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Memórias, traumas e a História do tempo presente em Watchmen

Pesquisador analisa expressões de temporalidade no quadrinho para entender como o passado pode se tornar presente na ficção e na realidade

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Em um mundo onde os trabalhadores temem ser substituídos por ferramentas tecnológicas, guerras escalam para um conflito total iminente e as disputas culturais e crises de valores dividem a população, a ficção pode ser o espelho de um presente em crise: entre a obsessão por um passado idealizado e o medo de um futuro incerto.  Embora não seja recente, a série em quadrinhos Watchmen, criada por Alan Moore e Dave Gibbons em 1986, continua atual, ecoando questões do passado que permanecem afetando o presente, bem como as consequências dessas questões não resolvidas em nossa percepção do tempo e da História. 

Visando entender como a expressão da temporalidade na obra reflete questões atuais, mantendo-a relevante e gerando novas interpretações, o pesquisador Leonardo Girardi, doutorando em História da Universidade Federal do Paraná (UFPR), analisa o primeiro número da série em seu artigo Dialética do(s) tempo(s): explorando temporalidades em Watchmen (Moore/Gibbons), publicado na última edição da Revista 9ª Arte. Girardi parte da perspectiva da História do tempo presente (HTP), que investiga como o passado se torna presente por meio de memórias, traumas e eventos culturais. Os conceitos de anacronismo do filósofo e historiador da arte Georges Didi-Huberman e de presentismo do historiador François Hartog são também usados para interpretar expressões de tempo heterogêneas e as consequências de crises e guerras na nossa visão sobre o tempo. 

Entre as conclusões do trabalho, o pesquisador aponta para um “império do tempo presente” que ressignifica o passado e o futuro com o imediatismo, idealizações e inseguranças. Girardi também fala da importância de se enfrentar os “fantasmas do passado” que irrompem no presente e de romper a barreira entre passado e presente na historiografia, fazendo com que ela deixe de ser um catálogo de fatos para se tornar um guia do que “devemos fazer”.

 

A plasticidade de sentidos nos “tempos impuros”

 

"Toda obra de ficção reflete nossa realidade de maneira profunda, seja por meio dos elementos fantásticos ou pelas questões que traz à tona, como os choques entre grupos sociais, valores conflitantes e os modos de experiência do tempo."

Leonardo Girardi, pesquisador
 

 

Logo na primeira página da estória, vemos um bóton smiley na sarjeta sobre uma poça de sangue, com uma gota de sangue sobre sua face sorridente. Ao mesmo tempo, uma caixa de texto mostra o “diário de Rorschach”, um dos vigilantes da série e o protagonista do primeiro volume. O diário conta as impressões do herói acerca daquela realidade, repleta de violência e corrupção. Nos quadros seguintes, com maior distância da cena, o leitor vê que a poça de sangue foi causada pela morte do Comediante — outro vigilante daquele mundo — e  a queda do homem da janela de um prédio é comparada à “queda” da sociedade retratada por Rorschach em seu diário. 

Foto de página de estória em quadrinhos, dividida em sete quadros. Nos três quadros superiores há um bóton amarelo com um sorriso em uma poça vermelha próximo a uma sarjeta com pessoas transitando. Nos três quadrinhos do meio, a calçada roxa e a avenida escura a partir do alto, com detalhes de um prédio marrom com janelas azuis à direita. No quadro inferior, maior que os demais, há um homem branco no topo do prédio olhando para a rua com os balões de fala “hmm, foi uma queda e tanto”.
 O Smiley coberto de sangue em uma sarjeta causa uma ruptura com o sentido otimista original do símbolo. Foto: Reprodução/Leonardo Girardi.

Girardi explica que o conceito de anacronismo, de Huberman, diz respeito às camadas de significado que podem ser atribuídas a uma imagem ao longo do tempo, mesmo que totalmente diversas de seu sentido original. O Smiley, por exemplo,  surgiu em 1963 com o objetivo de elevar a moral dos funcionários de uma seguradora. Em 1971, passou a ser usado com o slogan “tenha um bom dia” como uma tentativa de devolver o otimismo aos EUA durante a guerra do Vietnã e, em 1972, ilustrava os raros casos de boas notícias no jornal France Soir. Ao mesmo tempo, o símbolo do rosto amarelo sorridente também era usado de forma irônica pelos soldados da época e, hoje em dia, é apenas mais um ícone em meio a centenas de Emojis nas redes sociais. 

 

"O smiley está ligado a um contexto de transformações, que engloba os anos de bem-estar social, período de otimismo em relação ao capitalismo e ao progresso do Bloco Ocidental (liderado pelos Estados Unidos), bem como sua falência, marcada pelas múltiplas crises de fins da década de 1960 e início dos anos 1970."

Leonardo Girardi, pesquisador

 

Para o pesquisador, símbolos como o Smiley são definidos como de “tempo impuro” ou “temporalidade heterogênea”. Neles, os diferentes sentidos que se acumulam com o tempo criam anacronismos que revelam a plasticidade de “estilos” ou de “épocas” em um mesmo objeto. Partindo dessa lógica, Girardi analisa como Moore e Gibbons ressignificam elementos do passado no presente. Ainda na primeira página, transeuntes passam pelo bóton de Smiley jogado no chão, simbolizando a ruptura com a ideia de otimismo. Um morador de rua com uma placa de “o fim está próximo” deixa pegadas vermelhas próximas à poça de sangue onde o ícone repousa, sinalizando o caminho sombrio que aquele mundo percorre. 

O quadrinho traz outros exemplos de temporalidades compostas. Na página 24, o pesquisador aponta para diversas referências de épocas distintas no cenário. O símbolo da paz, criado nos anos 50 e o A circulado anarquista dos anos 60 disputam espaço nos muros e nas paredes com propagandas, pichações (incluindo uma referência à noite dos cristais, de 1938) e um cartaz da banda Pale Horse, referência ao cavaleiro da morte do apocalipse. 

 

O Império do presente

A forma como o passado pode ser moldado pelo presente também aparece na análise de Watchmen. Na página nove, por exemplo, vemos a conversa entre os dois vigilantes conhecidos como “Coruja” da HQ, Hollis Mason, o mais velho, e Daniel Dreiberg, que herdou seu manto. O homem mais velho trabalha agora com reparos de carros “obsoletos”, o que já mobiliza a ideia do passado.

Foto de página de estória em quadrinhos. Nos quadros superiores há um homem de fantasia roxa e máscara amarela, quadros e recortes de jornal em uma parede amarela e duas silhuetas avermelhadas de homens conversando diante de uma lareira. Nos quadros inferiores, uma silhueta amarela de homem está parada na frente da porta de um prédio roxo enquanto um homem de sobretudo marrom caminha por ruas escuras.
As memórias de um passado visto como brilhante contrastam com as ruas sujas e escuras do presente em Watchmen. Foto: reprodução/Leonardo Girardi.

Em sua conversa com o jovem ele lembra de seus tempos de vigilante com nostalgia, mas o tom idealizado da conversa contrasta com o cenário onde os personagens transitam no presente: ruas escuras, sujas por detritos e pichações, retomando a atmosfera “decadente” que paira desde a primeira página. A ideia de felicidade em contraponto com os sinais de degradação são lidas pelo pesquisador como a representação de uma relação difícil com o presente. 

Essa relação difícil, na qual o passado e o futuro ficam sujeitos ao presente, é explicada pelo conceito de presentismo, de François Hartog. No artigo, o presentismo é definido como um regime de historicidade onde “valoriza-se o passado e o futuro, mas sempre sob a égide do imediato”. O autor explica que crises econômicas, desemprego e eventos traumáticos, como guerras, corroem a confiança no futuro, ao mesmo tempo em que incentivam a idealização do passado. Além disso, a obsolescência de pessoas e objetos, diferenças entre gerações e o impacto do “ao vivo” na mídia comprimem ainda mais o tempo presente criando um domínio do imediato, que “constrói tanto o passado quanto o futuro necessários a si próprio”.

 

 

"Contudo, esse desejo totalizador não se concretiza completamente, pois o presente não consegue preencher totalmente a lacuna entre experiência (passado) e expectativas (futuro). Fragmentado e volátil, o presente busca afirmar sua identidade, recorrendo à memória [...], criando um universo simbólico de referência."

Leonardo Girardi, pesquisador
 

Girardi explica que o grande problema exposto na teoria de Hartog é que, no presentismo, a memória substitui a História para relembrar o passado. Sendo algo “vivo”, a memória está totalmente suscetível às circunstâncias do presente, assim trazendo consigo distorções e idealizações. Pode-se ver isso, no contexto da HQ, quando Rorschach relembra os bons caminhos “do meu pai ou do presidente Truman”, o que é uma referência à idealização dos Estados Unidos pós-segunda guerra, quando os estadunidenses se viam como heróis que salvaram o mundo do nazismo. 

Contudo, essas lembranças do passado influenciadas pelo presente se expressam como assombrações, e ao mesmo tempo em que devem ser lembradas, o esquecimento é necessário para se livrar de seus males. Para Girardi, cabe ao historiador recuperar esse passado traumático e transformá-lo em uma solução para as crises do presente. 

 

Um passado que não passa

Para Girardi, os conflitos sociais e expressões de tempo vistos em Watchmen refletem questões reais e atuais, mantendo-o relevante ao longo dos anos. Com o presente em crise, surgem idealizações do passado nas quais a memória vai na contramão da História. Da mesma maneira, o futuro deixa de ser um terreno de possibilidades para ser o foco de inseguranças. 

Foto de capa de estória em quadrinhos. No canto esquerdo, há uma faixa preta com a escrita “Watchmen” na vertical, em fonte verde, entre o símbolo de um relógio verde e uma logo com as letras “DC”. Do lado direito, há um recorte de desenho de rosto sorridente amarelo com uma gota de líquido vermelho escorrendo sobre um dos olhos. O fundo é vermelho.
O Smiley face é um exemplo de “temporalidade heterogênea”, com diversos significados atribuídos ao longo do tempo. Foto: reprodução/Leonardo Girardi. 

O uso de “tempos heterogêneos”, nos quais elementos de diferentes tempos ganham novos significados, surge na obra para estabelecer as ressignificações que símbolos podem adquirir ao longo do tempo, com mudanças drásticas que acompanham os períodos de otimismo ou de crise. As relações temporais baseadas em memórias e traumas são os recursos mais usados na HQ para expressar essa relação conturbada entre os seres humanos e o tempo, sempre sobre a égide de um “passado não acabado”. 

Por fim, Girardi aponta que quando o passado não é encarado, essas memórias e símbolos se tornam fantasmas que irrompem no presente. Para evitar essa tendência, a historiografia deve “superar a barreira entre passado e presente”, fazendo com que a ciência deixe de ser um catálogo de fatos para ser um guia que responda à pergunta “o que devemos fazer?”. Para isso, “é essencial o olhar crítico e analítico da historiografia”, que nos permita não só entender a realidade atual como também estabelecer bases éticas e políticas para a resolução de seus problemas. 

 

"O historiador, diante de um passado traumático e da demanda por memória e justiça, deve traduzir essas experiências para transformá-las em ferramentas práticas e éticas que enfrentem as demandas do presente.”

Leonardo Girardi, pesquisador
 

 

Revista 9ª Arte

Criada em 2012, a Revista 9ª Arte já publicou 13 edições dedicadas ao estudo de histórias em quadrinhos. O periódico reúne especialistas de diversas áreas, da linguística às artes visuais, da historiografia à comunicação, e tem como objetivo a divulgação de artigos científicos sobre HQs desenvolvidos no Brasil e no exterior.

Além disso, a 9ª Arte se propõe como um espaço para depoimentos e entrevistas de  personalidades significativas para o desenvolvimento das histórias em quadrinhos no Brasil, bem como resenhas de publicações científicas nacionais e internacionais sobre quadrinhos. 

Em sua 13ª edição, a revista apresenta, entre outros, artigos sobre a exportação cultural coreana por meio dos Manhwas, narrativas decoloniais na obra de Marcelo D'Salete, além de um estudo sobre a representação amazônica nas histórias em quadrinhos

 

 


Imagem de capa: Jesse Munoz/Deviant Art.