50 anos de história: Silvia Ernestina Soares e seu trabalho na ECA USP
Colegas celebram meio século da funcionária da tesouraria da ECA e ela conta sobre a sua trajetória na Universidade

Foto: Camila Okamoto/ LAC.
Numa terça-feira de inverno, 14 de agosto de 1973, chegava a mais nova assistente da tesouraria da ECA USP: Silvia Ernestina Soares. Era o primeiro dos mais de 18 mil dias que ela viria a passar na Escola.
50 anos depois, no dia 10 de outubro de 2023, um evento organizado por amigas e colegas celebrou a sua trajetória na ECA. Funcionários de diversos setores da Escola — alguns com uma longa estadia e outros nem tão longa assim — homenagearam a dedicação de Silvia com discursos, certificado, mural de recados, comes, bebes e um slideshow com fotografias de momentos especiais que ela compartilhou com seus colegas ao longo das últimas cinco décadas.
Entre todas as falas, um ponto se repetiu: a credibilidade e gentileza que Silvia transmite no trabalho que executa. A colega da Assistência Financeira, Margareth Nicolau, expressa que apesar de inúmeras gestões da diretoria, Silvia não saiu do seu cargo pela grande confiança que seu trabalho inspira. “Ela sempre passou muita credibilidade, então trocava diretor, vinha diretor, mas ninguém queria tirá-la da tesouraria porque ela sempre passou essa confiança”.
Silvia também recebeu um certificado pelo tempo de trabalho, entregue pela assistente técnica administrativa Elaine Araujo, representante da Diretoria da ECA na ocasião. Com o certificado em mãos, o discurso da tesoureira foi simples e sucinto. Com a voz embargada, tudo o que disse foi “muito obrigada”, o suficiente para transmitir sua gratidão e arrancar aplausos.

A trajetória profissional do “tesouro”, ou tesoureira, da ECA
Silvia se formou na década de 1960 em secretariado na Escola de Comércio Álvares Penteado, hoje sediada no bairro da Liberdade. Ela escolheu o curso por conta da grade curricular que oferecia aulas de inglês, datilografia e taquigrafia, pois seus pais não teriam condições de pagar cursos extracurriculares dessas matérias. “Quando me formei, já sabia que eu não tinha pretensão de trabalhar como secretária. Foi mais pelo curso reunir essas três modalidades que teriam que ser separadas, e lá eu sabia que eu ia aprender alguma coisa”, relata.

Silvia Ernestina Soares. Foto: Isabel Teixeira/ LAC.
Após trabalhar quatro anos em um banco, Silvia prestou concurso junto com uma amiga para trabalhar na USP. Estudaram juntas e passaram na prova, mas a tesoureira confessa que não sabia a unidade em que queria trabalhar até chegar na fila de inscrição. “Era um concurso geral da USP. Quando estava na fila, eu não sabia nada do que eu ia escolher. Na primeira opção, eu coloquei Reitoria e na segunda eu coloquei ECA. Eu escutei alguém falar lá que a ECA era boa, que era uma boa oportunidade, e eu não conhecia nada. Ainda bem que eu vim pra cá”.
Quanto ao grande período de permanência no trabalho, Silvia, ou Silvinha para os mais próximos, conta que “foi ficando”. “Se perguntassem pra mim, eu diria ‘não, imagina, não vou ficar todo esse tempo’”. Trabalhando no mesmo lugar há cinco décadas, ela não deixa dúvidas de que gosta do que faz. “Se não gostasse, não ficaria todo esse tempo”, conta.
O acesso à sala de trabalho de Silvia é bem restrito. Somente pessoas que precisam fazer algum serviço em parceria com ela podem entrar. Nem mesmo as zeladoras, que limpam a sala, ficam com a chave. “Às vezes, as pessoas chegam e falam ‘você é muito chata’, mas eu tinha que cumprir o meu rigor no procedimento”, conta.
Esse rigor que se verifica com quem pode acessar sua sala, é semelhante ao cuidado que ela sempre teve com dinheiro e documentos financeiros. Caso alguma nota fiscal estivesse com rasuras ou não estivesse nos padrões exigidos, a responsabilidade diante do Tribunal de Contas do Estado (TCE) seria dela. “Eu fazia as exigências porque eu estava me preservando”.
Greve em plena ditadura foi momento marcante
Logo ao entrar na tesouraria da Escola, em 1973, Silvia conta que se deparou com vários holerites com nomes que ela não conhecia. Pessoas que recebiam seus salários, mas não estavam lá para pegar os comprovantes de pagamento. Eram docentes que estavam exilados.
A ditadura militar no Brasil, que perdurou de 1964 a 1985, marcou a ECA como um todo. Vários docentes foram perseguidos politicamente e, durante a fase mais dura da repressão, ocorreu o assassinato de Vladimir Herzog, professor temporário do Departamento de Jornalismo e Editoração (CJE), em 1975. Silvia diz que, quando entrou na USP, não teve a chance de conhecê-los. Somente em 1979, após a promulgação da Lei da Anistia, os professores exilados foram voltando aos poucos à Escola.
Um momento marcante, segundo a funcionária, foi a greve geral dos funcionários em 1979. Foi a primeira greve dos funcionários da USP desde o golpe militar de 1964, em um momento em que os sindicatos estavam ilegais e reuniões públicas como assembleias eram reprimidas pela polícia. Sua reivindicação principal era o aumento do salário dos trabalhadores da USP. Na época, março de 1979, o salário de um funcionário de nível médio — equivalente ao atual nível técnico — era 1800 cruzeiros, menos de um salário mínimo e meio.
A greve se deu na transição de governo entre o ditador Ernesto Geisel e o ditador João Figueiredo. Naquele momento, Paulo Maluf era o governador do Estado de São Paulo, e cabia a ele a responsabilidade sobre o reajuste de salário dos trabalhadores. Somente em 1989, com a conquista da autonomia administrativa e financeira, essa passa a ser uma atribuição da reitoria da universidade.

Foto: Ennio Brauns Filho, Acervo CSBH/Fundação Perseu Abramo.
A organização da greve teve início com um grupo pequeno de pessoas, do qual fazia parte Magno de Carvalho, que foi funcionário do CTR de 1977 a 2022 e um dos fundadores, em 1988, do Sindicato dos Trabalhadores da USP (Sintusp). Segundo Magno, após o presidente da Associação dos Servidores da USP (Asusp) se recusar a convocar uma assembleia dos trabalhadores da Universidade, ele e seus colegas se articularam com funcionários do Hospital das Clínicas, com a recém-fundada Associação de Docentes da USP (Adusp), e com setores do funcionalismo estadual de fora da USP — que também estavam se mobilizando naquele momento —, e convocaram assembleias que acabaram por deflagrar a greve na Universidade.
A paralisação durou cerca de um mês e Magno conta que, apesar de ter sido extremamente difícil mantê-la por conta da proibição de reuniões públicas e de agentes da ditadura infiltrados entre os trabalhadores, “nós tínhamos uma mobilização enorme”. O movimento na USP se somou à greve do funcionalismo estadual, que parou cerca de 300 mil dos 400 mil servidores públicos do estado. Na USP, com assembleias que tiveram quórum de mais de 3 mil pessoas, “foi certamente a maior greve que fizemos”, ele afirma. Silvia também foi participante ativa da greve. “Tinha assembleia quase todos os dias e eu vinha em todas e ficava o dia inteiro aqui”, comenta.
O desfecho da greve se deu com o aumento de 2 mil cruzeiros nos salários dos funcionários da USP, incluindo os docentes. Para os trabalhadores que recebiam os menores salários, isso representou um ganho significativo, de mais de 100% em relação ao salário anterior. “Praticamente dobrava o salário”, explica Sílvia. A paralisação foi considerada vitoriosa, apesar da reivindicação de 70% de reajuste não ter sido atendida.
Silvia diz que essa foi a única greve de que participou ativamente, mas sempre concordou com as outras greves que aconteceram. “Eu posso até ir em alguma reunião pra ver como é que tá, mas participar como aquela eu não participei mais nenhuma vez. É muito desgastante porque eles [a reitoria] têm a faca e o queijo na mão”, explica.
Sala 147 do primeiro andar: uma galeria de artes
Silvia, com 75 anos, produz trabalhos manuais em diversos materiais e formas. Ela pinta garrafas, quadros e borda toalhas, entre outras prendas. Suas obras têm como galeria as paredes da sala 147 do Prédio Central da ECA, onde trabalha.
A tesoureira, que tem a aposentadoria prevista para junho de 2024, explica que o tempo de isolamento social, ocasionado pela pandemia de covid-19, foi um termômetro para saber o que ela iria fazer depois de se aposentar. “Eu fiz mais de 100 brincos na pandemia”. Silvia conta que o artesanato é o seu passatempo, e que gosta muito de aprender coisas novas. Ela dá essas obras de arte de presente para pessoas próximas e também as vende por encomenda.
Desafios, paciência e adaptação
Silvia enfrentou alguns momentos difíceis no trabalho. Certa vez, um diretor da ECA colocou toda a seção financeira numa sala só, ocasionando um alto fluxo de dinheiro físico e a falta de segurança para seu armazenamento (é importante lembrar que pagamentos com cartão e transferências digitais são bastante recentes). Essa situação se estendeu por um ano e marcou bastante a funcionária, que conta que se sentia tensa o tempo inteiro. Nessa mesma gestão, Silvia teve que realizar seu trabalho com pessoas que não eram da área financeira e lidou com o risco de perder seu cargo como chefe da tesouraria.

Entre 1995 e 1996 Silvia teve que trabalhar praticamente sozinha. Mesmo após assumir o cargo de tesoureira, em 1993, os sistemas não eram informatizados, “era tudo na mão”, e os processos, que demandavam atenção redobrada, como distribuição de holerites, recebimento de taxas de pagamento, ressarcimento de notas fiscais e atendimento ao guichê, eram feitos quase que exclusivamente por ela.
Após esse período turbulento, chega uma nova funcionária. “Depois que a Margareth entrou ficou mais suave, né, porque dividia: ela atendia o guichê e eu ficava com a parte mais burocrática do serviço”, explica a tesoureira. O atendimento ao guichê era muito pesado, exigindo que as duas tivessem horários de almoço separados para não deixá-lo fechado. Só algum tempo depois que um horário de funcionamento do guichê com fechamento no almoço foi estabelecido e as duas colegas puderam passar a almoçar juntas.
Outra adaptação difícil foi a chegada do computador e a informatização dos sistemas financeiros da Escola.“Toda vez que eu mexia no computador ficava tremendo que nem uma vara verde. Teve um rapaz que veio trabalhar aqui, que trabalhou pouco menos de um ano e tinha feito um curso de informática, que me ensinou”, conta Silvia.
Mas nada se compara ao que aconteceu em 2001. Na madrugada do dia 2 de outubro, um incêndio atingiu o segundo andar do prédio central da ECA, que abrigava salas dos departamentos de Comunicações e Artes (CCA), Cinema, Rádio e Televisão (CTR) e informação e Cultura (CBD). Os alunos tiveram que ser remanejados para outras salas de aula e diversos documentos raros, dissertações e obras artísticas foram perdidos.
Silvia conta que, durante a contenção do incêndio, as salas do primeiro andar ficaram inundadas. “Tiveram que reformar muita coisa”, afirma. Foram dois anos de obras nos quais a tesouraria e o almoxarifado trabalharam juntos e Silvia relata falta de espaço e segurança para trabalhar. “Colocaram a gente no almoxarifado porque era um lugar de segurança. Não tinha iluminação suficiente, não tinha janelas e era o calor insuportável de outubro”, descreve.

Porém, ao enfrentar essas dificuldades no trabalho, Silvia também conta que o seu lema é: tudo passa. As eventuais reformas, sobrecargas de trabalho, transições da diretoria; todas são passageiras, mas o seu trabalho não. Ela acredita que a paciência é o segredo para atravessar esse vasto período de tempo no mesmo local de trabalho.
Silvia assistiu 12 diretores passarem pela ECA. Ela não ainda não era funcionária na fundação da Escola, mas quando ingressou conheceu as pessoas que estavam desde o início. Ela viu vários colegas se aposentarem, acompanhou as mudanças sócio-políticas da universidade, a construção de prédios, a mudança de perfil dos alunos e a introdução de computadores. Silvia é parte da memória viva da ECA.
Amigos e colegas falam de Silvinha

Foto: Elizabete Tiemi Kamiguchi/ LAC.
Para Roberto Elias Judgar, funcionário do quadro técnico administrativo da Escola de Arte Dramática (EAD), Silvia tem a habilidade de unir as comunicações às artes. “Ela é das comunicações por expressar o seu carinho por gestos e ações. Sempre une os funcionários e simboliza momentos como Natal e Páscoa, criando uma ocasião de partilha do momento presente. É das artes por se dedicar muito às suas produções manuais”, explica.
Quando Roberto entrou na ECA, em 1996, também criou uma memória afetiva com a Silvia. Ele precisava saber como comer no restaurante universitário e o orientaram a procurar o “tesouro da ECA” — ou seja, a tesoureira. Ele conta que Silvia foi tão prestativa e gentil com ele nesse primeiro encontro que se tornou o seu porto seguro. Quanto à interação profissional, ele relata que a funcionária sabe cobrar o que é necessário e tem um compromisso enorme com a sua função. Além disso, também está sempre muito atenta às demandas da EAD.

Margareth Nicolau entregando o certificado à Silvia
Foto: Isabel Briskievicz Teixeira/ LAC.
Margareth Nicolau, colega de setor de Silvia entre 1996 e 2018, diz que as duas construíram uma amizade sólida. Quando entrou na tesouraria, exercia a função de assistente, mas diz que nunca se sentiu subordinada à Silvia, como constava no papel. “A nossa relação de trabalho sempre foi horizontal, nunca com o tratamento de chefe e funcionária. Nós duas tínhamos um aprendizado mútuo, eu ensinava coisas pra ela e ela ensinava coisas pra mim”.
Há cinco anos, as duas amigas não trabalham mais juntas, já que o fluxo de trabalho da tesouraria diminuiu bastante. Margareth afirma que a Silvia tem pontos de vista muito diferentes dos seus e isso sempre contribuiu para construir melhor as suas próprias visões sobre o mundo.

* Nota da equipe LAC: Obrigada, Silvia, por toda sua contribuição. Ano que vem, faremos uma festa de despedida. Por enquanto, Feliz Natal e boas férias!