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Produção de Luiz Gama no século XIX inaugura autoria negra no Brasil

Dissertação de Mestrado explora a atuação de Luiz Gama como jornalista e primeiro autor que se enuncia negro na literatura brasileira

Comunidade

A atuação política e social de Luiz Gama atravessou as áreas do Direito, do Jornalismo e da Literatura. Além de sua participação no movimento abolicionista, no século XIX, seu legado marcou a história da imprensa brasileira, com artigos que visavam devolver às pessoas negras a humanidade roubada pelo racismo.

Nascido em 21 de junho de 1830, em um Brasil recém-independente e ainda escravocrata, Luiz Gama é até hoje referência para o movimento negro. Apesar de nascer livre, aos dez anos de idade ele foi vendido como escravo pelo próprio pai. Aos dezessete, se alfabetiza e consegue provar seu direito à liberdade, reconquistada aos dezoito anos.

Além de sua atuação na área do Direito, Luiz Gama também teve importante participação na história da imprensa brasileira. É o que revela a dissertação de mestrado “O que era preto se tornou vermelho”: representação, identidade e autoria negra na imprensa do século XIX por Luiz Gama, realizada por Cinthia Gomes. O estudo mostra como a obra de Luiz Gama dá início a uma autoria negra no Brasil e como ele utilizou o Jornalismo como ferramenta de apoio à sua luta pela liberdade das pessoas negras e transformação da representação do sujeito negro na mídia.

O racismo da época se apoiava no discurso dominante “de que pessoas negras, pessoas de origem africana, pessoas do continente africano não tinham alma e eram intelectualmente e moralmente inferiores”, segundo Cinthia. Ela explica que Luiz Gama usou a atividade de jornalista e a visibilidade e ampliação do debate que a imprensa possibilita como uma estratégia complementar à luta dele como advogado e líder político pela causa abolicionista. “Luiz Gama vai desconstruindo essa imagem, que naquela época era cristalizada no imaginário social, para construir uma nova imagem de homens e mulheres livres e com cidadania, com igualdade de direito”.

A pesquisa foi realizada no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação (PPGCOM), sob a orientação da professora Mayra Rodrigues Gomes. No estudo, Luiz Gama torna-se sujeito de debate a partir da análise de 61 artigos escritos por ele entre 1864 e 1882, hoje publicados em dois livros: Com a palavra, Luiz Gama: poemas, artigos, cartas, máximas, de 2011, e Lições de resistência: artigos de Luiz Gama na imprensa de São Paulo e do Rio de Janeiro, publicado em 2020, ambos da professora Lígia Ferreira, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

Arte com trecho de crônica de Luiz Gama
Trecho da Carta a Ferreira de Menezes, que integra o livro Com a palavra, Luiz Gama: poemas, artigos, cartas, máximas (2011). Arte: Susana Sato.

Cursos de Jornalismo não abrangem a história de um dos primeiros jornalistas negros do Brasil

Luiz Gama buscou desnaturalizar a escravidão e restituir a humanidade ao sujeito negro. “A pergunta, portanto, é: por que, apesar da evidente relevância histórica, este personagem não é estudado nos cursos de Jornalismo e sua atuação foi subnotificada nos livros mais comumente usados nas faculdades?”, questiona a pesquisadora. 

Jornalista formada em 2007 pela Faculdade Cásper Líbero, Cinthia, enquanto mulher negra e militante do movimento negro, já conhecia Luiz Gama por conta de sua importância na luta abolicionista. Mas foi somente em 2015 que ela teve conhecimento da atuação dele como jornalista, no evento de concessão do título póstumo de advogado a Luiz Gama, realizado pela Organização dos Advogados do Brasil (OAB) de São Paulo, na Universidade Mackenzie.

“Durante todo o período da minha graduação eu nunca fui apresentada a essa informação. A gente não estuda Luiz Gama nem a produção do jornalista Luiz Gama nos cursos de Jornalismo”, ela afirma. A partir do sentimento de indignação por não saber disso até aquele momento, Cinthia entrou em contato com a professora Lígia, pesquisadora da vida e obra de Luiz Gama, que ela conheceu no evento. “Peguei essa indignação e essa revolta e transformei num projeto de pesquisa de mestrado”. Um dos objetivos era produzir o estudo que ela gostaria de ter lido quando era estudante de Jornalismo.

Ela também explica que é possível identificar nos artigos de Luiz Gama “elementos que caracterizam estilos e gêneros de textos jornalísticos que a gente foi nomear só anos depois, só no século XX”. O conhecimento dele acerca da legislação de manumissão [alforria] já estava presente na sua prática de um jornalismo especializado. “Ele dá verdadeiras aulas de Direito através das páginas dos jornais com esses artigos jurídicos”, relata Cinthia.

Luiz Gama escreveu crônicas e textos que hoje conhecemos como pertencentes ao gênero de jornalismo literário. “As narrações dele são um misto de reportagem com elementos de literatura” e “ele foi o primeiro autor da literatura brasileira a trazer essa marca da negritude e um dos primeiros que produziu dentro do que hoje a gente chama de literatura negra”.

A realização do mestrado também partiu da vontade de contribuir para que a história de Luiz Gama seja incorporada aos cursos de Jornalismo. “Minha expectativa era e continua sendo que esse estudo sirva para subsidiar disciplinas, material didático sobre a produção do jornalista Luiz Gama para os alunos e para os cursos de Jornalismo.”