Jornalismo transnacional, agências de checagem e blockchain contra fake news
Artigo da revista Estudos Avançados analisa ferramentas em rede contra desinformação; texto integra dossiê do grupo de pesquisa Jornalismo, Direito e Liberdade
Em abril de 2013, o Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ), trouxe a público um relatório que expôs mundialmente o universo dos “paraísos fiscais”. Nele, constam nomes de presidentes, empresas, xeiques e figuras conhecidas que mantêm contas bancárias em países que oferecem um ambiente regulatório e fiscal “mais vantajoso”. Por muitos anos, esse seria considerado o maior golpe contra a fraude tributária no mundo, fruto de 15 meses de trabalho em torno de um banco de dados com cerca de 2,5 milhões de arquivos, volume 160 vezes maior que o vazado pelo WikiLeaks. Isso só foi possível graças à colaboração de 86 jornalistas de 46 países, em uma ação de jornalismo transnacional (JT).
Com a intenção de identificar formas de fazer jornalismo que mantenham a segurança dos profissionais e sejam efetivas no combate à desinformação, tais como a ação do ICIJ, a pesquisadora Magaly Prado, pós-doutora em Comunicação pela ECA, e o pesquisador Ben Hur Demeneck, doutor em Ciências da Comunicação pela ECA, desenvolveram a pesquisa que resultou no artigo Do jornalismo transnacional aos experimentos em blockchain no combate à desinformação. O trabalho faz parte de um dossiê sobre desinformação e democracia organizado pelo grupo de estudos Jornalismo, Direito e Liberdade (JDL) e publicado na 113ª edição da Revista Estudos Avançados.
Usando como exemplo instituições de jornalismo e de checagem de fatos estrangeiras, os autores chegam a três práticas que julgam serem benéficas para o combate à desinformação e para a segurança do trabalho jornalístico: 1) jornalismo transnacional, no qual dezenas ou centenas de jornalistas trabalham em torno de um objetivo em comum; 2) a ação de agências de checagem de fatos para barrar a proliferação de informações falsas; 3) o uso de plataformas blockchain, que permitem o armazenamento de dados jornalísticos de forma inviolável. Por fim, os autores salientam a importância da educação midiática e de reduzir o poder da plataformização da informação, na qual algoritmos modulam os pensamentos e o comportamento de usuários, para fortalecer o debate público e a democracia.
Checagem de fatos na era da (des)informação
A era digital possibilitou uma maior participação e expressão das pessoas. Contudo, os pesquisadores dizem que esse novo mundo de transparência e fontes abertas, no qual todos são “veículos” de comunicação, pode incorrer no aumento da desinformação para quem não conhece bem a prática do jornalismo. Ao mesmo tempo, o acirramento da extrema direita e a “demonização populista da imprensa” se dão também por meio do ciberespaço, propiciando novas formas de violência contra jornalistas e novos desafios no combate de informações forjadas ou não apuradas.
O jornalismo sempre se fez com checagem de fatos. Entretanto, com a desordem informacional advinda das redes sociais, o “fact-checking” passou a definir o trabalho de determinar a veracidade e a precisão de informações que ganharam visibilidade pública, como declarações de políticos e notícias. Assim, as agências trabalham verificando fatos para provar fraudes e distinguir o que é notícia do que é falso.

Contudo, Magaly e Ben Hur explicam que as agências de verificação enfrentam dois problemas de difícil resolução. O primeiro é que a criação de conteúdos falsos, diferente dos jornalísticos, não depende de apuração ou mesmo existência de fatos, o que significa que eles podem ser publicados em volume muito maior do que é possível apurar, mesmo para grandes grupos, que passam a apenas “enxugar o gelo” diante da proliferação das fake news. O segundo, é que os algoritmos das redes sociais são programados para entregar o conteúdo que os usuários querem consumir, ou seja, informações favoráveis às suas crenças, independente de serem verdadeiras ou não.
Por fim, os pesquisadores afirmam que a responsabilidade pela checagem das histórias não cabe apenas à imprensa, mas sim às pessoas com maior instrução, às famílias e ao sistema educacional como um todo, e que a luta por educar os consumidores acerca de notícias falsas deve continuar enquanto elas existirem.
"À luz da Teoria Democrática, o jornalismo vigia e controla os outros poderes, baseando-se no princípio da liberdade de expressão, em especial na sua vertente da liberdade de informação (liberdade de informar, informar-se e ser informado)."
Ben Hur Demeneck e Magaly Prado, pesquisadores
Superando o jornalismo de “lobos solitários”
O Jornalismo Transnacional (JT) ganhou visibilidade a partir dos anos 2010 por reportagens investigativas como SwissLeaks, que denunciava um esquema de evasão fiscal que movimentava bilhões de euros por ano. A saber, o termo designa uma modalidade de jornalismo colaborativo em perspectiva global e que possui quatro características principais: 1) jornalistas de diferentes países; 2) trabalho organizado em torno de ideia de interesse mútuo; 3) reunião e compartilhamento de material; 4) publicação orientada para as próprias audiências.

A título de exemplo, o Consórcio Internacional de Jornalistas Investigativos (ICIJ) é uma referência mundial na coordenação de reportagens transnacionais relacionadas a vazamentos financeiros, evasão fiscal e lavagem de dinheiro. Em 2021, o Pandora Papers, organizado pelo grupo, congregou mais de 600 jornalistas em dois anos de investigação em torno de quase 12 milhões de arquivos confidenciais com o objetivo de revelar segredos financeiros de 35 lideranças mundiais e de mais de 330 políticos em 91 países. Ainda que os dados sejam levantados e analisados em conjunto, os jornalistas entregam esses dados de forma adequada às suas próprias audiências, o que resulta em uma riqueza de formas e conteúdos disponíveis em diversas línguas.
Para os autores, o JT transfere o protagonismo investigativo do repórter “lobo solitário” para a figura do colaborador em rede. “Em lugar de um só vigilante”, dizem Magaly e Ben Hur, “despontou no prado jornalístico uma matilha de ‘cães de guarda’ oriunda de diferentes países”. O papel fiscalizador do jornalista passa nos anos 2020 por sua capacidade de estabelecer e operar dentro de uma rede de contatos. Tal necessidade se reforça quando a cobertura exige um maior número de viagens, o domínio de outros idiomas e o contato com diversas instâncias administrativas.
Ademais, os autores avaliam que o JT contribui até mesmo para a segurança dos jornalistas investigativos. “Ser jornalista em certas regiões da América Latina”, apontam os autores, “costuma ser tão perigoso quanto trabalhar como correspondente de guerra exposto ao fogo cruzado”. Assim, uma rede de jornalistas trabalhando em uma investigação a partir de vários países diferentes permite que a investigação não seja “silenciada” por ações de governos totalitários ou organizações criminosas. Esse foi o caso de Miroslava Breach, morta a tiros como represália por investigar a suposta relação entre narcotraficantes e políticos no norte do México.
Como o blockchain pode aprimorar o jornalismo?
Com blockchains, as informações são organizadas em blocos criptografados, que se unem em cadeias (chains) nas quais cada informação, ou elo, está indissociavelmente ligado ao elo anterior e ao seguinte, tornando impossível alterar ou remover tais registros. É uma espécie de “livro razão digital”, registrando todas as alterações da cadeia e permitindo o rastreamento dos dados compartilhados.

No caso do jornalismo, Magaly e Ben Hur apontam que o determinante é saber que uma plataforma de blockchain é resistente à modificação dos dados nela são contidos, o que é útil quando é preciso proteger o conteúdo noticioso de adulterações e de censura. Tendo em vista que nenhum dado é excluído do blockchain, a origem de uma informação poderá sempre ser rastreada. Além disso, a tecnologia auxilia no combate à censura, já que, uma vez publicada, ela não pode ser removida.
Alguns exemplos de plataformas que usam blockchain são os seguintes:
- O The News Provenance Project foi criado pela equipe de pesquisa e desenvolvimento do The New York Times e trabalha com o design de produtos e ferramentas voltadas a tornar as origens de um conteúdo mais claras para o público, como encontrar fontes de imagens, datas de publicações e autores;
- A revista Popula usa blockchain para aprimorar seu fluxo de trabalho, além da possibilidade de receber doações na criptomoeda Ethereum. A revista também armazena seu arquivo em blockchain, no intuito de torná-lo imutável e permanente.
Para os autores, essas soluções de bancos de dados podem se tornar fundamentais para gerar confiança entre organizações de mídia e o público, pois garantem a rastreabilidade de informações como autoria, datas de publicação, origem de imagens etc.
Jornalismo descentralizado contra a desinformação
"Em se tratando de um cenário de desinformação, importa usar métodos que consigam diferenciar discursos baseados em crenças de qualquer ordem daqueles firmados em crenças verdadeiras e justificadas, conforme a evidência e correspondência a fatos."
Ben Hur Demeneck e Magaly Prado, pesquisadores
Para os pesquisadores, a tríade proposta como recurso anti fraude é descentralizada porque é em rede. O jornalismo transnacional não depende da presença dos jornalistas em um local físico, o que aumenta o alcance da colaboração entre profissionais, além de reduzir os riscos de violência contra jornalistas. As agências de checagem fazem o trabalho fundamental de diferenciar informações baseadas em fatos de mentiras deslavadas, enquanto o uso de blockchain se mostra cada vez mais vantajoso para a segurança e confiabilidade das informações, já que não pode ser alterado ou retirado do ar.

As iniciativas apresentadas no artigo mostram a importância do jornalismo transnacional para levantar discussões que extrapolam a ordem legislativa ou jurídica. Os “paraísos fiscais", por exemplo, são legalizados em muitos países, mas seria ético proteger fortunas enquanto explode a desigualdade entre ricos e pobres? Esse tipo de jornalismo também cumpre o papel de educar audiências por meio de um jornalismo comparado. Isso porque a riqueza de material em formas e conteúdos permite que o leitor coteje diferentes publicações, distribuídas ao mesmo tempo, em países, línguas, formatos e formas de narrar distintas.
Por fim, os pesquisadores acreditam que o exercício do jornalismo transnacional somado ao trabalho minucioso das agências de checagem e aos experimentos com plataforma blockchain são fundamentais para fortalecer debates e evitar o desmantelamento da democracia.
Os autores do artigo também apontam para a necessidade de reduzir a força da plataformização e das empresas por trás dela, que usam dados para modular o pensamento e o comportamento do público por meio de algoritmos programados para corroborar com as crenças dos usuários, ainda que elas sejam pautadas em informações falsas. Além disso, a mercantilização de dados por essas empresas é outro problema apontado pelos pesquisadores.
Revista Estudos Avançados
A Revista Estudos Avançados é uma publicação quadrimestral do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da USP e, desde a sua criação em 1987, já conta com 113 edições. O periódico, assim como o Instituto, volta-se para a intersecção entre conhecimento de ponta e problemas fundamentais da sociedade brasileira.
Em seus dossiês, a Revista apresenta ao público os resultados mais recentes dos grupos de pesquisa que fazem parte do IEA em um amplo espectro de temas, desde história cultural até desenvolvimento sustentável, aplicações da biotecnologia e diversas outras áreas.
Em sua 113ª edição, a revista traz três dossiês: Democracia; Negacionismos e Autoritarismos e Desinformação e Democracia, com artigos que abordam diversos temas, como o impacto das IAs na dinâmica dos regimes democráticos, o negacionismo científico durante a CPI da pandemia de Covid, além dos impactos da intimidação de jornalistas por políticos no combate à desinformação. Os artigos do dossiê Desinformação e Democracia foram desenvolvidos em coautorias por integrantes do grupo de pesquisa Jornalismo, Direito e Liberdade (JDL), vinculado ao Departamento de Jornalismo e Editoração (CJE) da ECA e coordenado pelo professor Vitor Blotta.