Mulheres do Mar questiona mitos coloniais a partir de vozes nordestinas
Pesquisa de mestrado analisa práticas performativas participativas por meio de teorias feministas
A Revista Brasileira de Estudos da Presença, periódico científico da área das Artes Cênicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), publicou, em 2024, o artigo Mulheres do Mar: práticas performativas como crítica aos mitos coloniais patriarcais brasileiros. O trabalho é resultado da dissertação de mestrado de Marie Auip, artista e pesquisadora cearense, pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas (PPGAC) da ECA, orientado pelo professor do Departamento de Artes Cênicas (CAC), Marcos Bulhões.
Tanto o artigo quanto a dissertação analisam, por meio de teorias feministas, o projeto Mulheres do Mar, uma iniciativa artística realizada em Fortaleza (CE) entre 2019 e 2021 pela pesquisadora. Segundo Marie, a ação pode ser descrita como uma “cartografia participativa com mulheres de diversos territórios da cidade” que teve como objetivo questionar o mito de formação colonial e patriarcal instaurado pelo romance Iracema, de José de Alencar.
“E se Iracema tivesse sido escrita por uma mulher?”
Iracema, romance publicado em 1865 pelo escritor brasileiro José de Alencar, narra a história da indígena Iracema e do português Martim durante o início da colonização do país. Mesmo estando em lados inimigos, eles se apaixonaram e tiveram um filho, Moacir, “o primeiro brasileiro”. A obra é considerada um mito de formação, isto é, busca relatar de forma heróica como o Brasil teria se originado. A história de Alencar está tão enraizada na cultura de Fortaleza que existem ruas, praias e até estátuas em homenagem à figura de Iracema.
“Esse mito sempre me incomodou”, afirma Marie Auip. A artista explica que a obra apaga aspectos violentos do processo de colonização brasileiro, como a exploração da terra e dos corpos femininos. Para ela, esses ideais presentes no mito são perpetuados até hoje e podem ser observados na especulação imobiliária da faixa litorânea do estado e nas elevadas taxas de violência contra mulheres. Apenas em 2023, a Defensoria Pública do Ceará registrou 11.408 casos.
“Iracema é uma personagem que foi construída pela perspectiva de um homem, quase não fala, não toma parte de sua história [...] O que diriam as Iracemas que se espalham pela cidade de Fortaleza? E se Iracema tivesse sido escrita por uma mulher?”
Marie Auip, artista e pesquisadora
Movida por esse incômodo, Marie buscou uma forma de fazer com que as mulheres de sua cidade pudessem, por meio das artes e das comunicações, contar suas próprias histórias. E foi assim que o Mulheres do Mar surgiu. Para isso, a artista realizou imersões em centros comunitários e culturais, promovendo conversas e exercícios que tiveram como resultado obras de arte, performances, instalações interativas, exposições e até mesmo um livro.
“O poder da escrita”
Marie Auip destaca que o projeto Mulheres do Mar foi dividido em algumas etapas, as quais ela chama de 'ondas'. No primeiro momento, ela passou cerca de dois meses frequentando o Centro Comunitário Luiza Távora. O Farol — nome pelo qual o centro também é conhecido — está localizado no bairro Serviluz, uma comunidade tradicional de pescadores escondida pelo porto de Mucuripe, que resiste à especulação imobiliária e à desapropriação de terrenos da orla para construção de hotéis de luxo.
A artista e pesquisadora conviveu com um grupo de idosas que se reunia no Farol duas vezes por semana. O objetivo inicial era que, ao final das atividades, as senhoras escrevessem suas autobiografias. Entretanto, Marie encontrou um obstáculo: várias dessas mulheres não eram alfabetizadas, ou seja, “elas não tinham o poder da escrita”.
Em sua dissertação de mestrado, intitulada Mulheres do Mar: um olhar sobre práticas performativas participativas criadas com intersecção de discursos feministas, a autora traz conceitos propostos pela professora da Universidade de Nova Iorque (NYU), Diana Taylor, para abordar o poder da escrita. Em seu livro O Arquivo e o Repertório: Performance e Memória Cultural nas Américas, Diana afirma que nossa sociedade transmite conhecimento a partir de duas formas: arquivos ou repertórios. A primeira forma representa tudo aquilo que está documentado e escrito. Já a segunda reúne saberes que existem de forma imaterial, seja pela fala ou pelas artes, como uma performance.
Marie argumenta que, apesar de ambas formas transmitirem conhecimentos igualmente, os arquivos recebem muito mais reconhecimento na construção social. Assim, a escrita, enquanto uma forma de arquivo, possui um grande poder, “principalmente quando falamos de mulheres que foram violentadas, invisibilizadas, que não puderam escrever suas histórias, que muitas vezes foram escritas por homens”.
Já que, no Farol, não seria possível trabalhar com a escrita, Marie precisou buscar uma alternativa que também funcionasse como um arquivo material que pudesse ser devolvido à sociedade, como um contraponto ao arquivo colonial e patriarcal já existente. As senhoras levaram para os encontros objetos pessoais, como fotografias, bordados e presentes, além de compartilharem com a turma suas histórias, que foram gravadas em áudio e vídeo. Esses itens foram reunidos em uma rede de pesca na obra Pescaria.
“Segunda onda”
No momento seguinte do Mulheres do Mar, Marie se reuniu com mulheres no Centro Cultural Belchior, também em Fortaleza. Durante as atividades, foram produzidas diferentes materialidades artísticas, como esculturas, bordados, textos, áudios, fotos e vídeos com o objetivo de possibilitar a expressão das participantes.
Todos esses trabalhos foram expostos em um espaço que recebeu o mesmo nome do projeto. A instalação Mulheres do Mar foi feita no Farol da Juventude, um contêiner do Instituto Iracema situado na Praia de Iracema, e contou com o apoio da Plataforma Imaginários, grupo que atua na difusão de artistas nordestinos do qual Marie faz parte, e da Secretaria Municipal de Cultura de Fortaleza.
Além da exposição, a instalação foi palco de uma intervenção artística que convidou mulheres para escreverem no contêiner suas histórias com a Praia de Iracema, buscando dar visibilidade à perspectiva feminina.
Enquanto a instalação aconteceu, Marie também realizou uma performance a partir da obra Pescaria. Sentada em uma cadeira na areia da praia, a artista colocou os depoimentos gravados das senhoras de Serviluz para tocar em uma caixa de som a seu lado enquanto os escrevia em uma rede de pesca. O objetivo inicial era que as senhoras participassem presencialmente da performance, mas como ela ocorreu durante a pandemia de covid-19 e elas faziam parte de um grupo de risco, essa foi a solução encontrada.
A performance, entretanto, não deixou de ser interativa. Marie posicionou outra cadeira a seu lado, inicialmente vazia, e convidou mulheres que passavam pela orla da praia para se juntarem a ela e escreverem suas histórias. Ao final, a rede de pesca passou a conectar, simbolicamente, todas essas mulheres do mar.
Com a conclusão do projeto, foi criado um site para reunir todos os trabalhos produzidos ao longo de sua duração. Nessa exposição virtual, é possível encontrar a gravação dos depoimentos das senhoras do Serviluz, os produtos audiovisuais das mulheres do Centro Cultural Belchior e imagens das ações realizadas na Praia de Iracema. Para Marie, essa é uma forma concreta de eternizar tudo que foi produzido: “elas nunca pensaram em ter suas histórias publicadas ou visibilizadas de alguma maneira.”
Dona Maria do Carmo
Uma dessas mulheres do mar é a Dona Maria do Carmo, do Centro Comunitário Luiza Távora (Farol). Para o exercício que resultou na obra e performance Pescaria, ela trouxe algumas fotografias antigas e compartilhou com o grupo as histórias por trás delas.
“É uma lembrança que eu tenho de quando tinha 25 anos. Eu já era mãe [...], já tinha dois filhos aqui”, conta Dona Maria ao mostrar uma foto em preto e branco dela mesma na praia, ainda jovem.
Dona Maria teve 10 filhos, mas relembra como foi perder alguns deles: “Morreu dois novo (sic) e depois outro com 33 anos, mataram ele”. Outra imagem trazida por ela, já colorida, retrata a família em um barco na beira do mar: alguns filhos, sobrinhos e uma neta.
No site Mulheres do Mar, está à venda um livro que reúne memórias das mulheres do Centro Cultural Belchior acerca da cidade e da orla, uma vez que elas detinham o poder da escrita. Segundo a dissertação de Marie, é fundamental devolver para a sociedade arquivos decoloniais, como proposto por Diana Taylor: “performance é um sistema de aprendizagem, armazenamento e transmissão de conhecimento, e que a partir de seus estudos pode desafiar a preponderância da epistemologia ocidental e tornar visível outras trajetórias culturais."
Sobre a autora
Marie Araujo Auip é uma artista e pesquisadora cearense em trânsito entre Fortaleza e São Paulo. É formada em Comunicação Social pela Universidade de Fortaleza e mestre em Artes Cênicas pela ECA-USP. Agora, está cursando seu doutorado também pelo PPGAC. Em sua pesquisa atual, também orientada por Marcos Bulhões, docente do CAC, Marie segue uma linha semelhante a de Mulheres do Mar, tendo como foco principal as práticas performativas de mulheres no território nordestino.