Artes Visuais, frequentado até fora do período de aula. “O xodó do departamento”, afirma Dirceu com carinho. Porém, ele explica que nem sempre foi assim. Quando chegou, teve muito trabalho para arrumar o local: “você não podia nem se mover lá dentro de tanta bagunça, de tanto lixo acumulado”.
Para manter a sala C9 arrumada há 17 anos, Dirceu implementou um sistema de organização e regras rígidas, que podem ser conferidas em cartazes espalhados pelo espaço, além de realizar constante manutenção e de se fazer uma figura de autoridade presente: “Ele está sempre nos arredores do CAP, quando não está na sala dele”, afirma Ana Beatriz Miziara, aluna de Artes Visuais. Já o estudante Felipe Lima conta que, para Dirceu, a limpeza é fundamental: “Ele fica bravo se a gente faz sujeira ou algo que não devia. Ele zela muito pelo ateliê”.
Esse carinho para com a sala C9 é refletido em suas paredes, onde retratos do Dirceu feitos pelos artistas em formação são expostos. “Pelo menos uma vez por ano, os alunos pedem para eu posar pra eles treinarem suas técnicas, aí eu vou guardando [as obras], né?”. Essas telas ficam penduradas no “cantinho do Dirceu”. Apelidado assim pelos alunos, esse é um espaço da sala de onde o técnico observa atentamente todas as atividades realizadas, sempre a postos para atender algum chamado.
“Eu preparo a sala para as aulas e arrumo depois delas, fico lá pra pegar os materiais que vão me pedindo. Eu sou uma espécie de ajudante do professor, eu não sou técnico. Eu não sei pintar quadro, só parede mesmo.”
Dirceu Miranda, técnico do ateliê de pintura
Cinco décadas de muitas mudanças
Apesar de Dirceu não se considerar um técnico, sua presença no CAP transformou o processo de aprendizagem no curso de Artes Visuais. O professor Buti explica que é muito importante ter um técnico para que o ateliê funcione fora do horário de aula, pois isso permite que os estudantes pratiquem com mais frequência e liberdade, o que é essencial para um artista. Dessa forma, o docente considera que a chegada de Dirceu fez uma “diferença sensível” não apenas na organização da sala, mas também na formação dos alunos.
Já o professor Geraldo destaca outra iniciativa transformadora tomada por Dirceu: reutilizar telas antigas. O professor explica que alguns alunos deixam suas pinturas na sala C9 mesmo depois de se formarem. Assim, de tempos em tempos, é feita uma chamada para que os donos desses quadros venham buscá-los, o que nem sempre acontece. Então, ao invés de jogá-los no lixo, Dirceu resolveu passar uma tinta branca por cima dos trabalhos antigos, deixando as telas como novas para que outros alunos possam reutilizar. Geraldo enfatiza a importância dessa ação, pois são materiais caros, que nem todos os estudantes têm condições de adquirir.
Assim como Dirceu foi trazido por um colega para trabalhar na ECA, ele também trouxe um amigo: Nivaldo da Silva Félix, ou Zequinha, como é carinhosamente chamado apenas por Dirceu. Hoje, Nivaldo é o técnico de fotografia do CAP, mas começou na gráfica há cerca de 41 anos, quando o antigo vizinho e amigo de infância o trouxe para “jogar bola” com o pessoal da USP. Lágrimas escorreram dos olhos de ambos quando falaram um sobre o outro e lembraram dessas décadas de amizade: “A gente é família”.
O tempo de Dirceu na ECA corresponde exatamente ao tempo em que está casado e, assim como viu as três filhas crescerem e se tornarem mulheres bem sucedidas, Dirceu também viu a USP crescer e se transformar. Ele conta que, quando chegou, havia apenas a Reitoria e o Prédio Central da Escola. Ele viu todos os departamentos serem erguidos, viu prédios serem construídos e outros, demolidos, viu estudantes se tornarem professores, viu greves, paralisações e manifestações, viu colegas chegando e partindo e, agora, conta que chegou a sua vez de se aposentar, o que preocupa estudantes e docentes que temem pelo futuro do ateliê sem a presença de Dirceu.
Em 2025, quando se aposentar, Dirceu pretende ir morar na praia com sua esposa e praticar com mais frequência o seu hobbie favorito, a pescaria. Após tantos anos de trabalho, os adjetivos que se repetem quando Dirceu é o assunto no CAP são atencioso e prestativo. Nas palavras do professor Marco Garaude Giannotti, “sua presença é um estímulo para a continuidade da pintura em nosso departamento”.