Artigo escava memórias negras soterradas sob a lama dos manguezais de Recife

Texto compõe dossiê da Revista Música, que busca renovar os estudos musicais a partir de perspectivas afrobrasileiras


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Apenas 1% dos conhecimentos presentes nos currículos dos cursos superiores em música no Brasil é dedicado às culturas afrobrasileiras. Esse número é resultado de um levantamento realizado em 2023 pelo pesquisador Luis Ricardo Silva Queiroz, professor da Universidade Federal da Paraíba (UFPB), e é com ele que a Revista Música inicia a sua primeira edição de 2024. 

O dossiê temático Música e relações étnico-raciais: perspectivas críticas reúne 15 artigos escritos por pesquisadores de todo o Brasil e que buscam reconstruir os estudos musicais se pautando pela “produção intelectual negra”, como destaca a apresentação do volume. Nesse texto, os editores convidados, Eduardo Guedes Pacheco e Felipe Merker Castellani, ambos da Universidade do Estado do Rio Grande do Sul (UERGS), apresentam um histórico do movimento negro brasileiro e dados sobre a baixíssima utilização de referências musicais afrobrasileiras na academia. 

 

“Este dossiê busca contribuir com a produção de conhecimento acadêmico, no entanto, o faz por meio das sonoridades que são produzidas fora do contexto que é tratado como majoritário.”


Eduardo Guedes Pacheco e Felipe Merker Castellani, UERGS

 

O som da lama 

Foto de homem branco de semi-perfil. Ele tem cabelos, barba e bigode bem curtos, pretos e um pouco grisalhos. Usa óculos e camisa branca. No fundo desfocadas, estantes cheias de livros.
Renato é doutor em antropologia pela UFPE, onde coordena o grupo de estudos Narrativas e Sonoridades (Trans)Atlânticas. Foto: reprodução/Lattes.

Escavando as memórias negras aterradas sob a lama da Manguetown é um dos artigos presentes no dossiê. Escrito por Renato de Lyra Lemos, da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), o texto se propõe a lançar um olhar não oficial sobre o movimento Mangue, por meio das  narrativas de interlocutores negros que foram apagados de sua história

Mangue, manguebit ou manguebeat é um estilo musical e movimento cultural que nasceu em Pernambuco na década de 1990.  Seu ritmo é marcado pela influência de diversos gêneros locais — como o maracatu, o samba-reggae e o afoxé — e internacionais, como o hip-hop. Suas composições apresentam um caráter de crítica social, ao relatar com indignação a realidade de bairros periféricos de Pernambuco, como o de Peixinhos, e da população negra. 

O nome do movimento vem dos manguezais, um ecossistema de regiões litorâneas coberto por lama que funciona como um berçário para diversas espécies de animais. De acordo com o autor, no último século, muitos deles foram aterrados para abrir espaço para a urbanização, “assim como aconteceu com as casas dos cidadãos negros da região. Dos mangues da cidade, restou uma água suja infectada por rios que recebem água de esgoto e uma vegetação que vive sendo agredida e a qual acumula muita sujeira”. 

Foto de uma antena parabólica fincada na lama e na areia em meio à água. No fundo, o céu azul e prédios e árvores no horizonte e, no fundo, o céu azul.
Foto: reprodução / O Recifense e a Contemporaneidade.

Foi nesse cenário que o manguebeat surgiu, tendo como símbolo a imagem de uma antena parabólica enfiada na lama. Essa ideia foi apresentada ao público pela primeira vez em 1992, no manifesto Caranguejos com cérebro, redigido pelo jornalista Fred O4, conhecido como vocalista e músico da banda Mundo Livre S/A. Nele, o artista apresenta a destruição do bioma dos manguezais, da cidade e das pessoas que nela residem para a chegada do suposto “progresso”.  E, para trazer a vida de volta à Manguetown (cidade do mangue), apenas o movimento contracultural que estava surgindo.

Os nomes mais conhecidos do manguebeat são os de Chico Science e sua banda, a Nação Zumbi. Os dois primeiros álbuns do grupo, Da Lama ao Caos (1994) e Afrociberdelia (1995), atingiram a marca de disco de ouro, isto é, venderam mais de 100.000 cópias. Esse sucesso não ficou restrito apenas à cena cultural do Recife, mas se espalhou pelo Brasil e pelo mundo, com turnês pela Europa e Estados Unidos

 

Foto de quatro homens se apresentando em um palco. O homem em primeiro plano está levemente abaixado e em movimento. Ele é branco, usa óculos escuros, touca de palha clara, camisa branca e calças pretas. Atrás dele, três homens tocam grandes tambores.
Show do Chico Science e da Nação Zumbi nos Estados Unidos em 1994. Foto: Reprodução/Wikimedia Commons.

 

Após mais de 30 anos do início do movimento e mesmo com a precoce morte de Chico em 1997, o manguebeat continua desempenhando uma importante função cultural e social, com direito a homenagens, shows e até um documentário na comemoração de seu aniversário. Renato, entretanto, ressalta em seu artigo que tamanha visibilidade não é distribuída de forma igualitária entre os participantes do mangue. Pelo contrário, alguns grupos que tiveram grande papel na construção do movimento foram completamente invisibilizados na história que é amplamente veiculada pela mídia.

O pesquisador explica que isso aconteceu devido às posições sociais daqueles que alcançaram os holofotes, uma vez que eles eram, em sua maioria, brancos, de classe média e universitários, então tinham fácil acesso a jornalistas, produtores e artistas, por exemplo. “Esse núcleo teve acesso a algo muito importante que o pessoal de Peixinhos não tinha: os contatos certos”, afirma Renato.  

Peixinhos é um bairro pobre da região metropolitana de Recife e foi um “importante berçário para o movimento mangue”. O pessoal de lá corresponde a outros músicos que já tocavam no bairro e abriram espaço para a produção que Chico Science, Fred O4 e suas bandas viriam a fazer. A principal influência foi a do Lamento Negro, um bloco afro de samba reggae sediado em Peixinhos, o qual Chico frequentou por algum tempo

 

“A cena de Peixinhos continua sempre ficando à margem, parecendo que foi algo menor, apenas transitório, que serviu como estímulo inicial, mas como se os elementos que se desenvolveram depois dali não tivessem mais nenhum vínculo nem devessem nenhuma  consideração àquele lugar.”


Renato de Lyra Lemos, doutor em antropologia pela UFPE

 

Show do Chico Science e da Nação Zumbi nos Estados Unidos em 1994.  Foto: Reprodução/Wikimedia Commons
Bloco Lamento Negro se apresentando no festival Pernambuco Meu País em agosto de 2024. Foto: reprodução/ Instagram Lamento Negro Oficial.

 

Com o objetivo de dar mais visibilidade às narrativas que foram apagadas da história do manguebeat, Renato realizou um extenso processo de recuperação do passado através de recortes, memorabília, conversas e depoimentos. “Como essas memórias negras geralmente não estão contidas nos arquivos oficiais, para reconstruí-las é necessário recorrer a alguns rastros de informação, como o trabalho  de um arqueólogo, escavando esses fragmentos das memórias”, afirma o autor. 

Um dos exemplos mais marcantes de reconstrução dessa história presente no artigo  é a fala de Maia Nomoni, um dos mestres fundadores do bloco Lamento Negro. No evento 30 anos de musicalidade afro no movimento manguebeat, promovido pelo Movimento Negro Unificado de Pernambuco em novembro de 2023, Maia afirmou: 

“Ninguém nunca chamou nós, a pretitude, que é de onde começa o movimento Mangue, pra fazer uma roda de diálogo. [...] Quando a gente fala do movimento Mangue é por causa do nome que foi dado, a simbologia. Até porque o mangue, quem ia pegar os frutos era nós pretos, eram os nossos pais e as nossas mães, eram nós aqui. Então esse é o primeiro órgão que chama a nós, os embriões, a pedra fundamental, a árvore genealógica, para que isso [o movimento mangue] esteja aqui. E quando tem os 30 anos do movimento Mangue ninguém nunca chama, né. [...] Aí a gente vê como o racismo é muito perto da gente. Porque se fosse os branquinhos de lá, tava a imprensa, tava todo mundo lá, mas aí como é uma negrada, que vêm da periferia, que vêm da favela, não está a imprensa aqui,  porque  eles  dão  invisibilidade pro que a gente construiu lá atrás.” (sic)

Renato conclui seu artigo ressaltando a importância de figuras como Chico Science para o manguebeat e para a cultura brasileira. Porém, ele também se propõe a dar um pouco de visibilidade às outras histórias do movimento que permanecem soterradas sob a lama do mangue e do racismo estrutural do Brasil

 

Revista Música 

Fundada em 1990, a Revista Música é uma publicação semestral do Programa de Pós-Graduação em Música (PPGMUS) da ECA USP, voltada para a divulgação de artigos acadêmicos, resenhas, traduções e entrevistas sobre a área musical.

Nesta edição, você também pode encontrar dois artigos de autores ecanos: Fred Moten e a vanguarda sentimental negra, de Romulo Alex Inacio, e Arte e pensamento negro como epistemologias críticas: contribuições para o ensino de música, de Stefani Silva Souza.

 

 


Foto de capa: reprodução/ Instagram Lamento Negro Oficial.