Arte: identidade e resistência de mulheres latino-americanas

Nova edição da revista Extraprensa traz artigo sobre as dificuldades que artistas latino-americanas enfrentam para conquistar espaço no mercado internacional 

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Após o fim da segunda guerra mundial, houve um fluxo de artistas latino-americanas para os Estados Unidos e para a Europa, com a intenção de abrir caminho no mercado de arte internacional. Uma vez no exterior, as artistas poderiam traçar dois caminhos distintos: defender sua identidade nacional ou desprender-se de tais caracterizações e abraçar preceitos mais universalistas. Contudo, ainda que a origem latino-americana atraísse o interesse de europeus e estadunidenses, ela também implicava no risco de submetê-las a estereótipos, limitando seu ímpeto criativo, independentemente da postura por elas adotada.

Com o objetivo de investigar as dinâmicas de circulação de artistas latino-americanas em Paris e em Nova York entre as décadas de 1960 e 1980, a pesquisadora Ana Beatriz Mauá Nunes, mestra em História Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, desenvolveu a pesquisa que resultou no artigo Impasses da internacionalização: artistas latino-americanas no circuito global, publicado no volume 17, número 2, da Revista Extraprensa. O artigo foca em registros autobiográficos de três artistas latino-americanas, a brasileira Regina Vater, a argentina Marta Minujín e a chilena Lotty Rosenfeld,  buscando em suas cartas, diários e entrevistas as suas impressões, expectativas e frustrações em relação ao mercado internacional de arte. 

A pesquisa conclui que, mesmo quando as artistas adotaram uma postura universalizante, não abordando temas ou formas consideradas latinas, elas eram relegadas ao papel subalterno de arte regional. Os relatos das próprias artistas também sugerem que as relações hierárquicas entre norte e sul global no campo da arte são um reflexo das relações hierárquicas vistas na economia e na política internacional

 

Entre a universalidade e o nacional 

Das artistas estudadas pela pesquisadora, há duas que se destacam por terem tomado decisões distintas: Marta Minujín, artista conceitual e performática argentina que abraçou os ideais de vanguarda da Europa, e Regina Vater, fotógrafa e artista plástica que, nos EUA, buscou o reconhecimento por uma arte assumidamente brasileira. 

Marta registrou em seus diários íntimos suas impressões sobre Paris em sua primeira ida a cidade, em 1970: 

 

"Medo da solidão! Vou para Paris, mais cedo ou mais tarde, nada me impedirá, e então, dirão: ela carregava a arte pictórica nos olhos e na mente! Mas não irei beber absinto, mas sim ficarei dias inteiros em longas conversas para filosofar com Van Gogh, Gauguin, Cimabue, Giotto."

Marta Minujín, artista conceitual e performática

 

Foto de uma mulher em frente a uma escultura inflável de cerca de 8m de altura em uma praça gramada. A escultura tem formas cilíndricas com listras de diversas cores entrelaçadas. A mulher é branca com cabelos médios e loiros, usa óculos escuros e macacão azul  e tem os braços erguidos. Atrás delas, árvores, um prédio e o céu azul.
 Obra de Marta Minujín no Times Square, em Nova Iorque. Foto: reprodução/Tempoar.

Segundo os registros da artista, sua intenção durante a estadia em Paris era entrar em contato com as vanguardas europeias, fosse por meio do diálogo com obras clássicas, fosse pela busca por práticas disruptivas. “Em nenhum momento”, diz a pesquisadora, “foi manifestado o interesse de fazer arte como contemporâneos de origem latino-americana que viviam na Europa no período”. Ainda assim, seu trabalho foi rotulado por seus pares como “arte argentina”, o que foi uma grande frustração para Marta. 

Anos depois, seu trabalho é considerado um expoente da arte argentina, ainda que Marta não concorde com tal rótulo. Seu deslumbramento inicial com a estadia na Europa foi se perdendo, diante do que, ela passou a se interessar mais pelas obras artísticas, científicas e filosóficas produzidas em seu país. “Sua percepção”, complementa a pesquisadora, “é que o mercado internacional, embora passe a imagem de ser cosmopolita, não coloca as obras latino-americanas no mesmo patamar das obras europeias ou americanas“

Diferente de Minujín, Regina Vater abraçou a cultura do Brasil como uma forma de manter a proximidade com sua terra natal. Boa parte da carreira da artista foi itinerante, circulando entre São Paulo e o Rio de Janeiro até que, enfim, instalou-se nos Estados Unidos, em 1974. Lá, ela trabalhou com identidade de gênero, sexualidade, religiões de matriz africana e outros temas com uma perspectiva de experimentação total, quer em obras visuais quer em instalações ou performances. 
 

"O que faz de mim uma mulher e artista latino-americana, se eu sou o resultado de sangue alemão, português, indígena, basco, judaico e suíço?"

Regina Vater, fotógrafa e artista plástica

 

Foto de cubo transparente repleto de conchas, tendo ao centro uma televisão com uma imagem azulada na tela. Acima, a obra é mostrada por inteiro, abaixo, há um recorte da parte superior do cubo, mais aproximado. O Fundo é escuro.
Detalhe da obra Água, de Regina Vater. Foto: reprodução/Itaú Cultural. 

Embora se interessasse por fazer uma arte assumidamente brasileira, Vater recusou-se a incorporar o estereótipo de “artista  exilada” de uma ditadura sul-americana, pois o considerava uma “maneira fácil” de entrar no mercado, já que a postura agradava aos americanos mais liberais. Regina buscava ser reconhecida pela qualidade de sua arte, não por sua origem. 

Durante sua trajetória nos EUA, uma de suas propostas foi plagiada, motivo de frustração extrema para Regina. “Esse momento é emblemático”, diz a pesquisadora, porque representou “a constatação de que a cidade estadunidense, entendida até então enquanto espaço privilegiado para a criação artística e berço de uma cultura ‘universal’, era também marcada por disputas e competições entre artistas de variadas origens, que buscavam ali sedimentar e consolidar suas carreiras”. 

 

 

 

Arte como resistência e denúncia

 

"A temática do exílio permeou os debates historiográficos de países que enfrentaram governos autoritários e totalitários."

Ana Beatriz Mauá Nunes, pesquisadora


A última artista abordada pela pesquisadora foi Lotty Rosenfeld, uma artista visual e intervencionista chilena, que optou por permanecer em seu país mesmo durante a ditadura de Pinochet. O objetivo de Lotty era, diz Ana Beatriz, discutir o papel da América Latina no circuito internacional de arte, fosse na produção em si, fosse nas entrevistas e outros registros autobiográficos. No ensaio A máquina de Pinochet, a artista lamenta a saída de seus colegas que “abandonaram” o país: 

 

"Haviam ido embora, seguiam saindo. Carlos, meu amigo de infância, já estava em Paris. Em Paris! Seguiam indo embora e, de uma forma que se poderia considerar injusta, instalou-se interiormente o rancor."

Lotty Rosenfeld, artista visual

 

foto em branco e preto de mulher branca de cabelos longos, lisos e escuros, vestida de preto e agachada sobre o asfalto. A mulher está desenhando cruzes no pavimento. O fundo é cinza claro.
Lotty desenhando cruzes sobre o pavimento. Foto: reprodução/ artistas visuales chilenos.

O trabalho de Lotty se dividia em três eixos: a memória de si mesma, onde retrata a sua experiência de vida em meio a ditadura chilena; a arte contestatória, por meio de obras visuais e intervenções; discussão das relações de hierarquia da arte da Europa e EUA em relação a arte latina. Para Lotty, essa hierarquia em relação à arte latina é um reflexo das crises sociais latino-americanas e da sua dependência econômica dos países do norte.

Para ela, permanecer no país e permanecer fazendo arte é uma forma de resistência, mas ao mesmo tempo, também é a razão da “morte de sua felicidade” , já que envolve um período de solidão para a artista. 

 

"Optei por ficar e assim, através da arte, favorecer o terreno próprio à derrubada da ditadura. Uma tarefa que, depois de todos estes anos de horror, me roubou a alegria de viver e fortaleceu-se dia após dia na minha convicção da importância do trabalho do artista."

Lotty Rosenfeld, artista visual

 

Mulheres na arte e na história da América Latina 

Segundo Ana Beatriz, mesmo que Lotty tenha sido a única das artistas pesquisadas que se posicionou claramente sobre as relações de poder dos EUA e Europa em relação à arte latino-americana, não se pode desconsiderar que Vater e Minujín também têm papéis importantes para a história das mulheres artistas latinas, tanto por suas estratégias de profissionalização, quanto pelo registro das dificuldades enfrentadas para legitimação de sua arte. 
 

Três fotografias de escultura cilíndrica de vidro na cor âmbar sobre plástico dourado no chão. No centro, a foto do detalhe da parte de cima da escultura, onde há uma abertura e nela um líquido, à esquerda e à direita, o objeto é mostrado por inteiro. O fundo é claro.
A inominável, escultura de Regina Vater. Foto: reprodução/Itaú Cultural.

 

Para a pesquisadora, Regina, Marta e Lotty são fundamentais para compreender a incursão de mulheres na esfera artística latino-americana do século XX. Para ela, a possibilidade de internacionalização foi crucial para seu reconhecimento artístico, pois permitiu contato com correntes estéticas de vanguarda e artistas proeminentes. Contudo, as interações entre latino-americanos, europeus e estadunidenses também perpetuavam as relações de poder já presentes na esfera política e econômica. Assim, partindo de seus registros autobiográficos, Ana chegou à conclusão que todas as artistas estavam cientes dessas relações de hierarquia, ainda que não trabalhassem isso em suas obras artísticas.

 

Revista Extraprensa

A Extraprensa - Cultura e Comunicação na América Latina é um periódico destinado à publicação da produção científica nas áreas da cultura e da comunicação no Brasil e América Latina, abrangendo temas como a diversidade cultural, cidadania, expressões das culturas populares, artes, mídias alternativas, epistemologia e metodologia em cultura e comunicação.

Em sua mais nova edição, o Dossiê Discursos políticos na e sobre a América Latina conta com análises de cartas, diários, entrevistas, discursos e notícias para contar em uma perspectiva decolonial a trajetória de personagens da história recente da América Latina. A revista também traz uma entrevista com o comunicador e artista Anápuàka Muniz Tupinambá Hã Hã Hãe feita pela pós-doutoranda no Departamento de Jornalismo e Editoração (CJE) Deyse Alini de Moura, e uma resenha de Enio Moraes Júnior, doutor pelo Programa de Pós-graduação em Ciências da Comunicação (PPGCOM), do livro Como funciona realmente a migração: um guia factual sobre a questão que mais divide a política (2024), do sociólogo e geógrafo Hein de Haas. 

 

 


Foto de capa: Obra Lampião ou O que falamos se transforma na casa onde habitamos (2003), de Regina Vater. Reprodução/Artishock.