Como histórias e brincadeiras empoderam crianças umbandistas

Artigo da revista Novos Olhares investiga como brincadeiras e tecnologias auxiliam na resistência à discriminação religiosa 

Vida acadêmica

Com o objetivo de investigar como práticas lúdicas influenciam na formação da identidade de crianças umbandistas, a pesquisadora Maria Cristina Marques, professora doutora em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), desenvolveu a pesquisa que resultou no artigo Brincar e resistir: fotoetnografia do empoderamento de crianças em terreiros de umbanda contra o racismo religioso escolar. O artigo faz parte da última edição da revista Novos Olhares, integrando seu dossiê sobre comunicação e religião. 

O artigo parte do método etnográfico, onde o pesquisador mergulha na comunidade estudada. "Integrando a fotoetnografia como uma ampliação da etnografia, esse método emprega a fotografia para capturar elementos visuais que realçam e complementam a observação ativa", diz a autora. Além disso, são trabalhados o conceito de trauma cultural para entender como a discriminação vivida ou observada molda a identidade social de crianças, e o de campo-brincante, um espaço de livre expressão da ludicidade, e a sua importância para a vivência das crianças na religião. 

 

Marginalização e resistência dentro da escola

 

“Práticas religiosas são complexos atos de comunicação que influenciam na formação da sociedade.”

Maria Cristina Marques, doutora em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)

 

Durante a realização do estudo,  foram feitas visitas regulares e observações participativas a um terreiro de umbanda na Região dos Lagos, Rio de Janeiro. Nessas visitas foram documentadas meticulosamente as interações dessas crianças, com idades entre sete e onze anos, durante rituais e momentos de lazer dentro do espaço sagrado. O que chamou a atenção logo à primeira vista foi a seriedade que as crianças demonstram durante as práticas, como é o caso de Fabian, de 10 anos, fotografado ao realizar uma oferenda em uma cerimônia para o orixá Ogum. 

Foto de menino branco ofertando alimentos em uma tigela de barro. O menino está de perfil, com um olhar concentrado. À sua frente há uma tigela de barro e no fundo  há folhas de palmeira e, em parte, outra pessoa vestida de branco.
Fabian, de 10 anos. A fotografia não apenas documenta visualmente as atividades no terreiro, mas também serve como meio de expressão para as crianças, que frequentemente selecionam os momentos a serem fotografados. Para a autora, as imagens são usadas para contar a história dessa comunidade tanto em seus aspectos visuais quanto emocionais. 
Foto: reprodução/ Revista Novos Olhares.

Contudo, o espaço de acolhimento visto no terreiro pode não se reproduzir em outros espaços sociais, como a escola. Para Andresa, de 9 anos, a marginalização religiosa é um desafio diário. A menina  integra o terreiro fluminense e conta que era obrigada a participar das rezas da escola, mesmo não sendo cristã. A autora usa esse caso para ilustrar como a discriminação religiosa pode causar traumas culturais:

 

“Ao impor práticas religiosas cristãs e excluir outras crenças, a professora de Andresa cria um ambiente no qual as orações cristãs são a norma, enquanto as práticas de outras religiões são marginalizadas ou ignoradas.”

Maria Cristina Marques, doutora em Educação pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)

 

Esse trauma, diz Maria, “não emerge apenas de experiências imediatas”, vividas e vivenciadas, mas também é moldado pela memória coletiva e pelos discursos predominantes sobre raça. Em outras palavras,  as crianças aprendem e internalizam as normas sociais do ambiente em que vivem, incluindo aquelas que perpetuam discriminação e exclusão. E é nesse sentido que as práticas dentro do terreiro se tornam importantes para a formação das crianças. 

Ainda no caso de Andresa, a autora destaca a resistência da garota em não se submeter às rezas. “Não vou rezar porque não sou cristã, sou umbandista”, diz a menina sobre um dia em que se recusou a participar da oração. Após a recusa e com a intervenção da mãe da menina, as rezas deixaram de ser obrigatórias. “Quem quiser rezar, reza, quem não quiser, fique calada e ouça, apenas”.

 

O papel do brincar nas narrativas espirituais infantis

Desde o nascimento, o ato de brincar é essencial para o crescimento motor, cognitivo e social da criança, assim, a autora usa o termo “campo-brincante” para definir um espaço vital para as brincadeiras e para o desenvolvimento social das crianças. Além disso, ela define como “criante-brincante” as crianças que inventam brincadeiras, e como “criante-narrante” as que encontram em histórias e representações a sua forma de brincar. 

Foto de menino branco de cabelos lisos castanhos e curtos sorrindo. Ele veste uma capa preta sobre uma camiseta preta. O fundo é claro.
 Em seu brincar de “Super Exu”, Pedro não apenas se conecta ao pai, mas também incorpora e ressignifica os atributos da entidade dentro de sua própria narrativa. Foto: reprodução/ Revista Novos Olhares.

Pedro, uma das crianças do terreiro, antes de iniciar os rituais da gira de Exu, busca sua capa do Batman, que utiliza em casa para brincar. O menino imita a vestimenta de Exu de seu pai, quando em transe. Ao vestir a capa, Pedro transforma-se em “Super Exu”, um herói que ele associa à abertura de caminhos e à cura, refletindo sua admiração e respeito por essa entidade espiritual. Essa incorporação de valores é fundamental para a formação das crianças, pois constrói um senso de pertencimento e identidade em relação a sua cultura. 

Outro ponto destacado pela autora é a importância de dispositivos móveis e redes sociais para a preservação de práticas religiosas. Afinal, a presença de diferentes crenças e culturas nas redes favorece a transmissão de conhecimentos e práticas, que ficam salvas e disponíveis para quem deseja consultar. Além disso, essa presença combate a invisibilidade de religiões marginalizadas, o que evita situações como a de Andresa, onde uma certa crença é tomada como norma, excluindo as demais. 
 

 

Tradição e tecnologia construindo um futuro inclusivo

A pesquisa chega a conclusão que o brincar aliado ao contexto religioso fortalece a identidade das crianças e cria ferramentas simbólicas para resistir à discriminação. Além disso, notou-se que o respeito à diversidade religiosa dentro das escolas pode promover um ambiente educacional mais inclusivo e respeitoso, apontando a necessidade de políticas e estratégias de ensino e aprendizado que valorizem as culturas marginalizadas.  

Foto de grupo de cinco crianças sentadas em círculo. Em sentido horário, está uma menina negra de calça jeans e camiseta branca de cabelos cacheados, escuros e compridos, uma menina negra de calça e camisa branca e cabelos cacheados, escuros e de comprimento médio, uma menina branca de vestido branco e cabelos loiros, e dois meninos brancos de cabelos escuros de calça e camisa branca.
A rotina das crianças no terreiro tem espaço para a seriedade da devoção e para os momentos lúdicos, como brincar e conversar. Foto: reprodução/ Revista Novos Olhares.

O celular, além disso,  pode ser uma ferramenta de aprendizado e expressão religiosa. “Durante rituais e celebrações”, diz o estudo, “os celulares permitem capturar e compartilhar momentos de práticas espirituais, além de servirem como instrumentos para ensinar e aprender sobre a doutrina da religião de maneira interativa e engajada”. 

Por fim, tanto o espaço para o lúdico dentro dos terreiros, quanto a expressão da religião nas redes sociais prepara as crianças umbandistas para expressarem suas identidades religiosas de maneira confiante e respeitada, e isso fortalece a sociedade como um todo na valorização e proteção de suas diversas expressões culturais e espirituais. 
 

 

 

 

 

 

Revista Novos Olhares

Novos Olhares é uma revista acadêmica de publicação semestral, voltada a estudos sobre práticas de recepção a produtos midiáticos. O periódico é vinculado ao Programa de Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais (PPGMPA).

Em sua segunda edição no ano, a revista traz um dossiê temático sobre comunicação e religião. Nele, são investigados a presença de mensagens religiosas em espaços laicos, bem como o uso de teorias da conspiração nas narrativas religiosas, além de artigos que relacionam a religião com a comunicação nas redes sociais, como Do altar às mídias sociais: características da visibilidade midiática do padre Patrick Fernandes. 

 

 


Foto de capa: reprodução/Revista Novos Olhares