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Graduanda e pós-doutoranda da ECA são premiadas no USP Mães Pesquisadoras

Ensino de cerâmica decolonial e "contação" de histórias para crianças negras: saiba mais sobre os trabalhos das premiadas

Vida acadêmica

As ecanas Priscila Leonel e Stela Nesrine foram premiadas na segunda edição do Prêmio USP Mães Pesquisadoras – 2023 – Ciências Humanas, Sociais Aplicadas e Linguística, Letras e Artes. Priscila recebeu menção honrosa na categoria pós-doutoranda e Stela foi premiada na categoria graduanda. 

O Prêmio USP Mães Pesquisadoras é uma iniciativa da Pró-Reitoria de Pesquisa e Inovação (PRPI) em parceria com a Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento (PRIP). A premiação tem como objetivo reconhecer o trabalho científico, cultural ou artístico desenvolvido por pesquisadoras que também se dedicam ao cuidado dos filhos biológicos ou adotivos.

Ao todo, a edição deste ano contou com 110 inscrições, premiou quatros mães pesquisadoras e concedeu três menções honrosas. 

 

Montagem com as capturas de tela de apresentações em vídeo de Priscila e Stela. Do lado esquerdo, uma mulher negra com cabelo raspado, óculos e roupa laranja sorri. Atrás dela há uma porta fechada e parte de uma estante branca com livros. Do lado direito, há uma mulher negra com cabelo curto e cacheado, usando argolas e roupa amarela e branca. Atrás dela, um armário bege e outra estante cinza com livros.
No dia 15 de junho ocorreu a cerimônia de premiação do Prêmio USP Mães Pesquisadoras. Vídeos em que as contempladas falam de suas pesquisas foram apresentados no evento. Tanto Priscila quanto Stela trazem a temática racial e a ancestralidade em seus trabalhos. Imagens: reprodução/Pró-Reitoria de Pesquisa e Inovação da USP.

 

Ensino decolonial na cerâmica

Além de ser mãe de três meninas, Priscila é artista visual, docente da Unesp e pós-doutoranda do Departamento de Artes Plásticas (CAP), com supervisão da professora Sumaya Mattar (CAP). Seu projeto de pesquisa para pós-doutoramento trata do ensino de cerâmica nas universidades com base na decolonialidade

Foto de uma mulher negra, olhos e cabelo raspado escuros sorrindo. Ela usa óculos de armação branca e veste uma blusa branca. Atrás dela há uma parede de pau-a-pique, onde o barro entre os troncos de madeira tem algumas rachaduras.
Imagem: Arquivo pessoal

Depois de passar pela graduação e pelo mestrado e ter tido pouco contato com artistas negros, a docente conta ter se debruçado na busca por esses profissionais em seu doutorado, o que também a fez trazer um pouco deles para o seu processo artístico.

Depois de terminar o doutorado, ela se tornou professora substituta na Unesp. Como docente, pôde compartilhar com seus alunos nas aulas de cerâmica e gravura os seus achados do período de doutoramento

Além do conteúdo, Priscila destaca que também se atentou à forma de ensinar. Ela conta que passou um tempo com as mulheres Macuxi, indígenas que produzem panelas de barro na comunidade Raposa I, na Terra indígena Raposa Serra do Sol, em Roraima, e explica que a forma como elas ensinam a produzir esse tipo de arte a influenciou. 

“É sentar em roda e fazer junto, não é uma pessoa falando sem parar lá na frente e as outras ouvindo enfileiradas. Isso começou a pegar para mim também. Não é só o conteúdo que eu trago, mas é a forma como a gente constrói conhecimento junto”, diz a pesquisadora sobre suas observações na comunidade. 

Nesse contexto, sua pesquisa, focada no curso de Artes e especificamente no campo da cerâmica, se fundamenta em pensar a aula na Universidade a partir da decolonialidade, não só no conteúdo, mas também na metodologia.

 

Vários objetos de cerâmica feitos com barro, como panelas, copos e tigelas, estão expostos em uma mesa de madeira. Algumas das peças têm manchas escuras.
A produção de panelas de barro é uma tradição para as mulheres Macuxi de Roraima. A prática é uma herança cultural da comunidade Macuxi que perdura desde 1870. Imagem: reprodução/G1 RR

Modo de produção colonial

Com a experiência do ensino da disciplina de cerâmica para o curso de graduação em Artes Visuais na FAAC-Unesp, Priscila notou a existência de preconceitos e fetiches em relação à forma e estética da produção artística. Segundo ela, existe uma preferência por técnicas e formas específicas de peças — que pode ser explicada pela cultura eurocêntrica em que o Brasil foi inserido.

Em trabalhos produzidos como parte de seu projeto de pesquisa, a pós-doutoranda aponta que o meio ceramista em São Paulo possui ligação forte com a queima de alta temperatura e com esmaltes vidrados — modos muito usados na ancestralidade europeia, norte-americana e japonesa, além da predileção pela argila branca, rara no Brasil. 

Das queimas em forno a lenha, gás e elétrico, a última é mais precisa, ou seja, as chances da peça ter alguma modificação são menores. Já nas outras duas, esse processo é experimental e imprevisível: o que sai do forno pode não ser o esperado. E essas características não eram buscadas pelos estudantes.

“Não é que eu queira que a gente retroceda, mas é o aluno perceber que existem muitas possibilidades de fazer o acabamento, de fazer a decoração da peça que não é só o esmalte, que não é só o forno elétrico. Enquanto artista visual é importante que se faça essas experimentações, que brinque com essa plasticidade”, diz a docente. 

 

Por que não terracota? O apagamento da ancestralidade afro-indígena

 

“Quando a gente pensa nesse ensino decolonial da cerâmica, é ampliar as nossas possibilidades porque houve um apagamento de uma parte dessas possibilidades e do nosso conhecimento. É resgatar essa outra parte para que a gente tenha acesso a esse conhecimento como um todo, e não só um conhecimento que nos veio pelas vias europeias”.

Priscila Leonel, docente na Unesp e pós-doutoranda na ECA

 

A pesquisadora conta que a preferência por modos exportados de produção da cerâmica não se restringe apenas à Universidade e se expande para o meio ceramista no geral. Segundo ela, há um processo de hierarquização —  presente em muito do que vem da cultura negra — que coloca a arte ceramista da ancestralidade africana e indígena como inferior

“Quando você fala: 'ah, a cerâmica de alta temperatura é melhor' é também uma forma de dizer que a cerâmica de baixa temperatura é pior. E a cerâmica de baixa temperatura é a cerâmica que era feita aqui pelas comunidades indígenas”, explica. A partir de pensamentos como esses, a arte indígena e negra começa a ser identificada  como de  baixa qualidade e cai no esquecimento. 

Priscila conta que dentro dos grupos de cerâmica a argila branca é definida como superior a argila terracota — material usado, por exemplo, em filtros de barro — mesmo que a segunda seja encontrada em maior abundância no território brasileiro, o que demonstra a desvalorização da cultura nacional

“É assim que a gente constrói o apagamento: dizendo que o que o outro tem é ruim. E aí ninguém vai querer estudar, ninguém vai querer pesquisar, porque é ruim. Só que isso não é verdade. A gente precisa duvidar dessas verdades construídas”, pontua.

 

A mudança começa no currículo

Priscila indica ser necessário que as universidades formem um discurso baseado na decolonialidade. Dessa forma, os professores que estão se formando já chegarão às salas de aula com o pensamento decolonial e, como consequência, contribuirão para que os estudantes mudem a maneira como vêem a arte que difere daquela que é considerada hegemônica. 

Para isso, a pesquisadora explica ser preciso pensar no currículo das instituições de ensino, superiores e básicas, além de implementar disciplinas que estudem a cultura e arte afro-brasileira e indígena.

Mais inclusão no corpo docente e discente também é fundamental. A pós-doutoranda diz já ter notado que apenas o fato de ser uma professora negra na universidade impactava os estudantes. Ainda, pôde observar o interesse e a busca dos alunos e alunas em conhecer a arte ancestral negra, o que a encorajou a desenvolver sua pesquisa.

Agora em 2023, Priscila se tornou docente efetiva no curso de Artes Visuais na Unesp. Com isso, ela teve a oportunidade de criar uma disciplina chamada Decolonialidade na Arte, onde apresenta artistas negros e novas perspectivas de ensino.
 

Obra de Rosana Paulino. A peça envolve papel e tecido e é divida em três partes costuradas. A primeira parte tem a frase salvação das almas escrita em vermelho várias vezes e em diferentes tamanhos. No meio existe um fundo decorado, sobreposto a ele a imagem do perfil de uma mulher negra de cabelo crespo e curto impressa em tecido. A terceira parte é a mesma da primeira.
Obra de Rosana Paulino: Salvação das Almas?, 2017. Impressão digital sobre tecido e costura. Rosana se formou em Artes Visuais pela ECA. Suas produções tratam de questões étnicas, de gênero e sociais. Imagem: reprodução/rosanapaulino.com.br

 

Mãe, pesquisadora e o equilíbrio entre as duas funções 

Priscila explica que ser mãe e pesquisadora é difícil. É preciso equilibrar os dois lados para que uma função não se sobreponha à outra. Ela conta que o tempo que dedica a sua vida acadêmica é fora do horário comercial. Dentro de sua rotina, ela consegue ler e escrever enquanto suas filhas dormem, nas noites e madrugadas. 

Foto de um boneca feita de argila. A figura, que não tem traços faciais, está sentada e com os braços estendidos para o lado esquerdo. O cabelo é cinza e é enfeitado com um laço azul na parte de trás. A boneca veste uma blusa vermelha com laço azul, um short azul e sapatos cinzas.
Priscila tem um ateliê chamado Ateliê Sexta-Feira, onde produz algumas de suas peças. A artista já participou de várias exposições coletivas e individuais. Além da cerâmica, ela se aventura em esculturas, fotografia e instalações. Imagem: reprodução/priscilaleonel.com
 

Apesar disso, além de contar com seu parceiro na divisão de tarefas, a pós-doutoranda diz que seu trabalho como docente a possibilita ter horários flexíveis, o que contribui para que ela tenha um maior tempo de convivência com suas filhas

A preocupação em como se equilibrar entre a pesquisa e as filhas, no entanto, ainda é presente. “Muitas vezes eu me pegava nesse lugar que eu não posso estar aqui escrevendo coisas incríveis sobre uma educação transformadora e não estar ajudando a minha filha a fazer uma continha de mais”. 

Para a docente, ser premiada no USP Mães pesquisadoras reafirma a ideia de que não adianta ser só pesquisadora ou só ser mãe. Segundo ela, as duas vivências contribuem uma com a outra. 

Enquanto ser mãe e estar inserida no desenvolvimento das filhas —  o que envolve questionamentos e aprendizado — enriquece sua pesquisa, ser pesquisadora aumenta o conhecimento que pode levar para a criação delas.

 

Para ninar crianças pretas e acordar pessoas brancas

Stela Nesrine é mãe do Caetano, de seis anos, graduanda no curso de Educomunicação na ECA, musicista, artista e podcaster. Além de ser co-fundadora da Funmilayo Afrobeat Orquestra, banda brasileira de afrobeat formada somente por mulheres e pessoas não-binárias negras, ela é uma das produtoras do podcast Calunguinha

Foto de uma mulher negra de cabelo curto e escuro, olhos escuros e roupa amarela e preta. Ela inclina a cabeça e olha para o lado enquanto sorri.
Calunguinha é uma criação de Stela e Lucas Moura, aluno de pedagogia da Faculdade de Educação (FE) da USP. A produção tem uma temporada e foi renovada para uma segunda. Imagem: reprodução/Instagram

A graduanda é filha de Gracileide Medrado da Silva, mulher negra que criou sozinha seus quatro filhos. A artista conta que sua mãe foi responsável por trazer imaginação e encanto para a sua infância e a dos seus irmãos, o que fez dela sua primeira grande inspiração intelectual. 

Com base em conceitos de Kiusam de Oliveira sobre pedagogia da ancestralidade, Stela atualmente investiga “nos resultados dessa produção [Calunguinha] como a mídia sonora pode ser uma ferramenta de estímulo e imaginação de construção de novos imaginários, principalmente através do texto ficcional”. 

 

“As nossas produções antirracistas e as nossas produções visando o bem viver e uma luta contra os preconceitos precisam estar também nas mídias, em diversas linguagens”

Stela Nesrine, estudante de Educomunicação

 

A pesquisadora explica que Calunguinha, o Contador de Histórias objetiva entender quais formas de representação é possível criar através do áudio e como a mídia sonora pode ter um impacto construtivo para crianças, além de buscar entender as necessidades de representatividade da população negra.
 

 

 

 

Imagem de capa: Pró-Reitoria de Pesquisa e Inovação da USP