As formações discursivas dos programas Que Marravilha! e Tempero de Família

Em artigo publicado na Revista Significação, pesquisadora investiga a representação da cozinha na televisão
 

Vida acadêmica

Para entender melhor a representação da cozinha e da comida na cultura audiovisual, Nara Lya Cabral Scabin, doutora em Ciências da Comunicação pela ECA, desenvolveu o artigo A cozinha na TV: distinção e simulacro em programas culinários do GNT, que foi publicado na última edição da revista Significação. A pesquisadora escolheu dois programas de grande audiência do canal GNT, Que Marravilha! e Tempero de Família, para explorar a aparente diversidade de abordagens e concluiu que ambos partem de um mesmo discurso: o denominado “discurso televisivo da cozinha como gastronomia”.

Enquanto Que Marravilha! é um programa protagonizado pelo chef de cozinha francês Claude Troisgros e promete trazer referências da gastronomia profissional, Tempero de Família é apresentado pelo ator e modelo Rodrigo Hilbert e tende a mostrar uma culinária afetiva, familiar e simples. Segundo a pesquisa, a contraposição entre culinária e gastronomia é uma estratégia para construir uma diferenciação entre as duas coisas, chamada de distinção.

Foto de uma pessoa colocando comida em um prato. A imagem é vista de cima, é possível ver apenas uma mão branca segurando uma colher, que contém um tipo de purê. No prato, já estão alguns alimentos. O prato é redondo, fundo e branco. Ao redor dele, é possível ver a borda de outros pratos.
Claude compõe o prato de uma convidada no primeiro episódio de Que Marravilha! – Chato pra comer (2019). Imagem: Captura de tela realizada pela autora/Globoplay

A distinção é uma operação semântica fundamental que tem papel importante na produção do gosto, no sentido de juízo estético, e de formação de hierarquias entre grupos. Analisando como é construída a visibilidade da comida e da cozinha na cultura audiovisual contemporânea, o artigo explica que está crescendo uma espécie de “afetação estética” e uma “transformação da noção de gosto bom em bom gosto”. Em meio a esse processo, alguns traços de distinção são fundamentais para agregar valor à comida, seja a qualidade dos alimentos, seja a apresentação visual das receitas ou seja a performance do cozinheiro.

Para observar como são apresentados esses aspectos nos programas, Nara examinou as linguagens verbal e audiovisual de três temporadas de Que Marravilha! e cinco de Tempero de Família, todas exibidas entre 2018 e 2021. A pesquisa utilizou como principal aporte teórico a Análise do Discurso, com destaque para o pensamento do linguista Dominique Maingueneau. 

 

Cozinha profissional vs. não profissional

Em Que Marravilha!, a autora pôde identificar diversos pontos que colaboram com a ideia da cozinha profissional. Em um ambiente moderno e bem equipado, o chef, vestindo seu dólmã — peça clássica do uniforme de profissionais da cozinha —, expõe seus conhecimentos para o público, que é desprovido de tais saberes e, ao mesmo tempo, está interessado na experiência estética de ver os pratos apetitosos e a performance de alto nível. Em cada temporada, a dinâmica se altera, mas a tendência é que Claude sempre seja aquele a proporcionar o acesso à “verdadeira cozinha” e que suas criações se sobreponham às receitas ditas amadoras. A montagem dos episódios, que intercala imagens do chef cozinhando com depoimentos, se assemelha a de um reality show, e, para dar ritmo ao programa, há sempre um tom de competitividade, ainda que repleto de bom humor.

Foto de dois homens conversando na cozinha. À esquerda, está Batista, que é negro, tem cabelos curtos escuros e olha para Claude, à direita da imagem. Claude, que é branco, tem cabelos curtos escuros e usa óculos, está gesticulando e olhando para o colega. Ambos utilizam o uniforme de chefs de cozinha. Na bancada, que está ao redor deles, e ao fundo, é possível ver diversos equipamentos e utensílios da cozinha profissional.
Claude e Batista, seu assistente, interagem no primeiro episódio de Que Marravilha! – Delivery (2020). Fonte: Captura de tela realizada pela autora/Globoplay

Já em Tempero de Família, a dinâmica é inversa. Em uma cozinha intimista e nostálgica, que supostamente representa toda e qualquer casa, Rodrigo, que costuma vestir camisetas e calças jeans, apresenta receitas e dicas que aprendeu com a família. É  reiterado a todo momento que o protagonista não é um profissional. Há sempre uma tentativa de aproximação, nivelamento e indiferenciação com o público e de generalização da comida e da cozinha. Os episódios são montados de forma tradicional, seguindo o padrão de programas culinários televisivos, ainda que com um toque de emotividade. Além disso, o jogo de câmeras é bastante despojado, dando um ar de trivialidade à imagem dos pratos.

A pesquisadora explica que o programa apresentado por Rodrigo é uma oposição ao apresentado por Claude, o que fica claro com o embate entre as características de cada um:  hierarquia e nivelamento, singularização e generalização, afastamento e aproximação. 

A autora entende que Tempero de Família diz pouco sobre as práticas da culinária cotidiana e popular, mas diz muito sobre o próprio discurso televisivo da cozinha como gastronomia. No artigo, fica evidente que o valor da cozinha não profissional é reduzido a uma qualidade afetiva, indistinta de outras dimensões da vida cotidiana, e que, na televisão, a cozinha dita amadora só pode ser representada como menos difícil, já que está “sob a ótica de uma formação discursiva que valoriza aspectos como requinte e profissionalização enquanto traços distintivos da alta gastronomia”.

Foto de um homem segurando um prato e um garfo. Ele é branco, tem cabelos curtos loiros e veste uma camiseta bege. Ele olha para o prato em sua mão, que é azul. Na bancada à frente dele, estão duas panelas no fogão e algumas travessas de vidro com comida. Ao fundo, há um armário de madeira com utensílios e mantimentos, diversos vasos de planta e três janelas grandes.
Rodrigo Hilbert finalizando um dos pratos, em cena do primeiro episódio de Tempero de Família – Não joga fora (2021). Imagem: Captura de tela realizada pela autora/Globoplay

O artigo conclui que ambos os programas são enunciados a partir de uma mesma posição discursiva — o chamado discurso televisivo da cozinha como gastronomia — e que cada um deles opera com um objetivo diferente. Enquanto Que Marravilha! opera de maneira positiva, reforçando o status da alta e inalcançável gastronomia na televisão, Tempero de Família opera no registro negativo. Ou seja, o programa apresentado por Rodrigo busca mostrar o que não é a gastronomia, reforçando para o público quão simples e banal é a culinária caseira, ao contrário da cozinha profissional.

Para Nara, a análise desenvolvida no artigo pode contribuir para a reflexão sobre as representações da cozinha na cultura audiovisual e abrir caminhos para a problematização da pretensa diversidade da programação culinária das emissoras.

 

Revista Significação

Em 2023, a Significação: Revista de Cultura Audiovisual está completando 50 anos. No editorial da última edição, o aniversário foi motivação para refletir sobre o presente, o passado e o futuro do periódico, que já publicou quase 500 artigos sobre a cultura audiovisual e estudos da semiótica. Para comemorar a efeméride, a revista está com chamadas abertas para a construção do Dossiê Comemorativo dos 50 anos da Significação.

Também em comemoração, neste ano, foi adotado o sistema de publicação contínua, uma modalidade em que os artigos são publicados assim que aprovados e revisados. “Essa modalidade é incentivada por bases indexadoras e seu objetivo principal é acelerar o processo de comunicação das pesquisas e, assim, contribuir para sua disponibilidade para leitura e citação”, explica o editorial. Além disso, duas novas seções estão sendo criadas, uma dedicada a resenhas e críticas de livros e objetos audiovisuais (incluindo filmes de ficção, documentários, séries, programas, games, etc.) e outra dedicada a entrevistas com pessoas atuantes no universo audiovisual.

O volume 50 do periódico reúne, entre outros textos, artigos que propõem reflexões sobre o cinema francês, chileno e latino-americano, um dossiê intitulado História do Cinema, mercado e Estado, com as ideias de Jean-Claude Bernardet, professor emérito da ECA, e uma entrevista de 1967 com o célebre cineasta Glauber Rocha. Confira essa edição da revista Significação na íntegra.
 

 


Imagem de capa: Montagem com fotos de Samuel Kobayashi/Divulgação e Ney Coelho/Divulgação