Institucional



Orgulho LGBTQIAPN+: funcionárias da ECA falam sobre trabalho, identidade e mais

Alê Vaz Machado e Daniela Abbade também foram estudantes da Escola 

Comunidade

Daniela Abbade é secretária do Programa de Pós Graduação em Artes Visuais (PPGAV) da ECA. Ela conta que, um ano após terminar sua graduação em Publicidade e Propaganda, na mesma instituição, prestou concurso para se tornar servidora da Universidade e que trabalhou na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU) antes de chegar à ECA como funcionária. “A USP foi meu primeiro trabalho depois de me formar”, explica. 

 

Foto da Daniela em semi-perfil. Ela é uma mulher negra de pele clara, cabelos ondulados, curtos e escuros, veste uma camisa azul com um blazer marrom, óculos de armação arredondada, fina e dourada. Atrás dela está a entrada do Departamento de Artes Plásticas, com um muro cinza com um buraco circular, janelas com molduras vermelhas, vidros e grades amarelas.
Daniela Abbade em frente ao prédio do Departamento de Artes Plásticas (CAP).
Foto: Larissa Leal/LAC.

 

“Todo esse universo da comunicação e das artes, da fantasia de contar histórias e de criar histórias era o que eu queria desde criança”, diz Alê Vaz Machado. Ela trabalha no setor de doação e aquisição de livros da Biblioteca da ECA e é formada em Artes Cênicas, com especialidade em direção teatral, também pela ECA. Ela  explica que, depois de três anos de graduação, precisou trancar o curso, que era vespertino, para poder trabalhar. Depois de cinco anos ela retornou ao ensino superior, se formando em 1999.  

 

Foto frontal da Alê. Ela é uma mulher branca, de cabelos lisos, longos e castanhos, veste uma blusa azul de mangas compridas e usa batom vermelho. Atrás dela há uma estante de livros ocupada pela metade.
Alê em seu local de trabalho, o setor de aquisições e doações da Biblioteca da ECA.
Foto: Isabel Briskievicz Teixeira/LAC.

 

Alê relata que dava aulas particulares, mas que era muito difícil encontrar um emprego fixo, com o qual ela pudesse se sustentar, com sua formação. “Aí eu prestei o concurso e hoje, felizmente, eu estou na universidade onde me formei. Não na graduação que eu fiz, mas eu tô num ambiente que eu reconheço”, completa. Quando entrou como funcionária da USP, em 2005, Alê trabalhou por 10 anos no Instituto de Química (IQ) antes de escolher a transferência para a ECA. 

Em pouco tempo Daniela vai mudar de função, uma vez que foi aprovada no último concurso da USP para o cargo de analista administrativa. Além do trabalho na USP, ela escreve romances sob o nome artístico Daniela Funez. Seus dois primeiros livros são Disquete de 3,5″ Soviético e O êxtase derradeiro da vampira de Osasco. “Vou publicar esse ano meu terceiro livro que é um romance, na área de ficção e ficção científica”. Ela também trabalhou como atriz  por muitos anos, atuando por um tempo na Companhia Os Satyros. “Eu explorei essa criatividade fora da publicidade, no teatro e na literatura”, comenta. 

 

A transição “é como uma sobrevivência”

 

“Não é uma genitália que define se você é uma mulher ou um homem; o gênero ultrapassa esses limites.”
Alê Vaz Machado, funcionária da biblioteca

 

O processo da transição de gênero, muitas vezes desconfortável, assustador e até violento, “é como uma sobrevivência” para Alê. Não é somente uma transição física e estética, com terapias hormonais e alterações corporais, é um processo de quebra de paradigmas. “Quando a gente é trans, a primeira pessoa que você tem que lidar com preconceito é você mesmo, porque todos os preconceitos sociais estão embutidos em você”, comenta. 

Foto da Roberta Close do busto para cima. Ela é uma mulher branca, de cabelos lisos, castanhos e longos, veste um biquíni de alças brancas e um acessório branco no cabelo. Está com o braço esquerdo levantado e sorri.
Roberta Close em sua juventude. Imagem: reprodução/ Instagram @gambineroberta.
 

Desde cedo, Alê se sentia diferente das outras crianças. No ensino médio, deixou o cabelo crescer e não conseguiu mais usar roupas masculinas. Contando sua história, ela ressalta que todas essas mudanças, por menores que possam parecer, são conquistas. “Você vai indo aos poucos. Cada passinho é um território que você tá conquistando”. Entre os 16 e 17 anos também se aproximou do teatro, um ambiente mais acolhedor: “foi importante para eu me posicionar como ser humano”.

Durante os anos 80 e 90, período de sua adolescência, havia muito menos referências conhecidas de pessoas trans do que hoje em dia. Uma referência marcante para a funcionária foi Roberta Close, uma das mais famosas modelos da época.  Num memorável dia de sua adolescência, Alê estava no dentista e se deparou com uma revista Marie Claire que continha uma entrevista da modelo contando a sua visão sobre sua transexualidade. Eu abri aquela revista e falei ‘caraca, mano, sou eu, né?’ ”, conta, emocionada. “Li aquilo e me desceu como um copo d'água quando você tá com muita sede”.

 

Olhar sobre a transgeneridade

Alê acredita que a geração atual tem mais suporte do que a sua geração teve 30 anos atrás. “Se a pessoa não tiver muita dúvida pessoal e íntima quanto a isso, ela consegue fluir mais rápido na questão da hormonização e até chegar na cirurgia”, afirma. Os preconceitos, porém, continuam extremamente presentes, segundo Daniela. “Sempre teve e vai continuar tendo. Vão ter políticas que vão tentar punir, mas sempre vai existir”. 

 

“A gente sempre vai ser apedrejada enquanto tiver essas vozes falando que o certo é ser homem cis ou uma mulher cis.”
Alê Vaz Machado, funcionária da biblioteca da ECA

 

Depois da explosão das mídias sociais, Alê também acredita que há mais vozes ecoando e propagando a igualdade, como a deputada federal Erika Hilton e a cantora Liniker. Porém, ainda há muito espaço para violência na internet. “Hoje, com o universo digital se tem mais informação, mas também se tem mais desinformação”, comenta.

A funcionária avalia, também, que a população trans ainda necessita ser normalizada. Comparada a população total do Brasil, pessoas transgênero ou não-binárias totalizam 2% (cerca de 3 milhões de indivíduos), segundo um estudo publicado pela Faculdade de Medicina de Botucatu (FMB) em 2021. “A gente não precisa crescer em população, não é isso. A gente só precisa ser normalizada, mesmo que a gente continue sendo cinco em um milhão. A gente só quer circular normalmente sem ter que lutar para ser”, explica.

 

Funcionárias da ECA

Daniela conta que quando foi transferida da FAU, pôde escolher entre duas unidades da USP e acabou elegendo a ECA. “Eu preferi vir para cá devido à proximidade e familiaridade com o ambiente e por acreditar ser um lugar mais interessante para trabalhar com mais autonomia". Ela explica que, por trabalhar sozinha em uma sala, acaba não tendo muito contato com outros funcionários do departamento, mas que as trocas são bem tranquilas. “Minha recepção foi boa, tanto pela minha chefe, pessoa que tenho mais contato, quanto pelos outros funcionários e professores do CAP [Departamento de Artes Plásticas]”. 

Ela comenta que tem muita afinidade com o ambiente e as pessoas da ECA. “Desde quando era aluna, sempre gostei mais dos círculos sociais da ECA, eu me encaixei bem aqui”. Daniela afirma que a escola é um local muito diverso e que todos conseguem achar um grupo aqui. Sobre o trabalho, ela diz que tem bastante independência, o que é bom por gostar de trabalhar sozinha.  

Alê conta que quando teve a oportunidade de transferência da Química, optou pela ECA por ser, em suas palavras, “uma terra conhecida, um local como se fosse minha cidade natal”. Ela conta que a Escola tem um ambiente muito aberto à comunicação. “Essa abertura é como um abraço, um beijo, um toque”. Ela ressalta que gosta muito de trabalhar no setor de doações e aquisições da biblioteca, uma vez que, além dos livros, pode ter contato com o universo de mídias como CDs e DVDs, que, mesmo obsoletas hoje em dia, têm uma carga muito grande de memória. 

Sobre a diferença da ECA percebida como aluna e funcionária, Alê diz que agora ela conhece o “backstage” do funcionamento das coisas na Escola. “Hoje, você vê uma uma diversidade muito maior, com muito mais diversidade de pessoas. A USP está muito mais aberta para os alunos, tem muito mais inclusão”. No cenário da transexualidade, ela conta que é difícil de discernir quando alguma atitude negativa é tomada por conta do preconceito ou não. “Quando você recebe um não, você não sabe se [é um] não pelo que tem que ser ou se é um não com viés transfóbico”. 

Segundo uma pesquisa realizada em 2024 pela Vagas, empresa de tecnologia para o setor de recrutamento e seleção, pessoas trans recebem, em média, 17% a menos que pessoas cisgênero, e essa diferença pode ser até de 26%. Esse tema é muito reportado nas lutas trans. Para a funcionária, isso não é muito presente na USP, uma vez que os salários dos servidores públicos são previamente definidos nos editais dos concursos e não há diferença salarial no momento da contratação. 

 

“A partir de um momento que essas pessoas estão surgindo e ocupando os espaços e não se consegue mais controlar esse fluxo, surge um modelo no qual a pessoa tem que se encaixar para ser recebida, então ela vira o exemplo.”
Daniela Abbade, secretária do PPGAV

 

Daniela acredita que, atualmente, há um esforço maior para incluir pessoas trans na maioria dos setores da sociedade, mas é um movimento carregado de muitos padrões sociais. “Uma vez que não é mais possível interromper a ocupação dos locais por pessoas trans, a sociedade precisa controlar e até se aproveitar desse fluxo, assimilando esses grupos como novos grupos consumidores”, afirma. Há a criação de moldes de pessoas trans exemplares, que, normalmente, estão dentro dos padrões binários de gênero e têm uma postura “mais negociável e dócil”. À margem da sociedade, ficam as pessoas que não se enquadram nessa lógica, como pessoas periféricas e de outros locais, “que não podem ser assimiladas como consumidoras em potencial”. 

 

Foto da Daniela em semi-perfil. Ela é uma mulher negra de pele clara, de cabelos ondulados, curtos e escuros, veste uma camisa azul com um blazer marrom, óculos de armação arredondada e dourada. Atrás dela há uma estante com papéis e pastas empilhadas. Ao seu lado direito, há uma mesa com uma caixa de papelão, um celular, um controle de ar-condicionado e um telefone.
Daniela em sua sala de trabalho. Foto: Larissa Leal/LAC.

 

Citada por Alê e Daniela nas iniciativas de inclusão da USP, a Pró-Reitoria de Inclusão e Pertencimento (PRIP), criada em 2022, é um órgão que visa acolher a diversidade da Universidade e oferecer condições melhores para a vida acadêmica de mulheres, pessoas negras, pardas e indígenas, pessoas de baixa renda e/ou LGBTQIAPN+. Alê não conhece direito o trabalho da Pró-reitoria, mas acredita que já é uma ação sólida da USP no caminho da inclusão de pessoas trans. Daniela entende que o órgão é bem recente e a USP ainda está atrasada no aspecto de oferecer oportunidades específicas para pessoas trans. “A USP foi uma das primeiras a colocar nome social, mas até hoje é usado aquele modelo antiquado de ter que colocar o nome social e o nome morto também”, afirma.

 

Foto frontal da Alê. Ela é uma mulher branca, de cabelos lisos, longos e castanhos, veste uma blusa azul de mangas compridas e usa batom vermelho. Ela está sentada e apoia seus braços em cima de uma escrivaninha. Atrás dela há uma parede branca e à direita da foto há um monitor de computador
Alê em sua mesa de trabalho, no setor de aquisições e doações da biblioteca. Foto: Isabel Briskievicz Teixeira/LAC.

 

“Se reconheça como uma força humana em potencial”

Como conselho, Alê indica que pessoas trans em busca de espaço no mercado de trabalho, nos estudos e na vida, nunca deixem de ser quem realmente são. “Siga seu coração, procure aliados, forças amigas e lugares que você possa existir com dignidade. Se reconheça como uma força humana em potencial, nada além disso. Tenham resistência, seja forte mesmo quando não estiver forte!”.

Alê também recomenda estabelecer uma rede de apoio. Conheça abaixo iniciativas de acolhimento para pessoas trans na cidade de São Paulo:

 

Serviço

Unidades de acolhimento e cuidado da saúde de pessoas trans

 

Casa 1

República de Acolhida, centro cultural e clínica social para a comunidade LGBTQIAPN+

Endereço: R. Adoniran Barbosa, 151 - Bela Vista, São Paulo, SP

 

Ambulatório do Núcleo TransUnifesp

Assistência multiprofissional e transdisciplinar de saúde à população trans

Endereço: R. Sena Madureira, 1500 - Vila Clementino, São Paulo, SP

 

Conheça outras iniciativas

 

 

 


Imagem de capa: Larissa Leal/ LAC