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Com ex-alunos da ECA na equipe, projeto Querino destaca o protagonismo negro na História

Vencedor do 45º Prêmio Vladimir Herzog, o podcast reconta a história do Brasil sob uma perspectiva afrocentrada

Comunidade
Foto de Natalia Silva. Uma jovem parda, de cabelos pretos, de tamanho médio, cacheados. Ela veste uma blusa verde de mangas compridas e um óculos de haste escura. Natalia está sentada, com os antebraços apoiados em uma mesa de madeira. Ela segura com as mãos um microfone. Sobre a mesa estão alguns objetos: um microfone, um livro, um copo de vidro. Ao fundo, do lado esquerdo, uma porta branca, e à direita, uma estante cheia de livros.
Natália Silva, ex-aluna do curso de Jornalismo e produtora da Rádio Novelo. Foto: Reprodução/Instagram

“Como alguém que trabalha com podcasts, eu sempre penso que eu estou falando no ouvido de uma pessoa que não me conhece – e que provavelmente nunca vai ver o meu rosto – e eu quero que essa pessoa confie em mim para que a gente possa, juntos, criar uma história completa”, afirma Natália Silva, egressa do curso de Jornalismo, concluído em 2020, produtora da Rádio Novelo e uma das integrantes do projeto Querino. Idealizado pelo jornalista e roteirista Tiago Rogero, o podcast foi anunciado vencedor do Prêmio Vladimir Herzog em 2023 na categoria Produção Jornalística em Áudio.

O projeto Querino lança-se à difícil tarefa de “falar ao ouvido” de milhares de pessoas sobre exatos 200 anos de história do Brasil, de 1822 a 2022. Tudo isso em apenas oito episódios. Mais do que isso, falar sobre alguns dos principais momentos (como a independência do Brasil e a abolição do trabalho escravo) sob o ponto de vista de pessoas negras e de seus descendentes, um grupo que, historicamente, foi invisibilizado em nosso país. “É um podcast que conta a história da independência brasileira a partir de um olhar afrocentrado”, explica a ex-aluna da ECA.

Natália Silva é uma das 20 pessoas creditadas na produção (foram mais de 40 profissionais envolvidos ao todo). Ela atuou na revisão do roteiro e na direção de locução do podcast. A consultora de roteiro Paula Scarpin e o produtor executivo Guilherme Alpendre são outros dois ex-alunos da ECA envolvidos no projeto. Paula e Guilherme são contemporâneos na ECA: ambos ingressaram no curso de Jornalismo em 2003.

O projeto Querino é resultado de um trabalho de dois anos, contou a jornalista e produtora Angélica Paulo durante a roda de conversa do prêmio, realizada no dia 25 de outubro. O primeiro ano foi todo dedicado à pesquisa histórica, coordenado pela professora Ynaê Lopes dos Santos, docente da Universidade Federal Fluminense (UFF).  “O projeto Querino tem esse cuidado de não ser um achismo de nós, jornalistas”, conta a produtora, enfatizando o trabalho de pesquisa e de checagem das informações. É a esse trabalho cuidado que Angélica credita a boa recepção que o podcast tem tido junto a professores de história. “Aula sobre história preta ainda é uma coisa muito difícil no Brasil”, explica Angélica. “E uma das grandes contribuições do projeto Querino é conseguir levar para estes jovens o Brasil que o Brasil não conhece”. Atualmente, o podcast está sendo adaptado para ser usado em sala de aula. 

 

Montagem com 1 pintura e 5 fotos em preto e branco de pessoas negras, organizadas em 2 linhas com 3 colunas. No topo, da esquerda para a direita: pintura de um homem negro de cabelos escuros, camisa branca, colete e gola longa. Ao lado, um homem negro calvo , de bigode grisalho, terno risca de giz, camisa branca e gravata clara. O terceiro é um homem negro idoso, de pele retinta, com cabelos grisalhos, barba branca e terno escuro, camisa branca e gravata preta. Abaixo, uma mulher  de cabelos pretos presos, vestido branco, xale estampado sobre um dos ombros e colares de contas grandes e pequenas. Ao lado, um homem negro de cabelos e barba preta em trajes militares e por último, uma criança de cabelos escuros e pele parda chupa o dedo no colo de uma mulher parda de cabelos escuros e vestido escuro com gola branca.
Personalidades negras retratadas pelo projeto: da esquerda para a direita, na parte superior, o militar Henrique Dias, o intelectual Manuel Querino e o curandeiro Mestre Tito; abaixo: a ialorixá Mãe Aninha, o alferes Dom Obá II e a compositora Chiquinha Gonzaga, ainda criança. Montagem de Paula Cardoso sobre fotos de Museu do Estado de Pernambuco/Tiago Rogero/Smithsonian/Hércules Florence/Coleção Princesa Isabel: Fotografia do século XIX/Editora Zahar. Imagem: reprodução/ site da revista Piauí. 

 

200 anos, 8 episódios: desafios na produção de um podcast

Angélica Paulo é uma mulher negra, de cabelos curtos e cacheados. Ela usa óculos em formato arredondado e estampa animal print. Ela veste uma blusa com estampada, nas cores verde e azul. Ela segura um microfone com uma das mãos.
Angélica Paulo, produtora do podcast projeto Querino. Foto: Reprodução/Youtube

Com a compilação dos dados de pesquisa do primeiro ano, o projeto Querino entrou em sua segunda fase: como contar aquela história. Foi então definido o formato, como cada assunto seria tratado e quais as pessoas que o projeto gostaria de retratar. O resultado foram os episódios, de pouco mais de 50 minutos cada um, com temas específicos, como saúde, trabalho, música e economia. Nessa hora, entra em cena a equipe de produção: “é um pouco um trabalho de detetive: descobrir quem é aquele personagem, quem fala sobre ele, se existe uma tese ou uma dissertação que embase aquela história”, explica Angélica.

Natália conta que foi contratada pela Rádio Novelo em março de 2022, integrando a equipe do projeto Querino já na “reta final” dos trabalhos, fazendo a revisão de roteiro e acompanhando o jornalista Tiago Rogero em parte das gravações de locução. “Como todos estavam debruçados no projeto há vários meses, meu papel era trazer um olhar fresco e fazer perguntas, para entender se o que estava nos roteiros era realmente o que eles queriam comunicar”, conta a jornalista. Para a ex-aluna da ECA, o projeto fala sobre história, mas com a preocupação de manter o seu olhar sobre o presente. “O ouvinte é convidado a pensar sobre os impactos de algo que aconteceu há 200 anos no agora, no seu dia-a-dia. No mercado de trabalho, no sistema judiciário, na cultura, na educação”. Natália explica que, desse modo, o podcast estimula a entender melhor o passado e o que acontece hoje.

A facilidade para trabalhar com o áudio foi algo que Natália observou desde o início da graduação na ECA. “Eu gostava da parte técnica, de fazer gravação e edição de som. Cheguei a fazer podcasts na ECA, mas não numa disciplina de áudio e sim de jornalismo digital. Isso foi em 2018, quando os podcasts viraram uma obsessão pra mim”, relembra. Ainda na graduação, Natália produziu seu primeiro podcast investigativo – Prato Cheio, sobre alimentação – fazendo, como ela mesma diz, “de tudo um pouco” – produção, roteiro e edição de som. Depois disso, foi editora de som e produtora de podcasts na Folha de São Paulo até chegar, finalmente, à Rádio Novelo.

 

“Eu dou o som. As vozes, as descrições, os fatos.
 Cabe a quem ouve imaginar esse universo.
 Sem essa disposição do ouvinte, a magia não acontece”. 

Natália Silva, ex-aluna da ECA e integrante da equipe do projeto Querino, sobre a produção de podcasts

 

Foto de Tiago Rogero, um homem negro, calvo, de cavanhaque. Ele usa um óculos de lentes retangulares e haste transparente. Ele olha diretamente para a camera com um leve sorriso.
Tiago Rogero, idealizador do projeto Querino. Foto: Leo Martins/Divulgação

Na direção de locução do projeto Querino, função dividida com Flora Thomson-DeVeaux, Natália tinha o papel de acompanhar Tiago Rogero, que também apresenta os episódios, nas gravações. “Além de corrigir pequenos erros de leitura aqui e ali, nosso papel era guiar o Tiago pra que ele soasse o máximo como ele mesmo”, conta Natália. “Quem tá ouvindo só não faz ideia que tudo ali é roteirizado. Nada daquilo que o Tiago fala, ele fala da cabeça dele. Tá tudo no roteiro”, conta Angélica Paulo, ao explicar que, entre os objetivos do roteiro está tornar as personagens históricas mais palpáveis ao público. “Você sai de alguns episódios quase que vendo o rosto daquela pessoa que você nunca viu”. Um desses personagens é Manuel Querino, que dá nome ao podcast, um militante na luta abolicionista, integrante do movimento republicano na Bahia e pesquisador da cultura afro-brasileira.

 

Como trabalhar com podcasts?

Para a ex-aluna da ECA, o mercado de podcasts está longe de atingir todo o seu potencial.

E para quem gosta de podcasts e quer trabalhar com isso, a primeira dica é: escutar muitos podcasts. Mas só isso não basta. Natália sugere ouvir os episódios até o final, prestando atenção aos créditos de cada produção. "Quem trabalha nos podcasts que você mais gosta? Qual percurso que essas pessoas percorreram para chegar onde estão hoje?”.

Na opinião da jornalista, ouvir podcasts, conhecer as trajetórias dos profissionais da área, fazer contatos e sugerir pautas ajudam a entrar no mercado de trabalho. “Tem muito terreno a ser explorado”.

 

Prêmio Vladimir Herzog

O Prêmio Vladimir Herzog de Anistia e Direitos Humanos foi criado em 1979 com o objetivo de reconhecer o trabalho de  jornalistas, repórteres fotográficos e artistas dedicados à defesa da democracia, da cidadania e dos direitos humanos. Nesta 45ª edição, 630 produções concorrem ao prêmio em sete categorias: produção jornalística em texto, produção jornalística em áudio, produção jornalística em vídeo, produção jornalística em multimídia, fotografia, arte e livro-reportagem. Uma novidade desta edição foi o anúncio, durante a premiação, da criação de um instituto homônimo, que será composto por diferentes organizações de defesa dos direitos humanos

A premiação carrega o nome de Vladimir Herzog, jornalista morto pela ditadura civil-militar em 1975 em São Paulo. Vlado, como era conhecido, teve passagens nas redações de O Estado de São Paulo, Rádio BBC e TV Excelsior, além de atuar como professor de jornalismo da Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP) e da ECA.

A ECA é uma das 13 instituições que, ao lado da família Herzog, integram a comissão organizadora do prêmio.