Manifestações pelo mundo: relações entre o modernismo português e brasileiro

Tese de doutorado analisa os movimentos modernistas no Brasil e em Portugal através das revistas Klaxon e Orpheu  

Vida acadêmica

A comemoração do centenário da Semana de Arte Moderna, ocorrida em 1922, é um momento para estimular discussões e rememorar o movimento modernista,  as ideias e ações inovadoras propostas pelos artistas da época e sua influência na evolução cultural brasileira. 

Pintura do artista português Almada Negreiros retrata Fernando Pessoa, vestido de terno e usando chapéu e óculos, sentado na mesa de um café. Na mesa há papel, caneta, uma xícara de café e uma edição da revista Orpheu. A pintura tem um fundo em tons de vermelho e laranja, o escritor se destaca em cores branco e preto.
Retrato do poeta Fernando Pessoa (1954) lendo a revista Orpheu na mesa de um café. Pintura do artista Almada Negreiros, que também integrou a equipe da revista portuguesa. Fonte: Wikipédia

Foi pensando nesse legado que o pesquisador Edson Luiz de Oliveira desenvolveu sua tese para o Programa de Pós-graduação em Artes Visuais (PPGAV), sob orientação da docente Elza Maria Ajzenberg. A pesquisa Orpheu e Klaxon: Contexto Modernista Portugal-Brasil compara as realizações do movimento modernista brasileiro e português e revela as conexões entre intelectuais e artistas do período. 

Se no Brasil o nascimento do modernismo ficou marcado pela Exposição de Pintura Moderna de Anita Malfatti, realizada em 1917 - que teria seus ideais fortificados em 1922 com a Semana de Arte Moderna -, em Portugal o modernismo deu seus primeiros passos com a publicação da revista Orpheu, em 1915.

Para Edson, um ponto importante é entender o movimento como um acontecimento coletivo, afinal ele dependeu diretamente de uma rede de relacionamentos. Por isso, os encontros e correspondências trocadas entre artistas brasileiros e europeus foram significativos para a efervescência dos novos ideais e para a produção artística e literária. 

“Numa visão de conjunto observa-se que das iniciativas dos modernistas não resultaram apenas pinturas e textos, mas diversas atividades culturais e acontecimentos sociais. A própria Semana de Arte Moderna poderia ser vista como um evento híbrido, que envolveu várias linguagens e propostas; resultando num fato cultural muito maior do que o conjunto das obras que o compõe”, diz o autor.

 

Orpheu, um olhar para o futuro
Capa da revista portuguesa Orpheu. Uma ilustração na parte superior em traços simples, com uma mulher cercada por duas velas gigantes e um céu azul ao fundo. O nome da revista escrito em letras cursivas na parte inferior.
Capa da revista Orpheu (1915), marco do modernismo em Portugal. Fonte: Agenda Cultural Lisboa

 

Com o nome inspirado no mito grego do herói que não deveria olhar para trás, ou seja, para o passado, a revista Orpheu teve sua criação impulsionada pelos encontros entre jovens artistas e escritores nos cafés de Lisboa, que já na época discutiam com entusiasmo as mudanças estéticas que cresciam na Europa.

Enquanto isso, no Brasil, o poeta português Luís de Montalvôr planejava, junto com o brasileiro Ronald de Carvalho, a publicação de uma revista binacional. E foi ao voltar para Portugal que o projeto se concretizou, com o apoio de Fernando Pessoa e Mário de Sá-Carneiro.

Com vida breve, a revista Orpheu teve apenas dois números publicados, mas atingiu todo espaço de língua portuguesa. Com o intuito de ser uma publicação luso-brasileira, apresentou uma antologia de poetas e artistas inovadores que abraçavam novas tendências artísticas e que abalaram o território português, ficando conhecidos como “os rapazes do Orpheu”. 

“Embora os poetas e artistas do Orpheu não tivessem uma intenção programática, desencadearam discussões estéticas e filosóficas sobre a modernidade de longo alcance, um acontecimento que seus contemporâneos em Portugal não haviam conseguido fazer até então”, pontua Edson.

A recepção da crítica foi similar ao que ocorreu no Brasil diante da Semana de Arte Moderna. Orpheu foi massacrada. No entanto, para Edson, sua importância vai além do tumulto que causou, mas sobretudo as influências que deixou em revistas posteriores, entre elas Exílio (1915), Centauro (1916), Portugal Futurista (1917) e Contemporânea (1922). 

Para o pesquisador, um dos pontos interessantes a se observar é como os movimentos tiveram marcos diferentes nos dois países. Em São Paulo “foram as artes plásticas, e não a literatura, como ocorreu em Lisboa, que começaram a dar maior visibilidade ao movimento modernista.”

 

Klaxon, uma voz moderna 
Capa da revista Klaxon nas cores vermelho, preto e branco. O "A" de Klaxon ocupa a parte central da capa em cor vermelha  e ocupa o espaço de "A" nos subtítulos "Mensário de Arte Moderna, São Paulo". Na parte inferior um número 1 deitado em cor vermelha indica o número da edição. Bordas pretas cercam a capa.
Capa da revista Klaxon, publicada em 1922 logo após a Semana de Arte Moderna. Fonte: Enciclopédia Itaú Cultural.
 

 

Lançada logo após a Semana de Arte Moderna, a revista Klaxon alcançou nove números publicados, o último em 1923. Manuel Bandeira, Oswald de Andrade, Sérgio Buarque de Hollanda, Anita Malfatti, Tarsila do Amaral e Di Cavalcanti eram alguns dos nomes envolvidos na produção.

A essência do movimento está indicada no próprio nome “klaxon”, que significa “buzina” em francês. A revista queria fazer barulho e chamar a atenção do público para as novas ideias que estavam em discussão.

Multilíngue, ela publicava artigos e poemas em português, francês, espanhol e italiano e trazia tendências de arte, música, estética e cinema. Segundo Edson, seu objetivo inicial era explicar e sustentar o movimento iniciado na Semana de Arte Moderna, dando palavra aos artistas e intelectuais modernistas. 

Contudo, na prática a Klaxon serviu não apenas como meio de difundir esses ideais, mas também de expor as diferenças ideológicas e contradições existentes entre os participantes do movimento. Mário de Andrade, por exemplo, é apontado como responsável pelo texto de abertura da primeira edição com um discurso mais reservado do que o esperado após os eventos no Teatro Municipal de São Paulo. 

“Esse texto, que poderia ser o manifesto que a Semana de 1922 não proclamou, funcionou mais como um programa disciplinador, uma vez que aceitava a modernidade, mas dentro de certos limites bem demarcados, buscando muito mais restringir os excessos da Semana do que provocar rupturas radicais”, explica Edson. 

Ainda assim, durante o tempo em que foi publicada, a Klaxon permitiu o ecoar de diferentes vozes modernistas, brasileiras e internacionais. Essa mistura de textos, pinturas e pensamentos foi crucial para os próximos passos dados pelo movimento artístico.  

 

"O próprio Mário reafirma no penúltimo parágrafo do texto os limites estabelecidos para o coletivismo reinante na revista: 'Klaxon tem uma alma colletiva (sic) que se caracteriza pelo ímpeto construtivo. Mas cada engenheiro se utilizará dos materiais que lhe convierem. Isto significa que os escritores de klaxon responderão apenas pelas ideias que assinarem' ”

Edson de Oliveira, pesquisador do Programa de Pós-graduação em Artes Visuais

 

Segundo Edson, era natural que essas revistas não durassem muito tempo, devido ao seu caráter emergencial. Isso, no entanto, não diminuía sua influência e Klaxon, após finalizada, inspirou periódicos como Estética (1924), A Revista (1925) e Terra Roxa e Outras Terras (1926).

Para o pesquisador, as duas revistas se relacionam não apenas pela estética e ideias expostas, mas também por se constituírem “como parte integrante de uma rede de interlocuções entre diversas manifestações de vanguarda que tiveram lugar pelo mundo todo.”

A tese pode ser acessada na íntegra no Repositório da Produção USP. 

 

Imagem de capa: Tropical, Anita Malfatti (1917)