CRP | Departamento de Relações Públicas, Propaganda e Turismo



Maior consumo responsável no pós-pandemia não garante igualdade de gênero

Artigo da Revista Signos do Consumo reflete sobre queda nos investimentos para empresas responsáveis lideradas por mulheres, apesar delas serem maioria consumidora do setor

Vida acadêmica

A pandemia foi um divisor de águas em todas as esferas da sociedade, inclusive a do consumo. Partindo desta premissa, Bruna Soares Aguiar, doutora em Ciência Política e mestra em Sociologia pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), e Matheus Ribeiro Pereira, doutorando em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense (UFF), produziram o artigo Consumo responsável, para quem? Um ensaio sobre o fomento da desigualdade de gênero no pós-pandemia. O trabalho avalia a contradição intrínseca entre o aumento de um consumo responsável pós-pandemia e a diminuição do investimento em empreendimentos socialmente responsáveis compostos por mulheres.

 

A cultura do consumo

Partindo da divisão proposta pela pesquisadora Isleide Arruda Fontenelle, os autores do artigo afirmam que o desenvolvimento da cultura do consumo pode ser dividido em três fases. A primeira consiste no estabelecimento do capitalismo como sistema de produção e numa maior circulação de mercadorias, ocasionando a criação de signos e costumes associados ao ato de consumir produtos e serviços. 

A segunda fase acontece durante a reestruturação econômica do mundo após a Segunda Guerra Mundial: a necessidade de reconstrução dos países mais atingidos e de reposição de bens e serviços exige uma ampliação do consumo, assim como  a obsolescência programada das mercadorias. 

a terceira fase, com o capitalismo pós-moderno e o neoliberalismo, é marcada pelo uso massivo de tecnologias e meios de comunicação. O consumidor responsável, sujeito alvo de estudo do artigo, teria surgido nessa terceira fase da cultura do consumo e seria aquele que busca estabelecer um compromisso social com o produto. Ele se preocupa com o meio ambiente, problemas sociais, injustiças, entre outros.


O consumo na pandemia e depois

Durante a pandemia de Covid-19, o comportamento dos consumidores mudou drasticamente. O consumo começou a ser mais atrelado ao cuidado físico, sanitário e mental, uma vez que a maior preocupação da população nos momentos iniciais da pandemia era permanecer viva, segundo o estudo realizado pelos autores.

Em um primeiro momento, em março de 2020, a população depara-se com o lockdown.  No Brasil, a compra compulsiva e online aumenta, devido à “facilidade nas pesquisas, melhores preços e avaliação da loja e produto expostos para todos os usuários”, segundo o artigo. Entre o grupo de pessoas estudado, 7,5% comprou pela internet pela primeira vez em 2020, 16,5% comprou em um e-commerce que até então não conhecia e 50% considerou a experiência de compra positiva. Os pesquisadores chegaram à conclusão de que é pela internet que os novos padrões de consumo se estabelecem, assim como a transferência do consumo às mídias digitais, um processo previsto para acontecer a longo prazo, que acabou por ser acelerado em razão da crise sanitária.

Após o fim do lockdown, veio o “novo normal”. Foi um período marcado pela retomada de atividades que cessaram ou diminuíram durante o isolamento, como encontros sociais, visitas a lugares públicos e volta ao trabalho presencial (exceto aos trabalhadores que não pararam de exercer suas atividades fora de casa). Porém, o psicológico e imaginário coletivo já não eram mais os mesmos: foram diversas perdas “materiais, familiares e de saúde mental”, de acordo com os pesquisadores. Os consumidores passaram a se preocupar mais com a situação econômica do país e regular suas compras, uma vez que o desemprego também aumentou.

Segundo pesquisa realizada por Renata de Mello Franco e citada no artigo, “os mais impactados pelo distanciamento social foram as pessoas com renda de até R$ 2.100,00, tendo como principais preocupações desemprego (40,5%), redução de renda (30,5%), inflação (5,5%) e dívidas em atraso (13,7%)”. Entre março e maio de 2020, no início da quarentena, 54% dos brasileiros passaram a comprar apenas o essencial, e tomar decisões de compra mais saudáveis tornou-se uma prioridade: 70% das pessoas analisadas afirmou que iria “prestar mais atenção aos impactos ambientais e sociais dos produtos que adquirem”.

 

Foto de uma banca de produtos. Em primeiro plano, há uma mesa coberta com uma toalha xadrez azul e branco. Sobre a mesa há três suportes com cookies embalados. Da esquerda para a direita há duas  caixas de cookies e  placas com os dizeres “glúten e leite free” e “choco chip”. À direita há uma  mini-lousa escolar com os dizeres “Bono Cookies, integrais e glúten e leite free”, tendo à frente o terceiro suporte de cookies com uma tampa acrílica transparente. A mesa está em uma sala com paredes brancas, piso cinza e, ao fundo, há um extintor e portas para banheiros.
Banca de venda de produtos da rede Maternativa, uma startup de impacto social com foco em mães que trabalham, na feira de mulheres empreendedoras no Espaço Cultural Renato Russo, em Brasília (DF). Foto: Valter Campanato/Agência Brasil​​​. ​​

 

Negócios com impacto social geridos por mulheres

Os negócios de impacto social entram em cena quando a quantidade de consumidores responsáveis aumenta. Segundo o artigo, a propaganda publicitária não é mais suficiente para convencê-los a comprarem um produto ou serviço. Estes consumidores, que prestam mais atenção nos impactos ambientais e sociais do que consomem, “geram uma demanda específica para as marcas quanto aos modos de produção, responsabilidade trabalhista e consciência em relação a causas sociais”. 

O crescimento desse público gerou, de acordo com o estudo, aumento de 29,7% no número de empresas que oferecem esses serviços, em uma comparação entre 2019 e 2020. Esse mercado tem como público alvo pessoas em vulnerabilidade e o seu objetivo principal é resolver um problema social e/ou ambiental. Um estudo realizado pelo Instituto Akatu em 2018 e referenciado pelos autores afirma que este nicho de consumidores “é majoritariamente feminino e mais velho”.   

Segundo o artigo, “no Brasil, em levantamento do IBGE, identificou-se que 71,9% dos postos de trabalho encerrados em 2020, por razão da pandemia, eram ocupados por mulheres”. Semelhante a este fenômeno, somente 22% dos negócios socialmente responsáveis com liderança feminina receberam investimentos em 2022, sendo que, antes da pandemia, as mulheres chegaram a ocupar a liderança de negócios de impacto social de maneira equitativa aos homens. Ou seja, apesar das mulheres serem a maioria das financiadoras de transformações sociais através do consumo responsável, a falta de investimento em negócios liderados por mulheres evidencia a contradição que este mercado enfrenta: este setor se tornou menos diverso e refletiu a piora das condições de renda da população feminina durante a pandemia.

 

“O que os dados revelam é que se por um lado a população feminina foi a mais impactada na exclusão do mercado de trabalho formal da América Latina, elas também foram, consequentemente, as que mais fomentaram o consumo responsável. (...). Nesse mesmo processo, as mulheres também chegaram a ocupar, de maneira equitativa, a liderança de negócios com impacto social, contudo foram essas mesmas empresas que mais perderam financiamento durante o primeiro ano de pandemia.”

Bruna Soares Aguiar e Matheus Ribeiro Pereira, pesquisadores

 

A proposta do artigo é evidenciar que, embora surjam cada vez mais negócios de impacto social, enquanto mudanças estruturais não forem feitas para mitigar as desigualdades sociais que permeiam a sociedade contemporânea, esse tipo de negócio também reproduz, pelo sistema socioeconômico em que está inserido, essas desigualdades, e não é capaz, por si só, de acabar com as desigualdades que combate. Os autores incentivam a realização de mais estudos sobre o comportamento do consumidor, com o intuito de “revelar os processos de incoerência desses movimentos que narrativamente estimulam uma busca por igualdade, mas que na prática reproduzem as mesmas lógicas tradicionais do padrão de consumo.”

 

Revista Signos do Consumo

Imagem da capa da revista. Há formas geométricas em azul que remetem à garrafas, um celular, uma antena, um vestido e esferas, permeados por detalhes em amarelo e vermelho. No canto superior esquerdo, há o logo da revista com o seu nome, Signos do Consumo, e um código de barras. No canto inferior esquerdo, há o título da edição, Novas semiosferas e outros sentidos possíveis, seu volume, 15, e número,1.
Capa da última edição da Revista Signos do Consumo, publicada em julho de 2023. Imagem: Reprodução/ Signos do Consumo.

A Revista Signos do Consumo é publicada pelo Departamento de Relações Públicas, Propaganda e Turismo (CRP) da ECA USP. O volume 15, número 1, da Revista se baseia na máxima de McLuhan, onde “o meio é a mensagem”. Ou seja, a comunicação, por si só, produz signos e sentidos, e a criação de uma “semiosfera”, onde estes signos transitam entre a existência humana e os aparatos tecnológicos, gera ainda mais semiosferas com cada vez mais interpretações da realidade. Segundo os editores, “entendemos que tudo que comunica, que promove e divulga, existe para fazer o humano ir além dos limites de suas possibilidades físicas”.

Publicada no dia 26 de julho de 2023, a edição Novas semiosferas e outros sentidos possíveis reúne oito artigos, seis em português e dois em espanhol, e uma resenha. Entre os autores dos trabalhos, figuram dois ecanos. 

Carolina Boari Caraciola, pós-doutora em Comunicação pela ECA, participa com o artigo De Paraisópolis para o mundo: o vestido da Miss Universo e a potência da comunidade evidenciando o vestuário como manifestação sociocultural, abordando o vestido usado da vice-campeã da 69° edição do Miss Universo, criado por Michelly X e produzido pela Costurando Sonhos.

Alessandra Barros Marassi, pós-doutoranda em Ciências da Comunicação na ECA, produziu uma resenha referente ao livro O pensamento sentado - Sobre glúteos, cadeiras e imagens, de Norval Baitello Junior. O texto é intitulado O pensamento sentado e as imagens que invadem a vida do homem contemporâneo.

 

 


Imagem de capa: Festival Conecta Mulheres Empreendedoras, julho de 2023. Foto: Pierre Duarte/ Sebrae