Livros com capa de papelão são únicos e democratizam o acesso à leitura
Trabalho de Conclusão de Curso mostra como editoras cartoneras difundem o papel do editor de livros
No início do século, a Argentina foi assolada por uma forte crise econômica, registrando uma taxa de pobreza de 57,5% em outubro de 2002. Diante desse contexto, surgiu em Buenos Aires uma alternativa de produção e edição de livros mais barata e acessível: as editoras cartoneras. Elas usam do papelão (cartón, em espanhol), material que, a princípio, seria descartado ou reciclado, para fazer as capas de seus livros e, além disso, criam uma nova forma de enxergar o papel do editor.
Esse foi o ponto de partida de A Ética e a Estética das editoras cartoneras brasileiras: projetos gráficos em papelão reciclado e sua relação com a proposta editorial, Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) de Samantha Paixão Culceag, que finalizou em 2023 o curso de Editoração. O trabalho, orientado pelo professor Luciano Guimarães, do Departamento de Jornalismo e Editoração (CJE), leva um título que faz referência ao processo de produção dos livros cartoneros, que é artesanal, com uma estética única, e também à ética de sua produção, que envolve a criação do movimento social cartonero, a democratização da leitura e a popularização da edição de livros.
O que são editoras cartoneras?
Samantha conta que o momento de crise econômica na Argentina teve relação direta com o aumento de catadores de papelão na cidade: “era um trabalho que acabou ficando muito comum por causa do alto número de desemprego”. Foi quando os editores de livros, junto aos catadores (cartoneros, em espanhol) encontraram uma nova saída para não deixarem de fazer suas publicações. A ideia foi produzir livros artesanais com capas de papelão. Isso “faria o dinheiro circular entre uma camada mais pobre da sociedade por meio da compra do papelão, além de tornar os cartoneros produtores de arte e protagonistas do processo criativo”, ela ressalta.
Esse tipo de edição também se tornou comum em outros países da América Latina que passavam por momentos difíceis na economia e na política, com consequente aprofundamento das desigualdades sociais. Samantha conta que o projeto cartonero foi uma forma de ampliar o acesso da população aos livros.
“As obras cartoneras […] permitiam que os textos fossem vendidos a um baixo custo. Com isso, o projeto cartonero nasceu ligado às camadas mais periféricas e pobres e com uma mentalidade muito coletiva.”
Samantha Culceag, editora
Por que falar sobre editoras cartoneras?
O primeiro contato de Samantha com editoras cartoneras foi em uma aula de tradução de espanhol, que cursava fora da USP. Ela conta que o assunto despertou sua curiosidade: “a professora citou algumas editoras que existiam… E eu achei muito diferente. Nunca tinha ouvido falar sobre isso no meu curso e pensei que daria um bom trabalho de TCC”.
A autora queria mostrar um lado mais artesanal e artístico dos livros e queria abordar algo que não fosse tão comum no seu curso. “Eu também participei de uma oficina [cartonera] e eu fiquei muito empolgada porque é muito diferente fazer livros, assim, no meio da rua”, relembra.
O envolvimento foi tanto que seu TCC, além do formato digital, também foi transformado em livro cartonero. “Eu acho que essas duas partes em que eu coloquei a mão na massa [oficina e edição do TCC em livro cartonero] foram as mais marcantes, porque eu me senti lá dentro do trabalho, eu tive a minha própria experiência”, relata. No último capítulo de seu trabalho, ela reflete sobre como debater o movimento cartonero se torna incompleto sem a experimentação prática da confecção de livros.
Estética
Cada livro cartonero é único e a estética desse tipo de produção é “o que as diferencia das demais editoras artesanais”, segundo Samantha. A edição cartonera conta com as imperfeições do papelão para compor a identidade de cada livro e com capas diferentes para o mesmo título. “O primeiro contato de qualquer pessoa com o movimento cartonero vem através do olhar, se deparando com os livros em alguma feira. A aparência do livro atrai, em primeiro lugar, por destoar dos demais tipos de livros e, em segundo lugar, pela curiosidade de descobrir quantos visuais o mesmo título pode ter”, avalia.
Um dos objetivos dos idealizadores do movimento é difundir o papel do editor de livros para todas as pessoas, independente de sua ocupação profissional. Samantha complementa que a trajetória de cada editor na construção da capa faz parte do significado que ela tem: “conhecendo a técnica cartonera e enxergando cada livro como resultado do esforço de alguém, entende-se a relevância daquela obra para além das possíveis imperfeições artísticas ou do material”.
Ética
As editoras cartoneras trabalham com a ideia de que editar é um ato político. De acordo com o TCC de Samantha, os materiais, formas e narrativas cartoneras vão contra a visão tradicional do que é um livro. É nesse sentido que a edição se torna, além de um trabalho artesanal, um movimento social, com oficinas e coletivos cartoneros. “Quando se edita um livro cartonero, atualmente, essas editoras continuam a se posicionar, ainda que em um outro contexto histórico. Refletir sobre essas questões é um ponto de partida importante para entender a linha ética que impulsiona o movimento”, afirma.
Os livros cartoneros são sinônimo de democratização do acesso à leitura, uma vez que seu valor de mercado é mais baixo do que o dos livros tradicionais e sua produção pode ser feita por qualquer pessoa. A autora comenta que “existe muito essa ideia das oficinas disseminarem conhecimento e fazerem com que os livros sejam acessíveis, de tirar eles de um patamar inalcançável e trazer eles para junto de pessoas que não têm o costume de ler e não têm contato com livros”.
“Editar também é uma forma de se posicionar e agir para que haja melhorias na sociedade. É uma forma de ter voz e, no universo cartonero, essa preocupação social ligada ao livro é ainda mais evidente.”
Samantha Culceag, editora
O movimento cartonero dá espaço a autores que, geralmente, não teriam seus textos publicados em grandes editoras. Samantha comenta que a liberdade de edição e o baixo custo de produção colaboram para que “formas de expressão que não são usuais ganhem espaço no movimento cartonero, incluindo aquelas discriminadas ou não reconhecidas”, como a publicação de textos de autores de periferia, lugares onde essas editoras estão localizadas e onde promovem oficinas.
Esse espaço também é criado para autores que publicam em línguas não tão conhecidas, colaborando para a preservação da cultura local. A autora cita o trabalho de Douglas Diegues, da editora La Cartonera, e da editora Mabuku ya Bantu Cartonera. A publicação nessas editoras faz parte de um projeto de “resgate e publicação da tradição oral” dessas línguas, segundo Samantha.
Douglas é escritor e criador do portunhol selvagem, uma mistura de português, espanhol e guarani, que iniciou suas publicações no formato cartonero com a sua editora, a Yiyi Jambo. A editora La Cartonera possui publicações em nahuatl, uma língua da família uto-asteca, e a Mabuku tem livros escritos em línguas bantu moçambicanas. A autora ressalta que “no mercado tradicional do livro, onde o objetivo é vender em grandes quantidades, línguas como essas enfrentam dificuldades para encontrar um espaço”.
Cartoneras brasileiras
Dentre as várias editoras presentes no Brasil, estão: Dulcineia Catadora, Malha Fina Cartonera e Catapoesia.
Dulcineia Catadora é um exemplo sólido da prática da ética das editoras cartoneras. Suas obras são feitas em uma ocupação sob ameaça de despejo, o centro de reciclagem Glicério, na cidade de São Paulo. “Os livros publicados pela editora abrangem tanto poesia neoconcreta, como livros experimentais artesanais e obras de conteúdo contestatório, temáticas que rompem padrões assim como a maneira da editora funcionar e o fazer cartonero que exercem”, segundo a autora.
A Malha Fina Cartonera surge na USP como um projeto de cultura e extensão da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) em 2015. A editora tem a proposta de inserir estudantes no mundo editorial, experimentando tradução, revisão, diagramação e a confecção de livros. Também procura integrar, através de atividades culturais e educativas, a universidade aos catadores de papelão, estudantes do ensino médio e fundamental e outros artistas. Samantha ressalta essa ponte construída entre o mundo acadêmico e o movimento cartonero: “percebemos como uma editora cartonera, ainda que inserida em um ambiente acadêmico, também olha para fora dele, consciente de que o movimento cartonero vem das ruas”.
Em 2009, como forma de documentar memórias da Comunidade Quilombola do Mato do Tição, em Minas Gerais, surge a Catapoesia. O projeto começou como um movimento de incentivo à leitura e ganhou formato cartonero, devido à forma acessível de produção e edição. De acordo com Samantha, essa editora busca criar coletivos juvenis cartoneros, tendo a premissa de que “as histórias estão em todos os lugares” e de que “cada um compõe a sua história”.
Ética, estética e futuro das cartoneras
Para entender a relação da ética e da estética dentro do movimento cartonero, Samantha diz que é necessário observar como as editoras se posicionam: porque publicam, como publicam e como apresentam seus livros.
Ela afirma que a ética e a estética se relacionam pela particularidade da arte criada em cada capa e pela preocupação com a difusão de conhecimento, democratização do acesso à literatura, edição e publicação. O livro cartonero está na intersecção entre a arte — a identidade visual das editoras, com suas técnicas e materiais — e as ações sociais praticadas pelo movimento.
“Não há produção [cartonera] sem a preocupação artística e social.”
Samantha Culceag, editora
Por fim, Samantha faz uma reflexão sobre o futuro das cartoneras. Por um lado, como elas vão contra o mercado tradicional do livro e sua reprodutibilidade técnica (publicações de massa padronizadas e impressas em gráficas), têm suas limitações e ocupam um “espaço marginal no mercado editorial”. Por outro lado, essa arte se mantém viva por sua “coletividade e esforço de difusão cultural”, sobrevivendo “através de muitas vozes e mãos”. Ela acredita que o mercado dessas editoras não vai crescer, nem acabar; elas têm força para continuar seus trabalhos artesanais “mesmo que na contramão de um mundo cada vez mais técnico, capitalista e individual”.