CRP | Departamento de Relações Públicas, Propaganda e Turismo



A cafonice, a hipocrisia e a indiferença com o povo não têm limites, por Clotilde Perez

Docente da ECA comenta a instalação de um touro dourado em frente à sede da Bolsa de Valores Brasileira (B3), inspirado no touro de Wall Street

Comunidade
Clotilde Perez é uma mulher loira, com cabelos longos e, na foto (em preto e branco), está em pé e veste uma blusa estampada.
Clotilde Perez, docente do Departamento de Relações Públicas, Propaganda e Turismo. Foto: Divulgação/Casa Semio

Um touro dourado de mais de cinco metros de comprimento e uma tonelada surgiu em frente à sede da B3 – Bolsa de Valores de São Paulo ontem. Com muita emoção dos envolvidos e de alguns segmentos da mídia. Inclusive o idealizador Pablo Spyer, apresentador e influenciador digital, conhecido pelo mote “Vai, Tourinho”, manifesta ter sido “dos dias mais felizes da minha vida”, em agradecimento ao autor Rafael Brancarelli e aos patrocinadores B3, XP e Jovem Pan, sem os quais “o sonho não se tornaria realidade”. 

Bem, a pergunta que não pode deixar de ser feita: o que esse touro significa? O touro é um animal signo de força, poder e fecundidade. Mas, também é o típico animal de carga, no caso o boi, o touro castrado, muito utilizado na colheita, por isso sua associação com riqueza. Interessante notar que cattle (gado) e capitalism (capitalismo) partilham da mesma raiz. O touro também está associado ao imenso poder da natureza, muito além do controle humano, por isso era adorado como criatura divina em várias das primeiras civilizações. A fuga cega dos touros em debandada, com os cornos à altura do chão, os urros profundos e o corpo maciço, evocava trovões e sugeria a destruição de tudo que estivesse à frente. Nandi, o guardião de todas as criaturas nos templos de Shiva na Índia, recebe carícias em seus testículos cuidadosamente esculpidos, na esperança de gerar fertilidade para as mulheres, e quando estas recebem a dádiva, oferecem flores ao monumento bovino. O fascínio pelo touro está também presente na cultura taurina da região Ibérica, como herança do culto ao animal pelos povos mediterrâneos séculos aC, que o relacionavam diretamente a fertilidade. Na Idade Média ganha contornos distintos e a caça ao touro passa a estar vinculada a coragem e destreza, com espetáculos ritualísticos em momentos diversos como casamentos, nascimentos e outros. As touradas na Espanha ou a Farra do Boi no Brasil são manifestações desta tradição um tanto sádica.

Significa ainda uma cópia do famoso Charging Bull de Wall Street em NY, de autoria do escultor italiano Arturo Di Modica? Lembrando que o artista o fez em retribuição aos cidadãos e à cidade que lhe permitiu se desenvolver como artista, depois de ter passado por inúmeras dificuldades, bem diferente das motivações por aqui, é bom que se diga. Significa uma referência ao touro em frente à bolsa de valores de Frankfurt, representação plástica da metáfora do touro e do urso, comum no mercado financeiro? O touro com movimento de ataque de baixo para cima, simulacro da subida das ações, enquanto o urso com movimento de cima para baixo, portanto, uma representação do mercado em baixa. De onde surgem os termos bull market ou bullish, usados em tempos de subida das ações e bear market ou bearish, para os momentos de baixa.

Significa que nossa criatividade tropical e irreverente anda acanhada. Um touro construído em estrutura metálica e fibra de vidro (não em bronze como seus coirmãos gringos), com design simplificado, na cor dourada reluzente, produzindo o efeito de plástico, mais parecendo um brinquedo hiperbólico do que uma escultura que se pretendia vigorosa, afinal, é um touro. 

Significa nossa submissão estética, ética e comportamental. O touro dourado da B3 direciona seu olhar para baixo, está submetido, envergonhado, cabisbaixo, como nós?

Significa tudo isso e muito mais!

Significa o total desprezo pelos brasileiros. Ainda estamos em uma pandemia que deixou mais de 600 mil mortes e milhões de pessoas no Brasil e no mundo com sequelas de todo o tipo, além do sofrimento massivo sem precedentes. Estamos convivendo com mais de 14 milhões de brasileiros desempregados, com registros assustadores de todos os tipos de acometimentos psíquicos, com consequências que nem compreendemos o alcance. Estamos vivenciando a fome diante dos nossos olhos, com cenas de brasileiros em busca de ossos, carcaças e restos de alimentos nos lixos, em uma dramática ação pela sobrevivência. Importante ter em conta que, depois de 24 horas, o tal objeto de gosto comprometedor, surge com um aplique “FOME” e logo depois foi pichado com os dizeres “taxar os ricos”, manifestações claras de indignação.

Significa o estímulo a um fetichismo fálico sofrível, porque assim como em Wall Street, pessoas começaram a acariciar as genitálias do touro reluzente da B3 na busca de sorte financeira. Mau gosto, crendice e desespero.

Significa que a bolha do capitalismo improdutivo, emprestando uma referência do querido Ladislau Dowbor, segue na sua trajetória de indiferença com o povo que sofre e ainda pior, quer fazer crer que o tal touro dourado “traduz a força e a garra do brasileiro” ou ainda que expressa “a resiliência do investidor brasileiro”. Deveriam tirar “brasileiro” de suas considerações. Cafonice, hipocrisia e indiferença não têm limites.