Como jornalistas LGBTQIA+ driblam sanções na profissão

Dissertação de mestrado mapeou impactos da cisheteronormatividade e estratégias para transformar esse cenário

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“Não confiavam em mim no jornalismo porque sou gay”, disse o autor de novelas Aguinaldo Silva ao explicar porque deixou as redações no início dos anos 70. Décadas depois, o jornalista e pesquisador José Ilton Lima Pôrto ouviu de uma coordenadora que precisava “cuidar os seus trejeitos em frente às câmeras”. O episódio foi tão marcante que levou Ilton a investigar – primeiro em seu Trabalho de Conclusão de Curso e depois em uma dissertação de mestrado –, o impacto de normas de gênero e sexualidade em jornalistas LGBTQIA+. A pesquisa desenvolvida no Programa de Pós-graduação em Ciências da Comunicação (PPGCOM) da ECA mostra como a autocensura é recorrente no cotidiano dessas profissionais, mas também revela as estratégias adotadas para se opor às sanções e promover mudanças no ambiente do jornalismo.

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Ilton Porto, jornalista e pesquisador. Foto: reprodução/Instagram.

Defendida em 2023, a dissertação Marcas de resistência das jornalistas LGBTQIA+ à cisheteronormatividade na profissão foi orientada pela professora Cláudia Lago, do Departamento de Comunicações e Artes (CCA). Segundo Ilton, um estudo como esse se justifica, entre outros motivos, por “colaborar para um diagnóstico no campo profissional sobre os constrangimentos decorrentes da identidade sexual e de gênero, podendo servir de alerta para entidades sindicais e empresas do campo jornalístico.”

Em uma pesquisa global publicada pela Accenture em 2020, 55% das jornalistas brasileiras LGBTQIA+ afirmaram que expressar sua identidade de gênero ou orientação sexual no trabalho afeta a evolução de suas carreiras. Por outro lado, 36% se disseram “muito abertas” com relação a sua identidade, expressão ou orientação, enquanto a média global foi de 31%. Esses dados sintetizam o cenário analisado na dissertação de Ilton, que você conhece mais a seguir.

 

“O cis da questão”

As noções de cis e trans são metáforas. Para explicar isso, o pesquisador cita a travesti e doutora em crítica literária pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Amara Moira Rodovalho: “ ‘Cisjordânia, região que margeia o Rio Jordão. Cisplatina, antigo nome do Uruguai, região que ocupa um dos lados do Rio da Prata. Transamazônica, o que cruza a Amazônia; transatlântico, o que atravessa o Atlântico’. Desse modo, uma pessoa é dita cisgênero (do latim cis = do mesmo lado) quando ela não cruza a linha, estando sua identidade em consonância com o gênero que lhe foi atribuído ao nascer”. Já a pessoa transgênero (do latim trans = além de, através de, para o outro lado ou do outro lado) é aquela que cruza a linha, ou seja, manifesta inadequação ao gênero atribuído no nascimento e à bipolaridade de gêneros.

A heteronormatividade, por sua vez, nomeia um padrão de comportamento. Homens sentem atração por mulheres (e vice-versa), atributos como racionalidade e firmeza são considerados masculinos, pêlos no rosto não combinam com delicadeza. Esses são alguns exemplos de concepções – escoradas na biologia, na cultura ou em uma mistura de ambas –, que são transmitidas no seio da família, na escola, nas músicas e até na cor dos produtos que consumimos, só para citar alguns exemplos, que têm papel fundamental na elaboração de uma visão de mundo que, de um lado, apresenta como corretos os comportamentos alinhados com essas ideias, e de outro, classifica como anormais e até patológicas condutas destoantes. 

E por que falar em cisheteronormatividade? “Proponho a ampliação da noção de heteronormatividade com uso do prefixo cis (...) porque a heterossexualidade é representada também por pessoas trans [uma mulher trans que namora um homem cis ou trans, por exemplo]. Assim, o prefixo cis está ligado ao gênero e a heteronormatividade à sexualidade”, responde Ilton. Essa operação conceitual é importante para ampliar o escopo da pesquisa, permitindo a análise dos impactos desses padrões de comportamento não apenas em gays, lésbicas e bissexuais, mas também em pessoas trans e não-binárias.

O pesquisador destaca que, ao ditar o que deve ser considerado normal e correto, a cisheteronormatividade promove a negação de identidades trans, a incompreensão e desqualificação de sexualidades LGBTQIA+, a negação de acesso a espaços segregados por gênero, como banheiros, e diversas outras formas de discriminação com consequências severas para a vida e carreira, como rejeição familiar, evasão ou expulsão escolar, falta de acesso a serviços de saúde e sanções no mercado de trabalho.

 

Cisheteronormatividade no jornalismo

Para Ilton, “a participação do jornalismo na normatização da sociedade fica evidente porque a sociedade encontrou no jornalismo um lugar de referência.” Ele acrescenta que, se notícias e reportagens são caracterizadas pela influência da cisheteronormatividade – como em O Segredo de Lourival, reportagem veiculada no Fantástico em 2019 –, “é porque o espaço laboral também está assolado por essa norma social.”

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Reportagem exibida no Fantástico foi criticada por transfobia ao retratar o homem transgênero Lourival Bezerra de Sá como uma mulher que se passou por homem. Foto: reprodução/G1. 

Nessas condições, jornalistas LGBTQIA+ acabam sendo vítimas de penalidades que não decorrem de mau desempenho ou comportamento, como menores salários, exclusão de festividades da empresa, retaliação de oportunidades, impossibilidade de assumirem um relacionamento com alguém do mesmo gênero,  além de sofrerem sanções no material jornalístico e em suas pautas de cunho LGBTQIA+. O pesquisador afirma que essas profissionais também são alvo de disciplinamento de sua expressão de gênero, em especial no jornalismo televisivo e produções em áudio e vídeo para a internet. A preocupação com a expressão de gênero no jornalismo é justificada com o argumento de que “as expressões do corpo do repórter ou apresentador não podem chamar mais atenção que a notícia”.

No entanto, Ilton aponta outros motivos para esse controle. Quando se fala em jornalismo, as imagens que vêm à cabeça da maioria das pessoas são as do repórter investigativo, uma espécie de detetive que busca a verdade, ou a do correspondente de guerra, visto como testemunha ocular dos fatos. Essas imagens se relacionam com a visão do jornalismo como um “quarto poder”, que protege os cidadãos e vigia os outros poderes, agindo como guardião da democracia. Essa mística do jornalismo se fundamenta em valores como disputa, competitividade, proatividade, autoridade e dominação, associados à uma visão mais tradicional de masculinidade. Trata-se de uma “cultura profissional que compartilha das convenções de gênero que delegam ao feminino um lugar inferior, de menor poder e prestígio”, afirma o pesquisador

 

“Não vejo mulheres trans numa bancada de um telejornal. Homens trans também, assim como gays afeminados nesta situação.” 

Liz (nome fictício), mulher trans, uma das jornalistas entrevistadas na pesquisa

 

Ele ressalta ainda que as sanções sofridas por jornalistas LGBTQIA+ no exercício de sua profissão são agravadas quando há sobreposição de outros marcadores sociais, como raça, classe, deficiências físicas ou neurológicas, neurodivergências, tipo físico etc. Um exemplo disso é o relato de João, um dos profissionais entrevistados para a pesquisa, sobre as intervenções de uma ex-coordenadora, ainda durante a faculdade, que insistia em arrumar seu cabelo black durante uma gravação.

 

Quando a censura vem de si

Nove jornalistas que se declaram LGBTQIA+ foram entrevistadas para a dissertação. São profissionais de todas as regiões brasileiras e do Distrito Federal, com idades entre 22 e 37 anos, que atuam em mídias diversas (telejornalismo, radiojornalismo, impresso e digital) e em veículos de massa e alternativos. Os nomes são fictícios, para preservação do sigilo das fontes.

Nome Identidade dissidente Região do país Raça/etnia Idade Religião Deficiência
Jéssica lésbica Sul branca 29 anos não possui não possui
Ilton gay Nordeste branca 33 anos não possui não possui
João gay Distrito Federal preta 23 anos não posui não possui
Lucas gay Distrito Federal branca 31 anos não possui não possui
Victor  gay Centro-Oeste indígena 27 anos não possui não possui
Fernanda bissexual Norte preta 22 anos não possui não possui
Liz mulher trans

Sudeste

amarela 36 anos não possui não possui
Breno homem trans Sudeste branca 31 anos não possui não possui
Ariel queer Sudeste parda 37 anos umbandista não possui

 

Além das conversas, que abordaram temas como escolha da profissão, rotina de trabalho e superação de fronteiras sexuais e de gênero, Ilton também fez um diário de campo, anotando experiências e posicionamentos das jornalistas nas redes sociais, a fim de observar o uso de suas plataformas para resistir à cisheteronormatividade.

Uma experiência que perpassa boa parte das entrevistas é a autocensura. O próprio autor da pesquisa conta que optou por atuar como produtor em vez de repórter por medo de não ser visto como um jornalista "credível" por não "performar masculinidade". Ele também se policiou na locução e chegou a regravar áudios para soar menos afeminado, algo também vivido por João e Victor. Já Fernanda, mulher bissexual, revela que muda a forma de falar, usa “uma roupa mais menininha” a depender do espaço em que está e diz que já se acostumou a performar mais feminilidade quando está diante das câmeras. “Quando eu sou escalada para gravar vídeo num projeto, falto chorar, porque eu odeio, não gosto.”

“A autocensura é a ancoragem para a sujeita se tornar legítima no ambiente de trabalho, submetendo-se à cisheteronormatividade”, diz Ilton. Quanto mais desviante, quanto mais trejeitos a profissional LGBTQIA+ tem, maior é o medo de sanções e perda de oportunidades. O resultado é que essas pessoas dirigem a si mesmas as “pedagogias corretivas” que uma sociedade cisheteronormativa lhes reserva. 

 

“A sociedade exige uma coerência entre sexo-gênero-desejo e prática sexual [e profissional] e, ao fazer isso, a cisheterossexualidade deixa de ser apenas uma entre tantas formas de viver a nossa identidade/sexualidade para se tornar uma imposição, uma coerção sobre os corpos. Todavia, onde há poder, há sempre a possibilidade de resistir.”

José Ilton Lima Porto, mestre em Ciências da Comunicação

 

Pequenas e grandes lutas

Valendo-se da noção de poder para o filósofo Michel Foucault – para quem o poder não é algo fixo, que pertence a alguém ou a uma instituição, mas algo que se exerce em uma relação de forças –, Ilton defende que nos lugares em que a opressão ocorre, também é possível encontrar fissuras e abrir  brechas para se contrapor, para resistir. Confira a seguir algumas das 15 marcas de resistência que a pesquisa identificou

  • Ser abertamente LGBTQIA+ no trabalho: Lucas, Victor e Liz afirmam ser abertos sobre suas identidades, sendo respeitados em seus ambientes de trabalho. Essa abertura também facilita a criação de redes de apoio entre colegas LGBTQIA+ em seus locais de trabalho;
  • Posicionamento ativo contra preconceitos: correção de comentários machistas, LGBTfóbicos, racistas e capacitistas no ambiente de trabalho. Em uma ocasião, Ariel interveio para garantir que uma colega trans fosse tratada pelo seu nome social e pelo pronome adequado;
  • Tornar-se referência em pautas de diversidade, mas fugir do estigma: João conta que sempre que surgem pautas e materiais sobre gênero e orientação sexual no jornal em que trabalha, a revisão passa por ele. No entanto, ainda falta reconhecimento de seus saberes sobre outros assuntos. “Ninguém vem na minha mesa perguntar sobre economia, por exemplo”;
  • Uso de redes sociais para conscientização: Breno se posiciona ativamente contra a transfobia online, explicando as vivências de homens trans e, em um caso famoso, influenciou o G1 a mudar um título de matéria para trocar o termo “mulheres” por  "pessoas que menstruam";
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Posicionamento de Breno, homem trans, influenciou mudança em manchete do G1. Foto: reprodução/G1.

 

“Depois de algumas horas de repercussão, o título foi trocado e eles me mandaram a matéria atualizada [...] Aí eu pensei: ‘está vendo a importância de se posicionar?’ É algo que passa batido no dia a dia da redação, e casos assim acontecem, mas acontecem porque não tem uma pessoa trans naquela redação.”

Breno (nome fictício), homem trans entrevistado na pesquisa

 

  • Subversão da objetividade: Lucas conseguiu romper com a norma ao vivo, no Dia dos Namorados, ao fazer uma declaração de amor ao seu marido;
  • Produção de narrativas de alteridade: Victor negocia com sua chefia para garantir uma pauta semanal sobre gênero e sexualidade, abordando temas de saúde e cidadania para a população LGBTQIA+, buscando uma prática jornalística mais solidária.
  • Qualificação e formação de comitês de diversidade e inclusão: embora nem sempre se traduzam em ascensão para profissionais de grupos minorizados, a busca por qualificar gestores e a promoção de cursos e palestras sobre diversidade e inclusão são vistas como ações importantes para mudar a cultura organizacional;
  • Optar pelo jornalismo alternativo: Breno relata que seu "nascimento no jornalismo" ocorreu em um coletivo de jornalistas plurais na periferia, composto por muitos LGBTQIA+ e pessoas não brancas. Jéssica, lésbica, encontrou em uma rádio local colaborativa o espaço ideal para retratar mulheres no esporte, livre das questões comerciais que limitam a imprensa tradicional. Essa experiência permitiu-lhe dar voz a mulheres sedentas por serem ouvidas.

 

Na ditadura, mídias alternativas quebraram tabus sobre população LGBTQIA+

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Lampião da Esquina. Imagem: reprodução/Ilton Porto.

Em sua pesquisa, Ilton destaca o papel fundamental do jornalismo alternativo como um espaço de subversão e resistência à cisheteronormatividade para jornalistas LGBTQIA+, com destaque para os jornais Lampião da Esquina e Chanacomchana, que surgiram durante a ditadura e já foram tema de outras pesquisas da USP. Saiba mais sobre essa história na série de vídeos LGBTs no Regime Militar, publicada em 2018 pelo Jornal da USP.

 

 

Por um jornalismo “afeito à alteridade”

Ilton afirma que uma das finalidades do seu estudo foi “repensar a sociologia da profissão e a prática jornalística.” Com os achados relatados na pesquisa, em especial as estratégias de resistência cotidiana empreendidas pelas profissionais LGBTQIA+, ele enfatiza a importância das políticas de diversidade e inclusão nas organizações, destacando, junto com seus entrevistados, que apenas contratar pessoas de grupos minorizados não é sinônimo de inclusão. A diversidade ainda está concentrada nos cargos de baixo escalão, com a cúpula majoritariamente composta por homens cisheterossexuais brancos. 

Para Ariel, “a empresa precisa se engajar na criação de programas para que esse jornalista tenha mais oportunidades e se desenvolva. Sempre na busca pela equidade no trabalho. Promover cursos e capacitação.” Breno destaca que frequentemente as empresas têm uma expectativa elitista de que os profissionais já venham "prontos", ignorando as realidades de acesso à educação e qualificação de grupos minorizados

“Uma política de diversidade e inclusão pode ajudar jornalistas LGBTQIA+ a romperem com a cisheteronorma na profissão, bem como garantir que tenham igualdade de oportunidades e se sintam valorizadas”, diz Ilton. Para isso, é preciso que haja um diálogo maior entre a universidade, o mercado, sindicatos e outras entidades de classe para repensar a formação do jornalista, incluindo debates sobre diversidade, alteridade e padrões estéticos e de comportamento impostos para o exercício da profissão. 

Ao finalizar a pesquisa, Ilton reflete sobre como, por meio da investigação acadêmica, busca defender uma prática jornalística mais humana, mais diversa e ligada à alteridade como um caminho fecundo de transformação cultural e social, mas também individual. “Eu fiz e me refiz, no processo de escrita e no me deixar afetar pelo Outro. E sabe o que é mais bonito nisso tudo? É que a gente não anda só. A gente quer mesmo é escancarar a porta do armário da redação”, conclui.

 

 


Imagem de capa: Marcel Strauss/Unsplash.