O que uma ocupação por moradia tem a ver com Turismo?
Em estudo sobre a Cozinha da Ocupação 9 de Julho, aluna da ECA revê conceitos tradicionais do Turismo

Escrita por Martina Gonçalves Lemos, a monografia Cozinha Ocupação 9 de Julho: ressignificação de si e transmutação da realidade a partir de um sonho coletivo faz considerações sobre o Turismo, o protagonismo de uma ocupação por moradia e a importância da interdisciplinaridade. Sob a orientação do professor Reinaldo Miranda de Sá Teles, do Departamento de Relações Públicas, Propaganda e Turismo (CRP), a hoje ex-aluna da ECA decidiu analisar o fluxo turístico incomum que acontece no centro da cidade de São Paulo.
O projeto da ocupação promove almoços e atividades no Edifício 9 de Julho, na Bela Vista, e conta com a participação de moradores e visitantes, incluindo turistas. Mais de 60 ocupantes fazem parte da equipe fixa que se reúne mensalmente para preparar as refeições. A cada encontro, novos chefs podem se voluntariar para liderar a cozinha, o que proporciona trocas de experiências e a expressão de diversas tradições culinárias.
Passando por discussões político-sociais, Martina critica a construção das concepções teóricas do Turismo, que raramente abre espaço para temas desvinculados do grande mercado do setor. Além disso, ela aponta a escassez de projetos que revisam a historiografia do Turismo. A título de exemplo, a autora analisa o catálogo de produções bibliográficas da USP e não encontra um TCC sequer que contemple a História do Turismo.
A turismóloga destaca que a Cozinha se diferencia das outras propostas do mercado por sua autonomia e criatividade, dissociando-se do trade turístico. O conceito de trade turístico se refere a um conjunto de equipamentos e serviços que compõem a oferta turística de alto potencial de renda e alcance. Esses equipamentos e serviços são representados por hotéis e outros meios de hospedagem, bares e restaurantes e agências de viagem, por exemplo.
“Através de pesquisa bibliográfica e trabalho de campo, conclui-se que é possível uma ocupação por moradia relacionar-se com o Turismo, desde que inaugurado(s) novo(s) sentido(s) do que se denomina turismo.”
Martina Gonçalves Lemos

Embora a elaboração do projeto tenha tido início em dezembro de 2017, o primeiro almoço foi divulgado apenas em março de 2018, com a publicação de um cartaz no perfil do Instagram da iniciativa. Aos poucos, a Cozinha foi se desenvolvendo e alcançando maiores públicos, o que alavancou a visibilidade do próprio movimento militante. Em 2019, a Ocupação 9 de Julho fez parte da programação da Jornada do Patrimônio, cujo tema foi Memória Paulistana, e desde então as parcerias só aumentam.
Dentre as personalidades que já visitaram a Cozinha estão a jurada do programa Masterchef Helena Rizzo, a culinarista e apresentadora de televisão Bela Gil e os artistas Criolo, Maria Gadú e Ana Cañas. O entretenimento também se dá por meio de outras atividades, como festas juninas, festas para orixás, shows de música, tendas de circo, salas de leitura, cinema ao ar livre e horta comunitária.
A Cozinha faz girar uma extensa cadeia econômica, consolidando-se como uma ação turística com papel importante na distribuição de renda, segundo Martina. Todo o dinheiro arrecadado nos almoços é reinvestido na própria Ocupação e seus membros. “Seja através da venda das refeições, seja através das barraquinhas dos moradores no pátio externo, [o dinheiro arrecadado] é utilizado para girar a economia doméstica das famílias”, aponta a autora.

Nessa rede produtiva não há participação de intermediários, agenciadores, acionistas ou do Poder Público. De acordo com a estudante, é por não ter interferências externas e por dar protagonismo aos sujeitos locais que o projeto se torna singular e se distancia do tradicional trade turístico. Ela ainda sugere que, a partir da experiência da Cozinha, é possível refletir sobre novas maneiras de se pensar o Turismo, indo além de indicadores como lucratividade e competitividade.
“É nesse lugar de não-mercado que o Turismo se revela, verdadeiramente, como ferramenta capaz de dar voz a novos interlocutores e protagonistas."
Martina Gonçalves Lemos
Martina acredita que é preciso produzir novos sentidos para o próprio Turismo e que, “talvez o Turismo seja melhor entendido a partir da sua indisciplina do que a partir da sua disciplina”. Ela o compreende como um instrumento capaz de ressignificar a cidade, sujeitos e territórios, e pensa que sua origem está intimamente ligada às transformações na realidade que os seres humanos são capazes de operar.
Após analisar os trabalhos de alguns autores, a turismóloga também conclui que a historiografia do Turismo é incompleta e carece de vozes populares, dado que as concepções atuais estão baseadas em perspectivas europeias e são centradas em ideais de consumo. Por conta disso, num primeiro momento, é difícil separar as ideias de oferta turística e de mercadoria. O Indicador de Competitividade do Turismo Nacional do Ministério do Turismo, por exemplo, leva em consideração os números de chegadas, partidas e gastos de um destino, mas não há um parâmetro que mensure a saúde socioambiental dos negócios.
Martina acrescenta que é importante ir além do caráter mercadológico exploratório (seja ele ambiental, animal ou humano) e manter como prioridade pilares fundamentais da formação em Turismo, como a hospitalidade, e captar desejos do público, como vitalidade e encantamento.
“O âmago do turismo como fenômeno social reside e sempre residirá na experiência da troca - humana, não mercantil.”
Martina Gonçalves Lemos
