Pesquisadoras analisam história em quadrinhos sobre a Guerra dos Farrapos
Artigo da revista Nona Arte traz reflexões sobre cultura e identidade representadas em obra de 1985

A Farroupilha, mais conhecida como Guerra dos Farrapos, foi tema central da história em quadrinhos produzida em 1985 pelo ilustrador Flavio Barbosa Mavignier Colin e pelo roteirista Tabajara Ruas. A narrativa é uma adaptação dos fatos históricos e segue a ordem cronológica, abordando os principais acontecimentos que antecederam a guerra e chegando ao seu desfecho.
O artigo Cultura e identidade na obra A guerra dos Farrapos, de Flavio Colin publicado na revista Nona Arte, traz análises das pesquisadoras Neuza de Fátima da Fonseca e Marilda Lopes Pinheiro Queluz sobre como elementos culturais da tradição gaúcha foram representados nos quadrinhos para construir a narrativa da Guerra dos Farrapos. Além disso, as autoras discutem como os elementos gráficos da obra imprimem na história, ao mesmo tempo, dinamismo, heroísmo e crítica. A fim de acrescentar outras perspectivas, as pesquisadoras também lançam o olhar para outros personagens que contribuíram para a Farroupilha, mas foram ofuscados pelos heróis brancos sulistas.
Conhecendo a história
A Guerra dos Farrapos teve início em 1835 no Rio Grande do Sul, na época conhecido como Província de São Pedro do Rio Grande do Sul, e durou 10 anos. A região era reconhecida por sua localização geográfica estratégica, forte mercado interno com o comércio de charque (tipo de carne seca) e relações estreitas com o Uruguai. Os comerciantes e donos de fazendas se queixavam da alta taxa de impostos, que prejudicava seus produtos na concorrência com os vizinhos platinos, e da política imperial que impedia a autonomia da província gaúcha. Com a nomeação de um presidente de província em desacordo com os interesses da elite local, teve início a revolta, que foi ganhando caráter separatista e teve como uma de suas principais lideranças Bento Gonçalves. Em 1845, após poucas conquistas, com o atendimento de uma das reivindicações referente ao imposto sobre o charque uruguaio, foi declarado o fim da guerra com o Acordo do Poncho Verde. Os sulistas conseguiram benefícios como anistia aos revoltosos, títulos para seus soldados no exército imperial e a dívida dos gastos com a revolta foi assumida pelo governo.
Personagens esquecidos
Neuza e Marilda introduzem o artigo contando brevemente o que foi a Guerra dos Farrapos, com seus principais acontecimentos e desfecho, da mesma maneira que foi retratada nos quadrinhos. As pesquisadoras, no entanto, relembram personagens esquecidos pelos autores, como negros, indígenas e mulheres. Ainda que o recrutamento de populações marginalizadas para a Farroupilha tenha pouca visibilidade na história, essa participação foi essencial devido ao desequilíbrio de quantidade de guerreiros entre os revoltosos e os soldados imperiais. Muitos dos escravizados ou libertos se sentiram motivados a aderirem ao movimento com a falsa promessa de que seriam completamente livres após a vitória dos sulistas.
Para explicar que o esquecimento dos negros durante a Guerra dos Farrapos é um reflexo do racismo estrutural do Brasil, as pesquisadoras citam os estudos da historiadora Lilia Schwarcz. Elas avaliam que a naturalização desse preconceito possibilitou que personagens negros tenham sido representados de forma estereotipada e caricata nos quadrinhos de Colin.
“Os séculos de escravização de pessoas negras e a naturalização de ações como piadas e palavras que desvalorizam a raça negra deixaram enraizados no inconsciente coletivo a marginalização do negro e isso impede que ele se constitua como cidadão de direito.”
Neuza da Fonseca e Marilda Queluz, pesquisadoras
Esse tipo de representação estereotipada nos quadrinhos também ocorre com os indígenas que participaram da guerra. Neuza e Marilda apontam que esses povos foram tratados de forma superficial e unidimensional na obra de Colin, ignorando a diversidade étnica dos povos originários.
As figuras femininas também costumam ser ignoradas durante a narrativa histórica, sendo apresentadas como esposas dedicadas ou como forma de distração para os soldados. Porém, as pesquisadoras discutem que, com estudos mais recentes, é possível entender que as mulheres foram imprescindíveis para a manutenção da guerra, tanto na realização de trabalhos rurais e urbanos, como na industrial local, com a produção de recursos alimentícios e bélicos. Além disso, muitas mulheres chegaram a guerrear ao lado dos homens.
As autoras refletem sobre o motivo pelo qual muitas figuras foram representadas de forma caricata e como coadjuvantes nos quadrinhos, uma vez que a obra de Ruas e Colin foi inspirada em livros e imagens da época. Seguindo esse pensamento, as pesquisadoras entendem que: “Ambos se basearam nos fatos que historiadores contavam na época da produção da obra, e os estudos referentes à temática de gênero e à Guerra dos Farrapos são bastantes recentes e escassos, assim como as questões raciais, como a participação dos negros e indígenas no conflito”.
Os traços de Colin
Neuza e Marilda destacam como os traços dos desenhos de Colin são expressivos para realçar a dramaticidade e a força da cultura e identidade sulista, materializadas na caracterização de costumes, nos objetos, nos trajes, nos cenários. Os personagens sulistas são feitos com volume e expressividade para dar ideia de movimento em suas ações e engrandecer sua imagem.
Assim, o artigo analisa a construção de Bento Gonçalves como herói da guerra, o que o tornou uma figura carregada de símbolos e do ideário gaúcho representando o tradicionalismo e o gauchismo. A reprodução desses conceitos ao longo da narrativa é apontada pelas autoras por meio do foco durante a obra em símbolos identitários: vestuário e aparatos (poncho, chapéu, espora etc), expressões ou gírias (bah, tchê, bagual etc) e alimentação (chimarrão, churrasco etc).
Ao final do artigo, as pesquisadoras ressaltam que estudar a obra de Colin é relevante para repensar e refletir de forma crítica sobre sistemas culturais e sobre o próprio mundo. Neuza e Marilda finalizam o texto observando como a identificação de símbolos identitários e culturais possibilita um posicionamento crítico diante de representações, contribuindo para o reconhecimento do outro e para o desenvolvimento de uma visão mais transformadora.
A revista Nona Arte

Vinculada ao Observatório de Histórias em Quadrinhos da ECA-USP, a revista Nona Arte divulga artigos científicos sobre histórias em quadrinhos a partir de pesquisas acadêmicas desenvolvidas por pesquisadores brasileiros e estrangeiros. Além disso, há a publicação de depoimentos e entrevistas de personalidades significativas para o desenvolvimento das histórias em quadrinhos no Brasil, bem como resenhas de publicações científicas sobre quadrinhos publicadas no Brasil ou no exterior. A publicação ainda se dedica a registrar o panorama de atividades (trabalhos acadêmicos, exposições, eventos etc) sobre histórias em quadrinhos desenvolvidas no país. A revista tem suas publicações feitas em fluxo contínuo, por isso, acompanhe os próximos artigos ao longo do volume 12.