CRP | Departamento de Relações Públicas, Propaganda e Turismo



O que uma ocupação por moradia tem a ver com Turismo?

Em estudo sobre a Cozinha da Ocupação 9 de Julho, aluna da ECA revê conceitos tradicionais do Turismo

Comunidade
Foto de uma pessoa segurando uma colher de pau e mexendo em uma panela. A imagem só mostra o tronco da pessoa, que é branca e usa um avental vermelho com o logo do projeto. O logo é branco, tem um quadrado com contorno pontilhado com dois círculos brancos em seu interior e o texto “cozinha ocupação 9 de julho MSTC”. Está saindo fumaça da panela, que é de metal.
Segundo a autora, os almoços atraem uma média de 3 mil pessoas para a ocupação por domingo. Foto: Reprodução/Instagram

Escrita por Martina Gonçalves Lemos, a monografia Cozinha Ocupação 9 de Julho: ressignificação de si e transmutação da realidade a partir de um sonho coletivo faz considerações sobre o Turismo, o protagonismo de uma ocupação por moradia e a importância da interdisciplinaridade. Sob a orientação do professor Reinaldo Miranda de Sá Teles, do Departamento de Relações Públicas, Propaganda e Turismo (CRP), a hoje ex-aluna da ECA decidiu analisar o fluxo turístico incomum que acontece no centro da cidade de São Paulo.

O projeto da ocupação promove almoços e atividades no Edifício 9 de Julho, na Bela Vista, e conta com a participação de moradores e visitantes, incluindo turistas. Mais de 60 ocupantes fazem parte da equipe fixa que se reúne mensalmente para preparar as refeições. A cada encontro, novos chefs podem se voluntariar para liderar a cozinha, o que proporciona trocas de experiências e a expressão de diversas tradições culinárias. 

Passando por discussões político-sociais, Martina critica a construção das concepções teóricas do Turismo, que raramente abre espaço para temas desvinculados do grande mercado do setor. Além disso, ela aponta a escassez de projetos que revisam a historiografia do Turismo. A título de exemplo, a autora analisa o catálogo de produções bibliográficas da USP e não encontra um TCC sequer que contemple a História do Turismo.

A turismóloga destaca que a Cozinha se diferencia das outras propostas do mercado por sua autonomia e criatividade, dissociando-se do trade turístico. O conceito de trade turístico se refere a um conjunto de equipamentos e serviços que compõem a oferta turística de alto potencial de renda e alcance. Esses equipamentos e serviços são representados por hotéis e outros meios de hospedagem, bares e restaurantes e agências de viagem, por exemplo. 

 

“Através de pesquisa bibliográfica e trabalho de campo, conclui-se que é possível uma ocupação por moradia relacionar-se com o Turismo, desde que inaugurado(s) novo(s) sentido(s) do que se denomina turismo.”
 

Martina Gonçalves Lemos

 

Cozinha, cultura e luta
 
Foto de uma mulher segurando uma pequena caixa de papelão com comida dentro. Ela é branca, tem olhos escuros, cabelos presos, usa máscara e luvas descartáveis e veste uma camiseta preta e um avental vermelho. Ao fundo, há um cartaz na parede branca com o texto “juntos somos” em preto.
Helena Rizzo, eleita em 2014 a melhor chef do mundo pelo prêmio 50 Best Restaurants of the World, participou do Lute Como Quem Cuida, uma campanha de produção e doação de alimentos. Foto: Reprodução/Facebook

Embora a elaboração do projeto tenha tido início em dezembro de 2017, o primeiro almoço foi divulgado apenas em março de 2018, com a publicação de um cartaz no perfil do Instagram da iniciativa. Aos poucos, a Cozinha foi se desenvolvendo e alcançando maiores públicos, o que alavancou a visibilidade do próprio movimento militante. Em 2019, a Ocupação 9 de Julho fez parte da programação da Jornada do Patrimônio, cujo tema foi Memória Paulistana, e desde então as parcerias só aumentam.

Dentre as personalidades que já visitaram a Cozinha estão a jurada do programa Masterchef Helena Rizzo, a culinarista e apresentadora de televisão Bela Gil e os artistas Criolo, Maria Gadú e Ana Cañas. O entretenimento também se dá por meio de outras atividades, como festas juninas, festas para orixás, shows de música, tendas de circo, salas de leitura, cinema ao ar livre e horta comunitária.

A Cozinha faz girar uma extensa cadeia econômica, consolidando-se como uma ação turística com papel importante na distribuição de renda, segundo Martina. Todo o dinheiro arrecadado nos almoços é reinvestido na própria Ocupação e seus membros. “Seja através da venda das refeições, seja através das barraquinhas dos moradores no pátio externo, [o dinheiro arrecadado] é utilizado para girar a economia doméstica das famílias”, aponta a autora. 

 

Foto de três caixas de papelão com comida. Cada uma delas é carregada por uma pessoa diferente, e as três usam um avental vermelho com o logo do projeto. Dentre outros alimentos, é possível identificar arroz e salada na refeição.
Além de serem consumidas no local, as refeições também são entregues por serviço de delivery. Foto: Reprodução/Instagram

 

Nessa rede produtiva não há participação de intermediários, agenciadores, acionistas ou do Poder Público. De acordo com a estudante, é por não ter interferências externas e por dar protagonismo aos sujeitos locais que o projeto se torna singular e se distancia do tradicional trade turístico. Ela ainda sugere que, a partir da experiência da Cozinha, é possível refletir sobre novas maneiras de se pensar o Turismo, indo além de indicadores como lucratividade e competitividade.

 

“É nesse lugar de não-mercado que o Turismo se revela, verdadeiramente, como ferramenta capaz de dar voz a novos interlocutores e protagonistas."

 

Martina Gonçalves Lemos

 

Repensar o Turismo
 

Martina acredita que é preciso produzir novos sentidos para o próprio Turismo e que, “talvez o Turismo seja melhor entendido a partir da sua indisciplina do que a partir da sua disciplina”. Ela o compreende como um instrumento capaz de ressignificar a cidade, sujeitos e territórios, e pensa que sua origem está intimamente ligada às transformações na realidade que os seres humanos são capazes de operar.

Após analisar os trabalhos de alguns autores, a turismóloga também conclui que a historiografia do Turismo é incompleta e carece de vozes populares, dado que as concepções atuais estão baseadas em perspectivas europeias e são centradas em ideais de consumo. Por conta disso, num primeiro momento, é difícil separar as ideias de oferta turística e de mercadoria. O Indicador de Competitividade do Turismo Nacional do Ministério do Turismo, por exemplo, leva em consideração os números de chegadas, partidas e gastos de um destino, mas não há um parâmetro que mensure a saúde socioambiental dos negócios.

Martina acrescenta que é importante ir além do caráter mercadológico exploratório (seja ele ambiental, animal ou humano) e manter como prioridade pilares fundamentais da formação em Turismo, como a hospitalidade, e captar desejos do público, como vitalidade e encantamento.

 

“O âmago do turismo como fenômeno social reside e sempre residirá na experiência da troca - humana, não mercantil.”

 

Martina Gonçalves Lemos

 

 

Foto de duas mulheres dançando. As duas são negras, estão com cabelos presos em faixas de tecido e usam o avental vermelho do projeto. Uma delas usa máscara e a outra a deixa pendurada na orelha, mostrando seu sorriso. Alguns cartazes aparecem desfocados presos nas paredes ao fundo.
Bela Gil e Carmen Silva, líder do Movimento Sem-Teto do Centro. Foto: Reprodução/Instagram
 
 
 

Imagem de capa: reprodução/ Instagram