CAP | Departamento de Artes Plásticas



50 anos de história na ECA: Dirceu Miranda

Conheça a trajetória do técnico de pintura que completou cinco décadas de trabalho 

Comunidade
Foto de um homem branco de pé ao lado de uma porta amarela de uma sala de aula. Ele tem cabelos curtos e grisalhos e bigode grisalho. Ele usa óculos, suéter preto, calça jeans e sapato marrom.
O técnico Dirceu Miranda recebe estudantes e docentes na sala C9 há gerações. Foto: Maria Eduarda Lameza/LAC-ECA.

No dia 3 de junho de 1974, segunda-feira, Dirceu Miranda, um jovem de apenas 20 anos, iniciava o que viria ser a sua extensa trajetória de trabalho na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Dirceu é o técnico do ateliê de pintura localizado na famosa sala C9 do Departamento de Artes Plásticas (CAP), onde é responsável pela manutenção, pelos materiais e por auxiliar estudantes e docentes.

50 anos e alguns dias depois, em 27 de junho de 2024, Dirceu recebeu de seus colegas de departamento uma homenagem e um certificado como reconhecimento por todo seu tempo de trabalho. Emocionado com o carinho e, ao relembrar sua história, ele conta que trabalhar na ECA é um privilégio e um motivo de orgulho.

 

“Eu acho que eu fiquei esses 50 anos porque fui cercado de pessoas muito legais, eu tive muitos amigos bons, alguns já se foram. Se não fosse pelos amigos que eu tive, professores, alunos e funcionários, eu não teria conseguido nada.”

Dirceu Miranda, técnico do ateliê de pintura

 

 

Foto de um grupo de cerca de 20 pessoas em um ateliê de pintura. Ao centro, um homem branco, de cabelo e bigode grisalhos que usa óculos e um suéter bege e calça jeans azul, segura uma pasta preta. Ao seu redor, pessoas de diferentes gêneros, em sua maioria de meia idade, posam para a foto. Em primeiro plano há uma mesa grande com cadeiras azuis. Ao fundo colunas, janelas de vidro e paredes brancas com algumas telas e cavaletes de madeira.
Colegas funcionários, docentes e estudantes do CAP na homenagem feita a Dirceu por seus 50 anos de serviço na ECA. Foto: Maria Eduarda Lameza/LAC-ECA.

 

A gráfica da ECA e a máquina Heidelberg de estimação

O início dessa história se deu na então gráfica da Escola. Convidado por um amigo da família, que já trabalhava na ECA, Dirceu ficou entusiasmado com a ideia de realizar trabalhos manuais na USP, algo que ele sempre gostou de fazer. Sua contratação ocorreu dessa forma, pois, antes da Constituição Federal de 1988, era possível se tornar funcionário da USP sem prestar concurso público. Depois de apenas cinco meses trabalhando na impressão, o técnico sofreu um grave acidente: prendeu a mão em uma máquina e rompeu todos os tendões.

Quando retornou ao trabalho, após um mês de repouso, Dirceu conta que seus colegas pensaram que ele não fosse querer operar máquinas novamente, mas ele gostava tanto que não conseguiu ficar longe delas. Nesse momento, ele passou a trabalhar com a impressora Heidelberg, que foi sua “criança super poderosa por 33 longos e maravilhosos anos”. Ao lado de sua companheira, a máquina alemã, Dirceu produziu o Jornal do Campus, os impressos administrativos da Escola e os livros dos professores até 2007, quando a gráfica da ECA foi oficialmente fechada, após um processo que teve início em 2005 com a transferência da gráfica para os “barracões”, edifícios térreos que ficavam onde hoje é o Inova USP e o Centro de Difusão Internacional (CDI).

O professor Marco Francesco Buti, docente de gravura e de desenho do CAP, que, durante os anos 2000, era chefe do departamento, explica que a gráfica e seus profissionais eram muito importantes não apenas para a impressão dos materiais da Escola, mas também para a formação de estudantes, principalmente, dos cursos de Editoração, Jornalismo e Artes Visuais. O docente tentou fazer com que as máquinas e seus operadores fossem alocados no CAP para fins acadêmicos, mas a terceirização e a burocracia o impediram, lamenta. Assim, a querida Heidelberg de estimação do Dirceu foi perdida e os funcionários da gráfica  foram realocados em diferentes departamentos. 

 

 Foto em preto e branco de homem branco jovem trabalhando em uma impressora industrial grande e antiga. A máquina ocupa grande parte da fotografia e o rapaz está no canto direito. Ele tem cabelos curtos, cacheados e pretos, barba preta, usa uniforme de fábrica e segura uma bisnaga de óleo ou tinta enquanto manuseia o que parecem ser folhas de papel em uma das extremidades da máquina.
O jovem Dirceu trabalhando com a impressora Heidelberg na gráfica da ECA em 1978: “Essa era a minha menina!” Foto: Carlos Souto/Ágora ECA.

 

A chegada no Departamento de Artes Plásticas e a sala C9

Com o fim da gráfica, Dirceu foi transferido para o CAP. “Me lembro de vir até aqui quase chorando, como se estivesse indo para o matadouro, não queria sair da gráfica”, conta o técnico. De início, ele fazia serviços de office-boy, como levar documentos de um lugar para o outro. O professor de pintura Geraldo de Souza Dias Filho afirma que, quando chegou ao departamento, não entendia muito bem qual era a função do Dirceu: “ele parecia perdido, subaproveitado”.

Geraldo explica que, na época, não havia ninguém responsável pelo ateliê de pintura e esse espaço era uma bagunça. Para o professor, a presença de um técnico com habilidades manuais e conhecimento prático de tintas era essencial, uma vez que quem pinta entende de estética, mas nem sempre dos materiais e da organização. Dessa forma, quando a atribuição de um funcionário para esse cargo foi aprovada, o nome do Dirceu foi a conclusão óbvia

“Ele renasceu, não estava mais perdido, finalmente havia se encontrado”. Foi assim que o professor Geraldo descreveu o momento em que Dirceu passou a trabalhar na sala C9, o ateliê de pintura. Hoje, esse é um dos espaços favoritos dos estudantes do curso de Artes Visuais, frequentado até fora do período de aula. “O xodó do departamento”, afirma Dirceu com carinho. Porém, ele explica que nem sempre foi assim. Quando chegou, teve muito trabalho para arrumar o local: “você não podia nem se mover lá dentro de tanta bagunça, de tanto lixo acumulado”. 

Para manter a sala C9 arrumada há 17 anos, Dirceu implementou um sistema de organização e regras rígidas, que podem ser conferidas  em cartazes espalhados pelo espaço, além de realizar constante manutenção e de se fazer uma figura de autoridade presente: “Ele está sempre nos arredores do CAP, quando não está na sala dele”, afirma Ana Beatriz Miziara, aluna de Artes Visuais. Já o estudante Felipe Lima conta que, para Dirceu, a limpeza é fundamental: “Ele fica bravo se a gente faz sujeira ou algo que não devia. Ele zela muito pelo ateliê”.

 

Foto de um bilhete em papel branco e amarelo, escrito à mão com tinta azul a frase: “Por favor… Não usar estiletes nestas mesas. Obrigado!!!”. Ele está em cima de uma superfície branca, com uma tela de pintura e desenhos coloridos fora de foco.
Cartazes e bilhetes como esse, contendo orientações, podem ser encontrados em todos os espaços da sala C9. Foto: Maria Eduarda Lameza/LAC-ECA


Pintura feita à mão de homem branco, com a face avermelhada, cabelos curtos e grisalhos, bigode grisalho e camiseta verde.
Retrato de Dirceu, exposto em sua sala, feito por estudante de Artes Visuais não identificado.
Foto: Maria Eduarda Lameza/LAC-ECA

Esse carinho para com a sala C9 é refletido em suas paredes, onde retratos do Dirceu feitos pelos artistas em formação são expostos. “Pelo menos uma vez por ano, os alunos pedem para eu posar pra eles treinarem suas técnicas, aí eu vou guardando [as obras], né?”. Essas telas ficam penduradas no “cantinho do Dirceu”. Apelidado assim pelos alunos, esse é um espaço da sala de onde o técnico observa atentamente todas as atividades realizadas, sempre a postos para atender algum chamado.

 

“Eu preparo a sala para as aulas e arrumo depois delas, fico lá pra pegar os materiais que vão me pedindo. Eu sou uma espécie de ajudante do professor, eu não sou técnico. Eu não sei pintar quadro, só parede mesmo.”

Dirceu Miranda, técnico do ateliê de pintura 

 

Sala C9

Foto de homem branco de pé de perfil em um ateliê de pintura organizando telas. Ele tem cabelos curtos grisalhos e usa óculos, suéter preto, calça jeans azul e sapatos marrom. Ao seu redor, há prateleiras com telas, cavaletes e bancos, além de janelas com árvores ao fundo.

Além de manter a sala organizada, uma das responsabilidades de Dirceu é armazenar os trabalhos realizados pelos alunos. Foto: Maria Eduarda Lameza/LAC-ECA.

Foto de uma sala com pinturas penduradas na parede branca e uma porta amarela com papéis colados. No canto direito, há um vitrô e um computador ligado sobre uma mesa, ao lado, um arquivo com gavetas de metal sobre o qual estão alguns objetos. No lado direito, está a porta.

O “Cantinho do Dirceu”. Foto: Maria Eduarda Lameza/LAC-ECA.

Foto de um ateliê de pintura. Em primeiro plano, uma mesa de madeira com quatro cadeiras. Em segundo plano, do lado esquerdo, há uma mulher negra de cabelos crespos e ruivos, usando avental e pintando uma tela. No fundo, um grupo de pessoas sentadas ao redor de uma mesa perto de uma porta amarela.

Estudantes usam a sala C9 dentro e fora do horário de aula. Foto: Maria Eduarda Lameza/LAC-ECA.

Foto de uma sala de aula onde um grupo de cerca de 10 pessoas está sentado ao redor de uma mesa em cadeiras verdes e de costas para a câmera. Ao fundo, um homem branco de cabelos grisalhos e blusa preta os observa. Nas paredes, uma porta amarela, parte de uma janela e pinturas. No teto, lâmpadas penduradas e, no primeiro plano, fora de foco, bancos de madeira.

Durante as aulas, Dirceu fica no seu “cantinho” sempre atento às necessidades de estudantes e docentes. Foto: Maria Eduarda Lameza/LAC-ECA.

 

Cinco décadas de muitas mudanças

Foto de homem branco de semi-perfil segurando telas de pintura. Ele tem cabelos curtos e grisalhos, bigode grisalho, usa óculos e um suéter preto, além de um relógio prata no pulso. Diante dele, uma janela com vista para árvores.
A iniciativa de Dirceu de reutilizar telas ajuda a democratizar o acesso de estudantes a materiais de pintura. Foto: Maria Eduarda Lameza/LAC-ECA

Apesar de Dirceu não se considerar um técnico, sua presença no CAP transformou o processo de aprendizagem no curso de Artes Visuais. O professor Buti explica que é muito importante ter um técnico para que o ateliê funcione fora do horário de aula, pois isso permite que os estudantes pratiquem com mais frequência e liberdade, o que é essencial para um artista. Dessa forma, o docente considera que a chegada de Dirceu fez uma “diferença sensível” não apenas na organização da sala, mas também na formação dos alunos.  

Já o professor Geraldo destaca outra iniciativa transformadora tomada por Dirceu: reutilizar telas antigas. O professor explica que alguns alunos deixam suas pinturas na sala C9 mesmo depois de se formarem. Assim, de tempos em tempos, é feita uma chamada para que os donos desses quadros venham buscá-los, o que nem sempre acontece. Então, ao invés de jogá-los no lixo, Dirceu resolveu passar uma tinta branca por cima dos trabalhos antigos, deixando as telas como novas para que outros alunos possam reutilizar. Geraldo enfatiza a importância dessa ação, pois são materiais caros, que nem todos os estudantes têm condições de adquirir. 

Assim como Dirceu foi trazido por um colega para trabalhar na ECA, ele também trouxe um amigo: Nivaldo da Silva Félix, ou Zequinha, como é carinhosamente chamado apenas por Dirceu.  Hoje, Nivaldo é o técnico de fotografia do CAP, mas começou na gráfica há cerca de 41 anos, quando o antigo vizinho e amigo de infância o trouxe para “jogar bola” com o pessoal da USP.  Lágrimas escorreram dos olhos de ambos quando falaram um sobre o outro e lembraram dessas décadas de amizade: “A gente é família”.
 

Foto de dois homens brancos sorrindo. O primeiro é careca, tem bigode grisalho e usa uma blusa cinza. O segundo tem cabelos curtos e bigode grisalhos, usa óculos e um suéter preto. Ao fundo, uma janela e cadeiras pretas empilhadas.
“Sabe irmão, de pai e mãe? Então, ele é mais que isso pra mim”, afirma Nivaldo sobre Dirceu. Foto: Maria Eduarda Lameza/LAC-ECA

 

O tempo de Dirceu na ECA corresponde exatamente ao tempo em que está casado e, assim como viu as três filhas crescerem e se tornarem mulheres bem sucedidas, Dirceu também viu a USP crescer e se transformar. Ele conta que, quando chegou, havia apenas a Reitoria e o Prédio Central da Escola. Ele viu todos os departamentos serem erguidos, viu prédios serem construídos e outros, demolidos, viu estudantes se tornarem professores, viu greves, paralisações e manifestações, viu colegas chegando e partindo e, agora, conta que chegou a sua vez de se aposentar, o que preocupa estudantes e docentes que temem pelo futuro do ateliê sem a presença de Dirceu.

Em 2025, quando se aposentar, Dirceu pretende ir morar na praia com sua esposa e praticar com mais frequência o seu hobbie favorito, a pescaria. Após tantos anos de trabalho, os adjetivos que se repetem quando Dirceu é o assunto no CAP são atencioso e prestativo. Nas palavras do professor Marco Garaude Giannotti, “sua presença é um estímulo para a continuidade da pintura em nosso departamento”

 

 


Foto da capa: Maria Eduarda Lameza/LAC-ECA.