Na Mira do Mito: livro analisa ataques de Bolsonaro a jornalistas mulheres
Ex-discente de Jornalismo investiga histórico da relação do presidente com a imprensa e entrevista quatro profissionais agredidas
Em seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC), Júlia Vieira de Camargo decidiu estudar os ataques do atual ocupante do Palácio do Planalto a profissionais da imprensa mulheres. Sob orientação da professora Elizabeth Saad, do Departamento de Jornalismo e Editoração (CJE), a pesquisa resultou no livro-reportagem Na Mira do Mito, finalizado em junho de 2021. Para entender a histórica preferência do presidente por agredir jornalistas mulheres, a autora reuniu episódios que remontam ao início da carreira do político. Além disso, conversou com quatro profissionais vitimadas por ele nos últimos anos: Thaís Oyama, Patrícia Campos Mello, Vera Magalhães e Victoria Abel.

“Me senti honrada por ter a chance de entrevistar mulheres que eu realmente admiro e, mais do que isso, honrada por elas terem aceito compartilhar momentos tão delicados comigo", relata a ex-aluna. Com esse conteúdo em mãos, sua ideia principal foi dar voz e rosto às vítimas, explanando as consequências dos ataques do chefe do Executivo e de seus apoiadores à imprensa.
Segundo o TCC, o presidente aproveita a repercussão das falas polêmicas para contaminar a opinião pública e criar cortinas de fumaça sobre suas ações, evitando a prestação de contas para a sociedade. Assim, além de comentar os casos de violência contra jornalistas, o livro ainda detalha as denúncias que Bolsonaro e seus aliados tentaram sufocar com as agressões.
Ainda que o mandatário mire suas ofensas na imprensa como um todo, aquelas direcionadas às profissionais mulheres são marcadas pelo machismo e pela misoginia, e tendem a ser mais virulentas. “O chefe do Executivo vai desde ataques de gênero, morais e à reputação das jornalistas mulheres até acusações de viés político e de má conduta profissional. Em muitos casos, Bolsonaro parte para a estratégia de usar traços estereotipados como insultos ou de questionar a capacidade intelectual das repórteres”, afirma Júlia.
“A preferência por atacar mulheres está visceralmente associada a preconceitos ancestrais. Parte de apoiadores de líderes populistas gosta de poder se libertar do politicamente correto e se deleita com essa ‘licença’ para dar vazão a um machismo incrustado, que muitas vezes acomete também as mulheres — é uma espécie de catarse.”
Patrícia Campos Mello, jornalista, no livro Na Mira do Mito
Contudo, Júlia destaca que, mesmo com tantas investidas contra sua reputação e saúde mental, as repórteres não se autocensuraram por medo de novas ocorrências. Por entenderem o jornalismo como um dos pilares da democracia, “parar de reportar nunca foi uma opção.” Nesse sentido, o compromisso dessas mulheres com a responsabilidade jornalística é fundamental, uma vez que 58% das pessoas que exercem a profissão no Brasil se identificam com o gênero feminino, segundo dados de 2021 da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

As páginas iniciais do livro são dedicadas à história da relação de Bolsonaro com a imprensa. Foi em 1986 que o nome do então militar apareceu em uma revista pela primeira vez, devido a uma reivindicação por aumento de salários. “Como uma ironia do destino, o jornalismo, categoria que mais para frente seria coroada como ‘inimiga número 1’ do capitão, foi a responsável por conceder os 15 minutos de fama que alçaram Bolsonaro, 32 anos depois, ao cargo de autoridade máxima do país”, comenta a autora.
De 1991 a 2018, diante de uma carreira política sem grandes conquistas - dentre seus 171 projetos de lei apresentados na Câmara dos Deputados ao longo de 27 anos, apenas dois foram aprovados -, Jair via nas falas polêmicas uma maneira de ocupar as manchetes da mídia e atrair eleitores que se identificassem com suas posições. Segundo o TCC, conforme a responsabilidade atribuída a Bolsonaro aumentou - e consequentemente a cobrança sobre suas ações -, cresceram também o número e a violência dos ataques, de maneira a criar novos focos de atenção nos noticiários.
“Com a eleição de Jair Bolsonaro à Presidência da República, a quantidade de agressões teve um acréscimo de 54,07% em um ano, passando de 135 em 2018 para 208 em 2019. Desse total, Bolsonaro foi, sozinho, responsável por 121 dos ataques a veículos de comunicação e a jornalistas (58,17%).”
Júlia Vieira de Camargo, jornalista

Por assistir às investidas inúmeras vezes, a sociedade já se familiarizou com o comportamento do mandatário. De acordo com o livro, suas atitudes já foram normalizadas, e não causam mais a devida perplexidade. Pelo contrário, a conduta do presidente tem possibilitado que diversos sujeitos se sintam à vontade para reproduzir os ataques. Nas redes sociais, grupos bolsonaristas não hesitam em se juntar a ele nas ofensivas contra as vítimas - entre elas, as jornalistas com quem Júlia conversou. Conheça brevemente as histórias relatadas por essas profissionais.

Após o resultado das eleições de 2018, Thaís Oyama, então repórter da Veja, pediu demissão para se dedicar à escrita de um livro, cujo tema seria o primeiro ano de gestão de Bolsonaro. Com a publicação da obra, “o presidente não gostou nada de ter suas crises, intrigas e segredos expostos e mirou sua artilharia na autora”, narra Júlia.
Em meio a falas revoltosas que chamavam o livro de fake news e mentiroso, estavam também comentários preconceituosos e xenofóbicos de Jair. A jornalista, por ter acompanhado o comportamento dele ao longo de um ano, já conseguia imaginar qual seria sua reação e, por isso, “não esperava nenhum tipo de atitude mais civilizada do que essa que ele teve.”
Apesar de ter ficado chateada por saber que japoneses e descendentes sentiram sua identidade atacada, Thaís afirma não ter sido atingida pessoalmente. Pelo contrário, sua reação foi bem mais pragmática. Ao descobrir que o Jornal Nacional exibiria uma matéria sobre a má receptividade de Bolsonaro ao livro, a autora viu a repercussão como algo benéfico, e apelidou o presidente de "garoto-propaganda" da obra.

Júlia afirma que, ao longo de quase 30 anos de carreira, Patrícia Campos Mello “passou por inúmeras áreas de conflito, mas foi no Brasil que vivenciou a pior guerra”. Em 2018, reportagens de sua autoria expuseram o financiamento, por empresas privadas, de esquemas de disseminação em massa de conteúdos nas redes sociais - algo proibido pela Lei Eleitoral, o que incentivou a instauração de uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) para investigar este e outros casos.
Durante o processo judicial, Patrícia foi acusada por uma testemunha de oferecer sexo em troca de informações. O posicionamento de Bolsonaro foi provocar: “Ela queria um furo. Ela queria dar um furo a qualquer preço contra mim”. Para a jornalista, foi um soco no estômago. Mas os golpes não acabaram por aí. “Foi um assassinato de reputação. Um assédio online brutal. O próprio presidente, os seus filhos e vários aliados deles puxavam isso. Tinha uma coisa muito sexual”, relembra a repórter.

Após um breve início de carreira na editoria de variedades, Vera Magalhães migrou para o jornalismo político e nunca mais saiu. Por ser uma veterana no assunto, a repórter já estava acostumada a ser considerada “inimiga” de governos vigentes, mas nada comparado à gestão bolsonarista. “Tinha [ataques], mas nunca dessa forma tão sistemática, nunca partindo do próprio presidente ou dos seus aliados mais próximos, [...] essa coisa tão institucionalizada”, relatou Vera.
Para a jornalista, Bolsonaro escolhe mulheres por acreditar que elas são mais sensíveis e que, por isso, se dobrarão mais facilmente. Mas ela mesma provou o contrário em rede nacional. Em 2020, após ser alvo de ofensas em uma das lives semanais de Jair, ela chegou a vomitar. “[Mas] eu me recuperei de alguma maneira e, na mesma noite, fui ao Jornal da Cultura, uma das empresas para as quais eu trabalho e que me deu espaço para responder. E eu respondi também nominalmente a ele. Não me dobrei a esse tipo de pressão”, conta.

Durante a pandemia, Victoria Abel questionou o presidente sobre o suposto caso de corrupção na compra de vacinas pelo Ministério da Saúde. Farto de ser indagado sobre o assunto, ele ordenou que a repórter parasse de fazer perguntas e voltasse para a faculdade e para o ensino primário. Algum tempo depois, o mandatário tornou a se dirigir a Victoria, dizendo “nasça de novo você! Ridículo, ridículo! Está empregada onde? Pelo amor de Deus”.
A jornalista conta que não percebeu de imediato a agressão verbal sofrida, não viu nada de mais e nem levou para o lado pessoal. Para ela, “era só o Bolsonaro sendo o Bolsonaro”. Foi apenas conversando com outros profissionais da imprensa que Victoria teve consciência da gravidade da situação. Vera Magalhães foi uma das que aconselhou a repórter, alertando sobre a importância de não normalizar esse comportamento e apontando que o insulto veio por ela ser uma mulher.
Nas últimas semanas, novos ataques foram direcionados a repórteres. “Eu já imaginava, principalmente com a proximidade das eleições, que as investidas do presidente voltariam a ser recorrentes, já que é durante a campanha o período em que um político é mais confrontado”, diz Júlia. Mas esses não são, de maneira alguma, episódios isolados.
Ela cita no TCC uma dezena de outras mulheres que foram alvo do presidente, e é para elas que o livro-reportagem é dedicado. Foram diversas jornalistas que tiveram sua vida particular e profissional desestabilizadas pelo político. Foram pessoas que precisaram enfrentar, além das agressões verbais, exposições de dados pessoais na internet, ameaças a familiares, ações sistemáticas de difamação e, para aquelas que decidiram denunciar os crimes, custos e desgastes gerados por processos judiciais.

Embora essas ocorrências sejam frequentemente veiculadas, Júlia salienta que a mídia não reforça suficientemente o caráter machista e misógino dos ataques . Um artigo citado no TCC aponta, entre outros questionamentos, que esse tipo de intolerância não é trazido à tona nas matérias. Segundo as autoras, muito se destaca que as profissionais foram agredidas pela condição de jornalista, descartando a condição feminina.
Outra angústia das jornalistas é que esses episódios provavelmente não cessarão ao fim do mandato presidencial. Para Thaís, “ele faz uma campanha difamatória sistemática. Isso vai ficar por um bom tempo. O governo Bolsonaro passará, mas as sequelas desse movimento não. Vamos ter muito trabalho para reconstituir a reputação da imprensa constitucional.” Diante desse cenário, apesar de perceber o jornalismo político como uma área de atuação muito sensível e potencialmente perigosa, a ex-discente enfatiza a urgência de falar sobre os casos.
“Você acaba mexendo com as paixões das pessoas; a política se tornou algo passional no Brasil. [...] [Mas] eu nunca pensei em desistir do tema, pelo contrário. A intensificação da frequência e do nível de ataque só me deu mais combustível e mostrou a necessidade de falar sobre o que estava acontecendo.”
Julia Vieira de Camargo, jornalista