O que a gestão de herbários tem a ver com a Ciência da Informação?

Características dessas coleções e políticas para seu desenvolvimento foram analisadas em dissertação de mestrado da ECA

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Foto de uma mulher branca. Ela tem cabelos loiros e olhos azuis e sorri. Ela veste uma blusa azul escura com bolinhas coloridas. O fundo tem plantas.
Hadassa de Zen Itepan -
Foto: Reprodução/LinkedIn.

Hadassa de Zen Itepan, formada em Biblioteconomia pela ECA e mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência da Informação (PPGCI), se dedica ao estudo de coleções biológicas desde a graduação. O interesse pela biologia vem da família: “Meu pai é da agronomia, minha mãe é ecóloga e meu irmão é biólogo”, conta. A atração por essa área do conhecimento se refletiu na escolha do tema de sua dissertação de mestrado: Herbários: tipologia e gestão de suas coleções biológicas, orientada pela professora Nair Yumiko Kobashi, do Departamento de Informação e Cultura (CBD). 

Na pesquisa, que segue agora no doutorado, Hadassa buscou “sistematizar a tipologia das coleções abrigadas em herbários e analisar a gestão, organização e representação do conhecimento botânico” presente nessas coleções. O trabalho também explorou a importância dos herbários para a ciência e a participação cidadã na produção de informações científicas.

As coleções biológicas podem se dedicar à catalogação de animais, microrganismos, agentes patógenos, fósseis ou, no caso de herbários, a espécies de fungos e plantas. A pesquisa define que os “herbários são centros de estudo botânico e de documentação da flora que abrigam coleções de plantas secas”.

 

“Tem uma questão histórica, porque eles guardam material de botânicos que já passaram por aqui e de espécies que estão ou ameaçadas de extinção ou já foram extintas. Do ponto de vista da pesquisa de ancestralidade também é uma coisa bem interessante, [com coleções] de materiais de povos indígenas, por exemplo.”

Hadassa de Zen Itepan, sobre a relevância da preservação de herbários

 

Hadassa conta que, apesar da museologia estudar essa área, na biblioteconomia não é comum o aprofundamento em coleções botânicas. Ela lembra que precisou entender bem o conceito de documento de sua área para defender que os herbários poderiam sim ser estudados pela Ciência da Informação. Na definição da bibliotecária francesa Suzanne Briet, citada na pesquisa, “um documento é uma evidência que apoia um fato”. Com isso, ela concluiu que os materiais contidos em herbários podem ser considerados documentos — porque “os espécimes biológicos carregam consigo informações, evidências que representam uma espécie” e, portanto, podem ser estudados em sua área de atuação.

Assim, “como as bibliotecas, os herbários podem ser considerados unidades de informação”. Mas a pesquisadora também ressalta que, “apesar das possíveis aproximações” de um herbário a outras formas de organização do conhecimento, “é necessário compreender as diferenças e necessidades específicas” dessas coleções. A partir do entendimento dessas características podem ser desenvolvidas políticas adequadas para a gestão e preservação de seus materiais.

 

Herbários e biblioteconomia

Nos herbários, as principais amostras das espécies são preservadas secas, mas essas coleções podem conter também materiais complementares, como sementes e frutos. Segundo a dissertação, “os herbários podem ser entidades autônomas ou estar associados ou pertencer a Jardins Botânicos” — instituições que também mantêm coleções botânicas, mas com as espécies vivas.

 

Foto aérea do Jardim Botânico de São Paulo. O local conta com muitas árvores e, no centro da imagem, há um pátio com um espelho d’água, uma estufa e gramados, bem como um prédio branco de ao menos três andares com um telhado laranja. Ao fundo, uma lagoa rodeada por árvores.
O Jardim Botânico de São Paulo fica localizado no bairro da Água Funda e conta com 360 mil metros quadrados de área - Foto: Reprodução/Wikimedia Commons​​.

 

As exsicatas são as principais formas de documentação e compõem as principais coleções dos herbários: elas consistem em uma amostra do vegetal ou do fungo seco colada em cartolina, junto de informações sobre a espécie do material. 

Foto de parte de um galho desidratado, com folhas e flores secas sobre fundo branco. Na parte inferior da imagem, há uma etiqueta com informações sobre a planta e, na lateral direita, um pedaço de papel preto com uma escala e uma amostra de cores.
Exsicata de Triplaris americana, o Pau-formiga -
Foto: Reprodução/Wikimedia Commons.
 

Além das exsicatas, os herbários são compostos pelas chamadas coleções acessórias, auxiliares ou correlatas, que trazem outras formas de documentar espécies botânicas. São exemplos as carpotecas, que preservam frutos desidratados; espermatecas, que reúnem sementes de diferentes espécies; e as xilotecas, que agrupam amostras de madeira.

Quanto à gestão dessas coleções, há diversas características específicas desses materiais que exigem cuidados diferenciados. Como desafios para a preservação dessas coleções, Hadassa destaca a falta de verbas, espaço físico e equipes adequadas para lidar com os itens armazenados, que são mais frágeis e têm maior propensão à deterioração

Ela também aponta que, nesse segmento, “é essencial que haja um profissional familiarizado e atualizado com os conceitos e normas das classificações e nomenclaturas biológicas”, o que, usualmente, não é o caso do profissional da informação. Ela relata que, ao longo de suas pesquisas, teve dificuldades nesse sentido, mas contou com a ajuda da equipe do Herbário da USP (SPF), gerido pelo Instituto de Biociências (IB-USP), para entender melhor essas especificidades

A pesquisadora ainda defende que, apesar da relação pouco óbvia com a botânica, os biblioteconomistas podem “auxiliar na busca de materiais de informação, realizando levantamentos bibliográficos ou selecionando, avaliando e apresentando fontes de informação que sejam confiáveis e atualizadas”. Além disso, Hadassa aponta que, em coleções acessórias, pode haver documentos mais assemelhados ao trabalho típico desses profissionais, como registros de viagem, livros resultantes de pesquisa ou documentos históricos relativos à produção científica principal.

 

“Eu acho que o mais difícil foi juntar as duas coisas [biblioteconomia e botânica] e fazer essa costura interdisciplinar.”

Hadassa de Zen Itepan, pesquisadora

 

Hadassa também lembra que o interesse por essas coleções tão pouco ligadas à sua área se intensificou na graduação quando encontrou na biblioteca o livro Cabinets of curiosities. A obra aborda a história dos gabinetes de curiosidades, coleções que antecederam os museus modernos. 

 

Gabinetes de curiosidades

Os gabinetes de curiosidades foram coleções privadas criadas no século 16, em meio ao Renascimento, que abrigavam uma coletânea de diversos elementos de diferentes áreas. As coleções eram subdivididas entre os itens Naturalia, com plantas, animais e fósseis, por exemplo; Exotica, para espécimes de plantas e animais exóticos; Scientifica, que reunia instrumentos científicos; e Artificialia, com obras feitas pela mão humana, como obras de arte e antiguidades.

Xilografia medieval de um gabinete de curiosidades. O espaço é uma sala com estantes de livros à esquerda e, à direita, armários com animais e objetos. No teto, o corpo de um crocodilo está preso ao centro e animais marinhos estão ao seu redor. Quatro homens observam a coleção do local.
Foto: Reprodução/Wikimedia Commons.

 

Para aprofundar seus estudos para o Trabalho de Conclusão de Curso, que também abordou coleções biológicas, ela cursou a disciplina O Herbário e suas Coleções e seu Funcionamento, no IB-USP. Um dos professores dessa disciplina foi Gregório Cardoso Tápias Ceccantini, também curador do Herbário SPF, a quem Hadassa faz um “agradecimento especial”, por sua importância e apoio nas pesquisas do TCC e do mestrado

 

Digitalização e rede de herbários

No contexto mundial, os herbários representam uma maneira de documentar a biodiversidade do planeta, mas não de forma isolada. Cada herbário coleta e cataloga uma pequena parte do todo e, em conjunto às demais coleções do mundo, forma-se um vasto acervo documental. O que permite a formação dessa rede mundial é a digitalização dos acervos que, para Hadassa, também é um desafio, pela falta de infraestrutura e de equipes adequadas. No Brasil, a Rede Brasileira de Herbários (RBH), ligada à Sociedade Botânica do Brasil, tem o propósito de articular a atuação dessas coleções e é também a mantenedora de um catálogo com as informações de herbários de todo o Brasil. 

Para entender o papel  de herbários como unidades de conhecimento e informação mundial, a pesquisa analisou a Política Estratégica para Coleções do detentor da maior coleção botânica do mundo — o Jardim Botânico Real de Londres (Kew). Hadassa explica que a escolha dessa política, que definiu critérios e procedimentos para gerenciar as coleções da instituição entre 2018 e 2028, se deu pelo tamanho de Kew: além de seus atuais milhões de itens, a instituição recebe cerca de 38.000 novas amostras anualmente. Fora isso, Kew exerce uma forma de liderança em meio a outros herbários com atividades como a elaboração de workshops e o estímulo à digitalização das próprias coleções e, também, daquelas pertencentes a outras instituições.

A política engloba diferentes aspectos, da seleção de novos espécimes à digitalização do acervo e programas de cooperação com outros herbários, por exemplo. Essa política se estabeleceu tentando responder a quatro perguntas: 

  1. Quais as coleções atuais?
  2. Quais coleções atuais e futuras são críticas às prioridades de pesquisa?
  3. Como gerir e desenvolver coleções?
  4. Como aumentar o acesso às nossas coleções?

 

A partir dessas perguntas, a gestão de Kew é direcionada e sub segmentada em outras perguntas e tópicos que norteiam as decisões. O trabalho de Hadassa conclui, sobre essa política, que “é perceptível a ênfase no caráter colaborativo da documentação sobre a diversidade botânica” e percebe também “o desejo [de Kew] de tomar a liderança no futuro do processo de documentação e pesquisa botânica”.

 

Foto da parte interna de uma estufa com teto de vidro. O ambiente é claro e, no centro, há uma lagoa artificial com inúmeras vitórias-régias. Ao seu redor, mais plantas e diversos visitantes observando as plantas do local.
O Jardim Botânico Real de Londres foi fundado em 1759, como um palácio para a realeza britânica - Foto: Reprodução/Wikimedia Commons.

 

 

Ciência Cidadã

Um dos pontos abordados na política de Kew, como resposta à quarta pergunta, refere-se à importância da Ciência Cidadã para maximizar as coleções. A Ciência Cidadã é um movimento que permite a participação da comunidade não acadêmica na produção científica

Uma definição utilizada por Hadassa enquadra esse movimento dentro das iniciativas de Ciência Aberta, que permitem o acesso livre a informações científicas. São exemplos de Ciência Aberta a Biblioteca Digital de Teses e Dissertações da USP, que disponibiliza a íntegra de trabalhos de pesquisa, e o Repositório de Dados Científicos da USP, que reúne dados e códigos elaborados na instituição.

Com a criação de mecanismos para a participação de não cientistas em iniciativas de Ciência Cidadã, essas pessoas podem, por exemplo, contribuir voluntariamente para a coleta e registro de dados para pesquisas que exigem muitas informações. Com isso, Hadassa verificou que “os estudos feitos através da Ciência Cidadã permitiram coletar e lidar com um volume de dados substancialmente maior do que o que um pesquisador ou grupo de pesquisadores poderiam coletar isoladamente”

O software Jabot - Sistema de Gerenciamento de Coleções Botânicas, criado pelo Jardim Botânico do Rio de Janeiro em 2005, é o foco de um projeto de Ciência Cidadã. O banco de dados do Jabot agrupa elementos como imagens dos exemplares, a identificação com o nome científico das espécies e os lugares onde elas podem ser encontradas. A proposta de Ciência Cidadã envolve estudantes de botânica e geografia que podem atualizar ou corrigir informações que sejam de sua área de estudo, além da participação do público geral para tarefas mais básicas — como completar a digitação da espécie do material a partir de dados mínimos. Assim, estudantes de botânica podem, por exemplo, retificar nomes científicos errados no sistema. Com isso, além de aprimorar as informações do Jabot, o projeto tem “valor pedagógico, pois contribui para a formação de estudantes de áreas diversas e os apresenta o valor e variedade das coleções botânicas”.

 

“[A Ciência Cidadã] é interessante tanto para ter mais dados quanto para desenvolver o ponto de vista do método científico das pessoas e o interesse pela natureza”.

Hadassa de Zen Itepan, pesquisadora.

 

 


Imagem de capa: Denis Pacheco/USP Imagens.