Revista Ars: exposições suspensas mostram as limitações de órgãos culturais
Artigo de docente da ECA analisa como museus, curadores e patrocinadores têm lidado com as contradições levantadas por movimentos sociais
Em 7 de junho de 2020, a exposição Philip Guston Now teria o início de sua itinerância por três museus norte-americanos e um inglês: National Gallery of Art, em Washington; Museum of Fine Arts, em Boston; Museum of Fine Arts, em Houston; e Tate Modern, em Londres. Postergada para 21 de setembro de 2020 em razão da pandemia, a itinerância acabou sofrendo um novo adiamento, desta vez para 2024.
Mas não foi a crise sanitária que motivou essa segunda mudança de calendário. Foi uma decisão dos próprios realizadores da exposição, preocupados com a repercussão que as obras do pintor americano poderiam ter em um ano que ficou marcado não só pela covid-19, mas pelos grandes protestos contra o racismo e a violência policial nos Estados Unidos após o assassinato de George Floyd.
É a partir desse acontecimento que o artigo Museus em retirada: até onde vai o pluralismo das instituições?, de Tiago Mesquita, crítico de arte, pesquisador e professor do Departamento de Artes Plásticas (CAC) da ECA, analisa a dificuldade das instituições para lidar com as contradições levantadas pelos novos movimentos sociais. O texto integra a nova edição da Revista Ars, dedicada a investigar o papel da História da Arte na atualidade.
Já consagrado por sua obra de expressionismo abstrato, Guston passa a criar, nos anos 60, telas figurativas que retratam a barbárie americana com traços que remetem ao cartoon e aos quadrinhos. Nesse conjunto de obras, personagens encapuzados e ensanguentados - uma referência direta à Ku Klux Klan, grupo supremacista branco estado-unidense - circulam livremente pela cidade, desempenhando as mesmas atividades cotidianas que qualquer cidadão branco de classe-média.
São as pinturas dessa fase do artista que compõem a exposição suspensa. Segundo os organizadores, a abertura deveria ser adiada “até um momento em que pensemos que a poderosa mensagem de justiça social e racial que está no centro do trabalho de Philip Guston possa ser interpretada de forma mais clara”. A decisão gerou protestos entre curadores, artistas e outras personalidades do mundo da arte.

Para Tiago, casos como esse demonstram a existência de uma dificuldade "em compreender o que há de contraditório na produção artística, nas instituições e na especificidade das obras". Ele chama atenção para o fato de que, por mais plural e diversa que uma determinada instituição se apresente, suas ações são limitadas por conveniências de ordem principalmente publicitária e financeira, já que o patrocínio de empresas é a principal fonte de financiamento das atividades promovidas por vários órgãos culturais.
“Talvez, olhar com atenção para este episódio, e outras reações de outras instituições, nos ajude a entender os limites de certo pluralismo liberal, que fala em nome de uma ideia difusa de representatividade, que evita debates espinhosos, à espera por certo ponto de convergência, que não parece se apresentar no horizonte”, afirma o autor, que no mesmo artigo também analisa a polêmica da exposição Queermuseu, realizada no Brasil pela primeira vez em 2017 e cancelada pelo Santander Cultural após pressões de grupos religiosos e políticos conservadores.
“Acredito que esses diferentes contrapontos críticos vieram para ficar. Temo que a resistência a esse dissenso também. O recuo dos museus diante da exposição de Philip Guston é um mal sinal, neste sentido”. Segundo o pesquisador, uma exposição das obras do artista representaria uma importante oportunidade para elaborar novas perspectivas de interpretação desse trabalho. Para Tiago, a crítica de arte só pode ser feita a partir deste lugar. A obra artística extrapola as intenções de seu criador e seus sentidos e limites sociais podem ser repensados quando sua apreciação e seu debate pelo público são permitidos.
“Diante da interdição de exposições, fica impossível pensar sobre a produção lá mostrada. Ficamos presos a uma questão superficial, que diria respeito às intenções do artista, para avaliar o trabalho. Mais uma vez, precisamos pensar mais na imanência da construção da obra, para além das suas intenções. A obra de arte não é só as convicções de seja lá quem for, mas o que é feito com isso, a despeito das intenções dos artistas”, conclui.
A edição de número 42 da Revista ARS, Histórias da Arte Sem Lugar, apresenta o exame da disciplina História da Arte à luz dos principais problemas que se apresentam hoje nesta área do conhecimento. Também traz um dossiê sobre o debate contemporâneo da arte e da cultura e o surgimento de novas práticas de escrita sobre arte, que desafiam o modelo tradicional da disciplina.
A Revista ARS é publicada quadrimestralmente pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais (PPGAV). Acesse na íntegra essa e outras edições no Portal de Revistas da USP.
Confira também a matéria do Jornal da USP sobre a Revista Ars: Histórias da Arte Sem Lugar.