Praia dos Ossos: o rádio entre o cinema e o jornalismo

Pesquisa de Clara Rellstab analisa o podcast Praia dos Ossos da Rádio Novelo e o gênero narrativo nos produtos de áudio

Vida acadêmica
Foto de rosto em preto e branco de uma mulher branca com expressão neutra. Ela tem cabelos lisos na altura dos ombros e usa camisa estampada, casaco e  colar.
Clara Rellstab,  jornalista.
Foto: reprodução/ Revista Híbrida. 

Criado no início do século 21, o podcast vem se tornando cada vez mais popular entre os brasileiros, principalmente pela possibilidade de ser ouvido em qualquer lugar e momento. Segundo dados da revista Exame, o Brasil é o terceiro país do mundo que mais consome esse tipo de mídia, com mais de 30 milhões de ouvintes. “Os podcasts narrativos são uma forma de produção de áudio contemporânea que combina elementos do rádio, cinema e jornalismo”, explica a mestra em Ciências da Comunicação pela ECA, Clara Rellstab

A partir desse entendimento, a jornalista formada pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) e pesquisadora escreveu a dissertação de mestrado É rádio, mas também é cinema e jornalismo: Um estudo sobre os roteiros nos podcasts narrativos a partir de Praia dos Ossos. Sob orientação do professor Luciano Maluly, do Departamento de Jornalismo e Editoração (CJE), ela busca entender o equilíbrio entre as linguagens de rádio, cinema e jornalismo na produção de um roteiro de podcast narrativo. 

Clara já tinha experiências prévias com produções de podcasts, pois atuou na área no Estado de S. Paulo e na Rádio Novelo antes do início da pesquisa. “A maioria dos estudos sobre podcasts busca entender seu auxílio na educação. Nenhum era sobre as narrativas propriamente ditas. Eu queria entender o que era esse gênero, do que era formado”, comenta Clara. 

Ela explica que essa curiosidade veio principalmente da época em que trabalhava na Rádio Novelo, diante do fato de que o veículo sempre contratava um freelancer que era roteirista ou que sabia dos pormenores do fazer cinematográfico para auxiliar na produção do roteiro dos podcasts narrativos. “Creio que são um produto meio híbrido entre o jornalismo e o cinema, por isso, o nome da dissertação. Eu queria entender como a linguagem do cinema era transposta para os podcasts”, afirma.

 

A volta do áudio 

“Trabalhando em redações eu via as pessoas empolgadas com os vídeos e colocando o áudio como algo mais óbvio”, conta a pesquisadora. Ela crê que a necessidade de uma tecnologia específica para se escutar e produzir podcasts, como o uso de determinados aplicativos, tornaram a aceitação desse tipo de mídia mais demorada entre os grandes veículos de comunicação. “Com a chegada dos serviços de streaming e a possibilidade de baixar os episódios, os modelos produzidos fora do Brasil começaram a ser usados como inspirações”. Clara cita o Café da Manhã da Folha de S. Paulo como exemplo. “O público geral e os meios de comunicação passaram a entender mais essa volta do áudio”. 

A pesquisadora afirma que o rádio em si é democrático, uma vez que pode ser escutado em qualquer lugar, não precisa necessariamente de tomada e sua escuta pode ser combinada a outros afazeres. Apesar do podcast ser uma mídia que usa a oralidade como forma de disseminação da informação, ou seja, basta saber o idioma para compreender seu conteúdo, ele exige que você tenha internet e um meio em que ele possa ser ouvido, como computador ou celular. “Sabe-se que não é todo mundo que tem essa possibilidade. O podcast é como um rádio mais classista”, reflete Clara. 
 

Narrativa  x  jornalismo 

Na dissertação, Clara afirma que a relação entre o podcast narrativo e o jornalismo se dá “na possibilidade de a equipe de produção, quase inteiramente formada por jornalistas, buscar recuperar arquivos e fontes relacionados ao caso que comprovem a existência daquela história — ressaltando a importância da imprensa para a memória, documentação e credibilidade dos fatos”. Ela conta que o podcast Praia dos Ossos levou anos para ser publicado pela preocupação da equipe com a consistência da pesquisa. Foram retomados arquivos de áudio, televisão e jornais impressos para reconstruir o cenário e o contexto do acontecimento. “O uso do jornalismo como suporte é, na minha opinião, essencial para a construção de um bom roteiro narrativo. Esse equilíbrio entre narrativa e jornalismo é um alicerce”, completa Clara. 
 

Foto de recorte de uma matéria de jornal em preto e branco sobre o caso do assassinato de Àngela Diniz. No centro da imagem há o título cortado pela metade  “Doca vira herói:” e “Cabo frio gritando” logo abaixo. Acima do título há dois boxes também cortados pela metade, em um deles há o nome do veículo “Diário da Tarde”, a data e cidade e no outro parte de outra matéria do jornal.
Registro do caso do assassinato de Ângela Diniz no jornal Diário da Tarde na época. Foto: Reprodução Rádio Novelo.

 

A pesquisadora também comenta as entrevistas realizadas no podcast, que correspondem a três tipologias: depoentes, autoridades e especialistas. De acordo com a dissertação, “As entrevistas compõem um mosaico de vozes diversas que permitem que o ouvinte possa formar a sua própria opinião sobre o que lhe foi apresentado”. Clara afirma que os depoimentos são importantes para evitar um maniqueísmo da história. “Ouvir os dois lados foi muito importante para ter um equilíbrio. Toda a rede de amizades de Ângela foi reconstruída nas entrevistas, além de pessoas que possam ter testemunhado o ocorrido”. 

Outro ponto analisado foi o uso de recursos de áudio que pudessem trazer mais veracidade à história, de forma a envolver o ouvinte. Clara explica que os marcadores sonoros, tais como músicas, sons de botão de gravador ou rewind de fita cassete e sons de páginas virando auxiliam quem escuta a se situar na narrativa, principalmente quando ocorre uma mudança de cena. “O áudio só  chama atenção em um sentido, então, quando escutamos  algo por muito tempo, acabamos desviando a atenção. É difícil entender também quando uma entrevista passa para a locução ou para a leitura de um arquivo.”

 

A locutora como a espinha dorsal 

Durante o estudo, a pesquisadora explica a importância do locutor como espinha dorsal do podcast narrativo. Ela fala sobre a naturalidade com que Branca Vianna, narradora do podcast, interage com o ouvinte, como se estivesse falando com um amigo. “É  estabelecida uma relação muito íntima entre o ouvinte e o locutor. O locutor guia o ouvinte, estabelecendo assim uma relação de confiança.”

 

Arte digital que apresenta as pesquisadoras do podcast Praia dos Ossos. O fundo da imagem é laranja e há fotos de rosto das duas pesquisadoras em formato circular. Branca Vianna é branca, tem cabelos curtos cacheados e grisalhos, usa óculos e sorri. Flora Thomson-Deveaux é branca, tem cabelos compridos, ondulados e ruivos, usa óculos e sorri. Abaixo das fotos há o nome de cada uma e uma linha curva  branca interliga as fotografias.
Branca Vianna e Flora Thomson-DeVeaux, idealizadoras e pesquisadoras de Praia dos Ossos. Imagem: Reprodução/ Youtube 

 

A pesquisadora ressalta a necessidade do locutor se colocar na narrativa, explicar o motivo pelo qual ele está narrando o podcast e não outra pessoa, podendo assim descrever suas sensações e memórias. “O fato da história ser contada em primeira pessoa aproxima e o distanciamento presente no jornalismo é reduzido ao máximo”, diz Clara. Ela ainda explica que ocorre uma cumplicidade entre os dois lados, quem fala e quem escuta, que não ocorre em outros meios de comunicação. “Você descobre os fatos junto com o narrador, é a mesma jornada, o desfecho não é antecipado”. 

Branca Vianna tem uma trajetória estreitamente ligada com o caso tratado em Praia dos Ossos, que é o motivo para ela ser a locutora da narrativa.  De acordo com Clara, a mãe de Branca era muito ativa no movimento feminista, que teve grande participação nas lutas em torno do assassinato de Ângela Diniz. “A Branca era jovem, mas viu o decorrer do caso dentro de casa. Durante o episódio, ela vai rememorando tudo que ela viveu. O podcast tem essa carga familiar bem grande que é muito bonita.”

 

O podcast Praia dos Ossos

Praia dos Ossos é um podcast narrativo brasileiro documental lançado no final de 2020 e produzido pela Rádio Novelo. Sua trama é formada por oito episódios sobre o assassinato da socialite Ângela Diniz em 1976 na Praia dos Ossos, pequena vila na praia de Búzios, no Rio de Janeiro. Ângela foi vítima de Doca Street, que era seu namorado na época. Após o julgamento, Doca teve sua pena reduzida para apenas dois anos com a justificativa de “legítima defesa da honra”, ou seja, sob o entendimento de que ele teria agido para proteger a sua imagem enquanto homem ao cometer o assassinato.

A sentença branda mobilizou o movimento feminista, que promoveu diversos protestos que resultaram em um novo julgamento na década de 80. Dessa vez, Doca foi condenado a 15 anos de prisão por homicídio. O podcast é apresentado pela linguista e intérprete Branca Vianna, que também foi idealizadora da produção. Ela e Flora Thomson-DeVeaux retomam o caso com um objetivo que extrapola a reconstrução do crime, buscando entender o Direito, o machismo e o papel da mulher na sociedade brasileira no contexto do crime e como isso ainda reverbera nos dias atuais.

 

 

 

 


Imagem de capa: Reprodução/Spotify.