CJE | Departamento de Jornalismo e Editoração



Vazamentos e jornalismo investigativo: brasileira revela como foi participar do Wikileaks

Fundadora da Agência Pública, Natalia Viana participa de discussão sobre seu novo livro em aula inaugural no Departamento de Jornalismo e Editoração

Estudos

No final de março, o Departamento de Jornalismo e Editoração (CJE) promoveu uma aula inaugural para o curso de Jornalismo com o título Jornalismo investigativo internacional no século XXI. A palestrante convidada foi Natalia Viana, uma das jornalistas fundadoras da Agência Pública, que falou sobre seu novo livro: O Vazamento: memórias do ano em que o WikiLeaks chacoalhou o mundo, lançado em 2024. Além de sua trajetória pessoal e profissional, Natalia focou sua fala no tempo em que trabalhou ao lado de Julian Assange no WikiLeaks, no episódio que, posteriormente, ficaria conhecido como um dos maiores escândalos de vazamento do mundo.

O evento foi mediado pelo professor Vitor Blotta, do CJE, e contou com a participação dos docentes Dennis de Oliveira, também do CJE, e Eugênio Bucci, do Departamento de Informação e Cultura (CBD). Ao final da palestra, estudantes puderam fazer questionamentos à convidada e receber autógrafos.

 

Foto de três pessoas sentadas em cadeiras azuis em frente a uma mesa branca. Da esquerda para a direita: um homem negro, com dreads grisalhos, boina cinza, camisa azul e óculos; uma mulher branca dando risada, de cabelos castanhos longos e cacheados,, usa óculos e blusa verde com marcas vermelhas, tem as mãos unidas em frente ao queixo e uma tatuagem no braço; um homem branco e calvo com cabelos lisos, curtos e grisalhos, ele usa uma camisa rosa e um paletó bege. Sobre a mesa, um microfone, um livro azul e um copo d'água.
O Vazamento: Memórias do Ano em que o WikiLeaks Chacoalhou o Mundo foi lançado pela Editora Fósforo em 2024. Da esquerda para a direita: Dennis de Oliveira, Natalia Viana e Eugênio Bucci. Foto: Maria Eduarda Lameza/LAC-ECA.

 

 

Como tudo começou

Natalia se formou em Jornalismo na Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo em 2001 e, no ano seguinte, aos 21 anos, começou sua trajetória profissional como repórter na revista Caros Amigos, onde realizou sua primeira grande reportagem: foi para a Bolívia em 2004 e conseguiu um perfil exclusivo do ex-presidente Evo Morales.

Foto de mulher branca em semi-perfil falando ao microfone. Ela tem cabelos castanhos cacheados e compridos com a lateral mais curta, usa óculos, brinco verde e uma blusa verde escura com bolinhas vermelhas.
Hoje, Natalia é editora e diretora executiva da Agência Pública e continua escrevendo e publicando suas reportagens. Foto: Maria Eduarda Lameza/LAC-ECA.

Mas a jornalista conta aos estudantes que sua carreira nem sempre foi assim. Ela explica que, logo que se formou, não foi aprovada nos programas de treinamento das grandes redações da cidade e, para se manter, começou a trabalhar como repórter freelancer. Para isso, ela ia atrás das histórias que queria contar e enviava as reportagens para editores de jornais e revistas até mesmo fora do Brasil.

 

“Eu tinha uma inquietação. Sempre tive muita vontade de cobrir violações de direitos humanos. Pra mim, o jornalismo é isso: buscar as histórias que precisam ser contadas e contá-las da melhor maneira possível”. 

Natalia Viana, jornalista co-fundadora da Agência Pública

 

Entre 2006 e 2008, Natalia conta que viveu um momento chave para tudo que viria depois em sua trajetória: ganhou uma bolsa de estudos para cursar seu mestrado na Inglaterra. Lá, conheceu o modelo de jornalismo investigativo britânico realizado por organizações sem fins lucrativos. Quando voltou ao Brasil, passou a utilizar as técnicas aprendidas fora em seus trabalhos como freelancer, colaborando com veículos como BBC, The Guardian, The Independent, Sunday Times, Carta Capital e Opera Mundi. Nessa época, também escreveu seu primeiro livro-reportagem: Plantados no chão: Assassinatos políticos no Brasil hoje

 

O chamado secreto 

Em 2010, Natalia estava na Amazônia, fazendo uma reportagem sobre crimes ambientais, quando recebeu uma ligação de Sarah Harrison, uma editora que havia conhecido na Inglaterra, a convidando para voltar para o país para um projeto confidencial. Natalia conta que Harrison disse algo como “não posso te dizer o que é, mas você vai ter contato com a maior quantidade de documentos que qualquer um já teve, nenhum jornalista recusaria”. Após realizar uma pesquisa sobre Sarah Harrison, a jornalista imaginou que o chamado secreto fosse algo relacionado ao site Wikileaks, que estava chamando atenção na mídia após vazar vídeos de militares norte-americanos em helicópteros assassinando civis no Iraque, incluindo dois repórteres da Agência Reuters, caso que ficou conhecido como Collateral Murder

 

“Eu não tinha a menor ideia do que era, mas larguei tudo que tinha planejado pra minha vida no Brasil e embarquei sem nenhum tostão.”

Natalia Viana, jornalista co-fundadora da Agência Pública

 

O Wikileaks é uma organização criada pelo desenvolvedor de sistemas australiano Julian Assange, que publica documentos confidenciais. Uma plataforma criada por Assange permite a qualquer pessoa com informações confidenciais de governos que realize os vazamentos sem ser identificada. Esses documentos, em maior parte sobre a influência e até sobre crimes da diplomacia estadunidense, passam por uma checagem antes de serem publicados no site. Segundo Natalia, o projeto do Wikileaks era a “união da visão digital de Julian Assange com um objetivo de jornalismo de impacto para o mundo”.

Quando chegou na Inglaterra, Natalia descobriu que, até aquele momento, o WikiLeaks havia conseguido mais de 250 mil documentos diplomáticos confidenciais dos EUA sobre suas ações ao redor do mundo. Ela contou aos estudantes que ficou alguns meses isolada em um casarão no interior do norte do país com Harrison, Assange e outros jornalistas. Sua tarefa era traduzir, checar e publicar as informações referentes ao Brasil. “Ficamos pensando e nos preparando para publicar esse vazamento que a gente sabia que seria o maior da história do jornalismo”, explica Natalia. Ela ressalta que esse não é o maior vazamento em quantidade de terabytes, mas é o único que alcançou o mundo inteiro, sendo mais de 150 países envolvidos. 

 

Foto de uma mulher e um homem brancos sentados em um sofá claro com estampa floral. Ela tem cabelos castanhos e cacheados que estão presos, usa uma blusa preta de mangas compridas e está olhando para baixo. O homem possui barba e cabelos brancos, lisos e curtos. Usa uma camisa branca e um paletó preto e olha para a tela de um laptop que está em seu colo. A parede ao fundo é amarela.
Natalia Viana e Julian Assange trabalhando juntos na Inglaterra em meados de 2010. Foto: Acervo pessoal/Natalia Viana.

 

Além de escrever reportagens para o WikiLeaks de forma voluntária sobre as questões brasileiras que foram vazadas, Natalia também firmou parcerias com os jornais Folha de S. Paulo e O Globo: “Quando recebi esses documentos, tive dez dias para pensar em uma estratégia de como publicar isso no Brasil”. Um dos temas mais recorrentes foi a presença de agentes do FBI — Departamento Federal de Investigação, na sigla em inglês — em território nacional, com influência em prisões por falsas alegações que culminaram na extradição de cidadãos brasileiros para os EUA, no que Natalia chamou de “caça às bruxas a supostos terroristas”.

 

Os legados do WikiLeaks

Após três meses dessa parceria, o interesse dos grandes jornais brasileiros pelos vazamentos do WikiLeaks foi se esvaindo. Segundo Natalia, isso pode ter acontecido já que tanto a Folha de São Paulo quanto O Globo tinham uma proposta de cobrir diariamente as principais notícias do país, o que levava esses veículos a não ter um olhar investigativo para os documentos e consequentemente não produzir furos de reportagem a respeito deles.

Em 2011, para continuar investigando os documentos vazados pelo WikiLeaks e publicando seus desdobramentos para o Brasil, Natalia e as jornalistas Marina Amaral e Tatiana Merlino — colegas na revista Caros Amigos — resolveram tirar do papel o sonho antigo de criar uma agência de jornalismo investigativo independente e sem fins lucrativos. E assim nasceu a Agência Pública.

 

Aula inaugural Jornalismo - Natalia Viana

Foto de um grupo de cerca de 50 pessoas em um auditório. O grupo é variado, com homens e mulheres de diversas idades e, em sua maioria, brancos. As cadeiras são azuis, o chão e a parede são em um tom de marrom claro. Em uma das paredes, uma janela que dá para árvores. No fundo do auditório, um homem com uma câmera em um tripé. No teto, luminárias brancas.

O Auditório Freitas Nobre, do CJE, ficou lotado durante o evento. Foto: Maria Eduarda Lameza/LAC-ECA

Foto de homem branco falando ao microfone. Ele é careca, tem barba e bigode castanhos, olhos castanhos e usa uma camisa de mangas longas verde escura. Atrás dele, uma parede branca e uma janela com vidros escuros e grades.

Professor Vitor Blotta. Foto: Maria Eduarda Lameza/LAC-ECA

Foto de uma mulher branca de pé falando ao microfone. Ela tem cabelos castanhos compridos e cacheados, usa um vestido escuro com alguns desenhos coloridos. Atrás dela, uma projeção exibe uma foto de pessoas na parede branca. Em primeiro plano, desfocadas, cabeças de pessoas da plateia.

A palestra de Natalia Viana durou cerca de 45 minutos. Foto: Lorenzo Souza/LAC-ECA.

Foto de um homem branco com um ligeiro sorriso. Ele é calvo, tem cabelos lisos, curtos e grisalhos. Usa camisa rosa listrada sob um paletó bege. À frente dele, um suporte preto para microfone e, atrás, uma parede branca com uma projeção.

Professor Eugênio Bucci. Foto: Maria Eduarda Lameza/LAC-ECA

Foto de um homem negro falando ao microfone. Ele tem dreads longos e grisalhos, usa óculos e uma boina azul, uma camisa polo azul escuro com detalhes em amarelo nas mangas e no colarinho. Ele está sentado em uma cadeira azul atrás de uma mesa branca em que estão apoiados um celular e um suporte para microfone. Ao lado dele, uma mulher branca, de cabelos castanhos, longos e cacheados, óculos e roupa verde escura com detalhes coloridos. O fundo é branco.

Professor Dennis de Oliveira. Foto: Maria Eduarda Lameza/LAC-ECA

Foto de homem negro jovem falando ao microfone. Ele tem cabelos cacheados, curtos e pretos, olhos castanhos e usa óculos. Usa uma camisa amarela com listras pretas. Com uma mão segura o microfone e com a outra gesticula. O fundo é uma janela com grades e vidros escuros.

Estudante de Jornalismo faz pergunta para Natalia. Foto: Maria Eduarda Lameza/LAC-ECA.

Foto de uma mão escrevendo na primeira página de um livro enquanto a outra mão o segura. As unhas estão pintadas de vermelho, há um anel grosso e preto no dedo anelar da mão esquerda.  e uma tatuagem preta de folha no  braço direito. O livro tem capa azul e laranja e está sobre uma superfície branca. Ela escreve com uma caneta preta e branca, os escritos estão em tinta azul.

Sessão de autógrafos ao final do evento. Foto: Maria Eduarda Lameza/LAC-ECA.

 

Natalia conta que, mesmo longe, com seu retorno ao Brasil e trabalho na Agência Pública, acompanhou “de perto a perseguição que Assange sofreu por 14 anos. Ainda em 2010, ele foi acusado de abuso sexual na Suécia e, em 2012, conseguiu asilo na embaixada do Equador em Lodres, onde ficou por sete anos. Quando o governo do Equador mudou em 2019, seu asilo foi negado e ele foi preso na Inglaterra, onde permaneceu até o ano passado. Apesar das acusações de abuso sexual terem sito arquivadas por falta de provas, os Estados Unidos realizaram diversos pedidos de extradição alegando crimes de espionagem. 

Julian Assange foi solto em 2024, após firmar um acordo com o governo norte-americano em que se declarou culpado de publicar documentos confidenciais, o que, para Natalia, “é se declarar culpado de fazer jornalismo”. Ela ainda considera que Assange foi vítima de lawfare, um mecanismo de perseguição de opositores políticos através da manipulação do sistema jurídico.

Ao final de sua palestra, Natalia Viana disse que resolveu contar essa história agora em seu livro para lembrar que, em meio a um cenário de desinformação, a aliança entre o jornalismo e a tecnologia pode ser benéfica: “a tecnologia também é libertadora, depende do uso que a gente faz dela”. Para ela, o WikiLeaks teve importante papel em moldar o jornalismo como conhecemos hoje e inspirou outros vazamentos de grande relevância pública, como os casos Vaza Jato, Snowden e  Panamá Papers.

 

“Julian Assange operacionalizou os grandes vazamentos modernos, uma marca do jornalismo investigativo atual, que gerou grandes furos jornalisticos que mudaram a história de países.”

Natalia Viana, jornalista co-fundadora da Agência Pública

 

Após a fala de Natalia Viana, na segunda metade do evento, teve início o  debate com comentários e questionamentos dos docentes Dennis de Oliveira e Eugênio Bucci, que falaram sobre a importância do cuidado na apuração, da checagem de fatos e do compromisso com o interesse público para os jornalistas em formação. Em seguida, o professor Vitor Blotta mediou uma série de perguntas do público para Natalia e, por fim, ocorreu uma sessão de autógrafos. 

 

 

 


Foto de capa: Maria Eduarda Lameza/LAC-ECA.