Institucional



Luiz Gama recebe o título póstumo de Doutor Honoris Causa da USP

Título foi proposto pela ECA e aprovado na última reunião do Conselho Universitário por unanimidade. A pesquisadora Ligia Fonseca comenta a importância da disseminação da obra do autor 

Comunidade

O Conselho Universitário (CO) da Universidade de São Paulo aprovou por unanimidade, no dia 29 de junho, a concessão do título de Doutor Honoris Causa a Luiz Gama, abolicionista, advogado, poeta e jornalista negro do século 19. A sugestão da homenagem partiu do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre o Negro Brasileiro (Neinb), com apoio da Comissão de Direitos Humanos (CDH) da ECA.

Luiz Gama foi um dos principais abolicionistas e ativistas políticos de seu tempo. Trabalhou como advogado na defesa e libertação de escravos e contribuiu com diversos artigos para jornais de São Paulo e do Rio de Janeiro, além de ser um dos principais representantes da literatura negra brasileira.

A campanha pela concessão do título de Honoris Causa recebeu forte apoio da comunidade interna e externa à USP. Na reunião do CO, diversos conselheiros destacaram o ativismo e a obra intelectual de Luiz Gama, ressaltando a legitimidade e a importância da aprovação do pleito da ECA. Brasilina Passarelli, diretora da Escola, ressaltou o "amplo espectro de atuação" intelectual de Luiz Gama e mencionou o crescente interesse acadêmico por sua vida e obra, com estudos sendo desenvolvidos no Brasil e em instituições estrangeiras, como a Universidade de Princeton e o Centro de Estudos Latino-americanos da Universidade de Chicago.

A professora também apontou a relevância simbólica e estratégica da concessão do título, com o avanço da política de cotas para pretos, pardos e índios e o aumento no número de ingressantes vindos da escola pública, que nesse ano atingiram 50% do corpo discente da USP. "Seria importante mostrar que a Universidade, além dessas ações afirmativas, também reconhece os novos conceitos de impacto social das ações, e é nesse âmbito que eu acho que estrategicamente é importante que esse conselho, que os meus colegas, votem por conceder esse Honoris Causa."

Após votação unânime, Luiz Gama tornou-se o primeiro brasileiro negro a receber o título de Doutor Honoris Causa da USP. Desde sua fundação, em 1934, é a segunda vez que a Universidade concede esta honraria a um cidadão negro. O primeiro foi Nelson Mandela, ex-ativista e ex-presidente da África do Sul. 

De acordo com o Estatuto da USP, o título de Doutor Honoris Causa é concedido “a personalidades nacionais ou estrangeiras que tenham contribuído, de modo notável, para o progresso das ciências, letras ou artes; e aos que tenham beneficiado de forma excepcional a humanidade, o País, ou prestado relevantes serviços à Universidade”.
 

Imagem de Luiz Gama sobre um fundo com livros
Foto: Reprodução/ Jornal da USP. 

 

Para além das ações, sobrevive o legado

Com a publicação de uma edição crítica da obra poética integral de Luiz Gama, Primeiras Trovas Burlescas & outros poemas de Luiz Gama (2000), da antologia Com a Palavra, Luiz Gama: Poemas, Artigos, Cartas, Máximas (2011), do livro Lições de Resistência: Artigos de Luiz Gama na Imprensa de São Paulo e do Rio de Janeiro, 1864-1880 (2020) e de diversos artigos e ensaios, Ligia Fonseca Ferreira, professora de Letras da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), se consagrou como referência quando o assunto é a obra e vida do autor. 

Ela foi uma das apoiadoras da campanha da ECA e comemorou a aprovação da homenagem. “É muito importante o Luiz Gama ter recebido esse título por unanimidade. Isso significa que a unanimidade o vê como um intelectual que tem peso para vários campos do saber”.

Ligia destaca que é necessário lembrar de Luiz Gama não apenas por suas ações excepcionais como ativista político, mas também por sua produção jornalística e literária. Segundo ela, ele era um escritor complexo e sofisticado. “Ninguém associava negro com escrita; o negro não escrevia, o negro não lia, muito menos era autor no tempo em que viveu. E Luiz Gama não só se tornou um representante digno, mas uma pessoa de bastante sucesso em sua atividade literária”, diz.

Sobre as consequências positivas advindas desse reconhecimento, ela afirma: “Como eu costumo dizer, a ação fabulosa de Luiz Gama não é menos importante do que seu legado. Eu espero que daqui para frente, e há material para isso, as pessoas passem a ler Luiz Gama. Ler a sua obra para ter esse contato direto com a fonte”.
 

Imagem de Ligia Fonseca Ferreira sobre um fundo de livros desfocados
Professora e pesquisadora Ligia Fonseca Ferreira. Foto: Reprodução/ Jornal da USP.

 

Bibliotecas da USP são as únicas a possuírem edições raras do autor

Ligia, que também é integrante do Conselho da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (BBM), destaca que, para além da homenagem, a USP é a única instituição a possuir um exemplar da rara 1ª edição do livro Primeiras Trovas Burlescas, publicado em 1859 em São Paulo e “ausente do acervo das duas maiores bibliotecas brasileiras”. Assim como a também rara 2ª edição, publicada em 1861. Os exemplares estão guardados na BBM e no Instituto de Estudos Brasileiros (IEB). 

Em nota, a BBM afirmou que “ambas as edições distinguem-se não só por conterem as sátiras políticas, sociais e raciais sui generis produzidas por um ex-escravizado, caso único no Brasil, mas também por seu autor ter incluído os poemas de cunho histórico e social de José Bonifácio, o Moço”.

A docente e pesquisadora reforça a importância desse patrimônio, pois os registros escritos de Luiz Gama contribuem não só para entendermos o Brasil escravocrata, mas também os reflexos desse período que permanecem na sociedade brasileira até hoje. “Se a gente pensar nas dinâmicas sociais do Brasil de hoje, nos textos de Luiz Gama nós encontramos uma surpreendente atualidade. Há mais de 150 anos ele denunciou a corrupção sistêmica, a impunidade, as atitudes racistas de que eram alvos ele e outros ativistas negros, e dissecou igualmente, em narrativas destinadas a comover o público, como funcionava a ‘justiça para negros’ e a ‘justiça para brancos’”.

Ligia espera que essa homenagem possa elevar o interesse com relação à obra e as pesquisas existentes sobre o abolicionista e finaliza: “Leiam, leiamos Luiz Gama e suas lições de resistência e de ‘saúde civil’, de que temos tanta necessidade – mais do que nunca – no Brasil de hoje. O pensamento de Luiz Gama, sua personalidade e seus valores fortalecem a todos nós, brasileiros”.