CRP | Departamento de Relações Públicas, Propaganda e Turismo



Como é construída a autopercepção de pessoas socialmente diversas

A partir de depoimentos, dissertação de mestrado procura entender os efeitos psicológicos e sociais do racismo, da transfobia e de outros preconceitos

Vida acadêmica

Espelhos inversos: os constructos da autoimagem, autoconceito e autoestima sob os olhos da diversidade social no Brasil é o título da dissertação defendida por Sérgio Felix da Silva junto ao Programa de Pós-Graduação em Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades (PPGHDL) da Faculdade de Letras, Filosofia e Ciências Humanas (FFLCH) da USP no final de 2023. O trabalho foi orientado por Reinaldo Miranda de Sá Teles, professor do Departamento de Relações Públicas, Propaganda e Turismo (CRP) da ECA.

Formado em Psicologia, Sérgio realizou estudo sobre como a diversidade social de cada indivíduo é percebida por ele próprio e afeta a sua autoestima, o seu autoconceito e a sua autoimagem, além de analisar os efeitos da discriminação e da desigualdade sobre tais conceitos. O pesquisador usa a metáfora dos espelhos inversos para expressar “como qualquer pessoa que se diferencia da norma, do normal, dentro de uma sociedade fundamentalmente excludente e preconceituosa e discriminante, se vê no espelho”. Ou seja, como as pessoas que sofrem preconceitos e marginalização por serem diferentes do padrão social se vêem e se sentem em relação a si mesmas e à sociedade. 

Como nos percebemos diante do mundo?

Os três conceitos discutidos na pesquisa são a autoestima, a autoimagem e o autoconceito. São conceitos-chave utilizados pelo pesquisador para responder à seguinte pergunta: como a sociedade influencia na forma que cada pessoa constrói a sua identidade? 

O orientador da dissertação explica que a autoestima diz respeito às avaliações que o sujeito faz sobre si mesmo. De acordo com o docente, é o quanto uma pessoa se considera capaz, importante e valiosa e isso “pode traduzir como ela reivindica seu espaço no mundo”.

A autoimagem se constitui na interação da pessoa com um contexto social, sendo responsável pela construção de sua imagem para si mesma. Nas palavras do professor Reinaldo, “a autoimagem é resultante de uma interação social”. Sérgio complementa o conceito em sua dissertação: “Pode-se pensar o quanto que as representações simbólicas preponderantes, que fundamentam o imaginário coletivo e constroem os estereótipos, preconceitos, discriminações e segregações, podem atingir o âmbito individual implicando decisivamente na forma como cada pessoa vê a si mesma”. Com isso ele quer dizer que a autoimagem de cada um é fortemente influenciada pelos preconceitos e afirmações recebidas ao longo da vida. Se uma pessoa cresce pensando que a sua orientação sexual é errônea, por exemplo, o jeito que ela constrói sua personalidade é influenciado por essa interação, afetando seu pertencimento social, autoestima, entre outros. 

Segundo a dissertação, o autoconceito “poderá alterar o modo como alguém vê algo (autoimagem) e como o valoriza (autoestima)”. Isso significa que o autoconceito é a percepção que se tem sobre a autoimagem e o valor que é dado para ela se traduz em autoestima. O professor Reinaldo comenta que o autoconceito também ultrapassa a barreira da individualidade do ser, pois “não vivemos isolados. Muito daquilo que se constrói a partir de mim é aquilo que a sociedade coloca como referência”.

Os três conceitos debatidos na pesquisa, segundo os pesquisadores, estão intrinsecamente ligados. “Se eu tenho uma ideia negativa a meu respeito, eu vou ter uma autoimagem negativa também. Um [conceito] alimenta o outro”, comenta Sérgio. 

O indivíduo diferente, que foge dos padrões impostos pela sociedade, está em uma constante jornada de autoconhecimento. O sentimento de não pertencimento que ele carrega é combustível para a construção, desconstrução e reconstrução de sua identidade, uma vez que se torna necessário reavaliar seu lugar no mundo frequentemente. As violências e preconceitos sofridos também o compelem a se adaptar à sua realidade, impactando sua autopercepção. A pergunta “quem eu sou, como me vejo e me valorizo?” torna-se questão de sobrevivência.

 

Origens e experiência clínica levaram ao mestrado

 Foto de Sérgio Felix da Silva. Sérgio é um homem indígena e possui cabelos grisalhos lisos que estão amarrados. Veste camisa xadrez, suéter rosa, jaqueta cáqui e usa óculos de armação preta.
Sérgio Felix da Silva

Sérgio Felix da Silva é natural da Serra da Barriga, Alagoas, mais precisamente de União dos Palmares – local que foi sede do maior quilombo do Brasil e hoje é sinônimo de resistência dos povos escravizados oriundos do continente africano. O pesquisador comenta que o fundador do quilombo, Zumbi dos Palmares, foi o seu “primeiro inspirador” para a pesquisa por ser uma pessoa que se opôs ao estado de opressão e desigualdade e lutou por liberdade e justiça. A ascendência indígena é, para o pesquisador, mais um motivo que o liga ao tema estudado. “Embora eu não tenha nascido dentro de uma comunidade indígena, a minha família [também] perdeu esse elo com a sua ancestralidade”, comenta.

Em sua cidade, Sérgio sempre esteve ligado a ações sociais: foi dono de uma escola filantrópica que chegou a ter 120 alunos, trabalhou como professor em orfanatos e coordenou um programa de inserção profissional de pessoas com deficiência. Num primeiro momento, o psicólogo não tinha pretensão de desenvolver uma pesquisa de mestrado, mas a linha de pesquisa proposta pelo grupo de pesquisa Diversitas o atraiu. “Já tenho 51 anos, tenho uma clínica aqui na Vila Mariana, um espaço terapêutico. Já tinha quase desistido de fazer mestrado quando eu soube dessa proposta”. 

 

Documentário

Foto de uma cena do documentário de Sérgio. Sérgio está ao lado de T’angel. Sérgio é um homem indígena, de cabelos grisalhos e veste uma camisa social azul clara. T’angel é uma pessoa branca, de cabelos ondulados azuis e veste camiseta preta. Possui tatuagens visíveis nas costas, rosto e pescoço. Ambas as pessoas estão posicionadas de costas para a câmera e é possível observar seus rostos e bustos através da reflexão de um espelho. O espelho está pendurado em uma parede de tijolos laranjas, que também possui espelhos de outras formas e tamanhos.
Trecho do documentário Espelhos Inversos. Imagem: Reprodução/ Documentário Espelhos Inversos, feito por Sérgio Felix

A partir dos depoimentos colhidos para a dissertação, Sérgio produziu um documentário, que foi a forma encontrada pelo pesquisador para mostrar o ponto de vista daquelas pessoas, exibindo suas expressões diretamente ao interlocutor.

Espelhos Inversos possui 51 minutos de duração e é uma combinação de quatro entrevistas conduzidas pelo pesquisador. Os entrevistados são Josina Maria de Jesus Bezerra, T’Angel, Rô Vicente e Cesar Trevisan. Cada um deles possui uma característica que se difere do chamado padrão social: Josina é uma mulher preta, T’Angel e Rô são pessoas trans não-bináries e Cesar é uma pessoa com deficiência física congênita. Seu alvo de estudo foi justamente como essas características são recepcionadas pela sociedade e influenciam a autopercepção de cada um. Sérgio comenta que a trajetória de todos tem muitos pontos em comum e o principal é que a sua “condição de diferença não foi recepcionada como bem-vinda”. 

O cenário criado por Sérgio para as entrevistas é uma sala com diversos espelhos que refletem tanto a imagem do pesquisador quanto da pessoa entrevistada. Cada conversa, que dura cerca de duas horas, é conduzida por perguntas como “como você acha que sua mãe te vê? E o seu marido (companheiro, esposa, namorade, etc)?”, “se você pudesse fazer três desejos ao gênio da lâmpada, quaisquer desejos, quais seriam eles?”, “como você completaria a frase ‘espelho, espelho meu…’?”. Cada resposta traz a tona histórias pessoais e, com elas, o reflexo de construção do autoconceito, autoimagem e autoestima.

 

"O que dizer de uma pessoa que tem a cor de pele de determinada maneira e tudo é dito que aquilo é uma condição de menor valor social… Como é que ele vai se ver? Que vozes são essas que dizem quem eu sou?"

Sérgio Felix da Silva, mestre em Ciências Humanas pela USP

 

O documentário foi premiado no 6º Festival e Mostra de Audiovisual NUPEPA/ImaRgens nas categorias Melhor filme documentário e Escolha do público. 

 

Banca examinadora preta

Foto da banca examinadora da dissertação de Sérgio. Sérgio está posicionado no canto direito da foto. É um homem indígena, de cabelos na altura dos ombros, grisalhos e lisos, veste uma bata amarela com detalhes em vermelho, laranja e verde. Está com as mãos juntas, em posição de agradecimento. Ao seu lado, há uma mesa quadrada com uma toalha estampada e objetos pessoais. Mais adiante, estão as quatro pessoas da banca examinadora, todas de pé, uma ao lado da outra. Da direita para a esquerda: uma mulher negra, de cabelos castanhos e crespos, com uma blusa preta e camisa verde estampada; uma mulher negra, de cabelos pretos, trançados e longos, com uma blusa laranja e saia branca; um homem negro, de cabelos curtos e grisalhos, vestindo camisa verde e calça preta, segurando uma folha de papel e um homem negro, careca, com camisa branca e terno preto. Todos estão em frente a uma mesa com uma toalha branca, flores, livros e uma toalha amarela estampada. A sala em que estão possui chão bege, paredes de madeira e teto branco.
Banca examinadora composta por quatro pessoas pretas. Entre elas, está o orientador da dissertação, Reinaldo Miranda de Sá Teles. Imagem: Reprodução/ Arquivo pessoal de Sérgio Felix

A banca examinadora da dissertação foi composta integralmente por pessoas pretas. O orientador de Sérgio conta que desde que começou a participar de bancas de mestrado e doutorado como professor da Universidade, em 2002, foi a primeira vez que conseguiu montar uma banca só com pessoas pretas. “Isso pra mim foi uma alegria… eu fiquei tão emocionado quando montei essa banca”, comenta o professor Reinaldo. 

Os examinadores foram: Rosângela Aparecida Hilário, professora do Departamento de Ciências da Educação da Universidade Federal de Rondônia, Jussara Nascimento Santos, doutora em Educação pela Universidade Federal de São Carlos e professora da rede pública do município de São Paulo, Felipe Chibás Ortiz, livre docente pela ECA, e o próprio professor Reinaldo Miranda de Sá Teles.

Ter uma banca preta à sua frente fez Sérgio se sentir ouvido: “eu tive a sensação de que a minha palavra estava sendo de fato escutada e compreendida dentro da minha proposta”. A composição da banca também foi coerente com a sua “proposta de desconstrução dos rigores epistemológicos, que estamos olhando pelo lado de dentro dos olhos”. Para o pesquisador, isso significa que o conhecimento produzido foi avaliado por pessoas que têm vivências semelhantes às estudadas, trazendo uma sensibilidade crucial para a compreensão do tema. 

Assista o documentário completo:


Foto de capa: Reprodução/Documentário Espelhos Inversos