Como as transformações na música tornaram o sertanejo tão popular

Digitalização da música, modelo de negócios e público fiel abriram espaço para a ascensão do gênero, aponta pesquisa da ECA
 

Comunidade

O sertanejo vem dominando a cena musical brasileira já faz algum tempo. Se você não gosta desse tipo de música, sem dúvida conhece alguém que adora ligar o som para ouvir uma boa moda. Das 100 músicas mais ouvidas na história do Spotify Brasil, 55 são sertanejas. Já o Top 100 da Crowley de 2021, que lista as músicas mais tocadas nas rádios brasileiras, continha 66% de canções sertanejas. As primeiras quinze posições foram ocupadas por músicas do gênero. E não importa o que você pensa dele. No quesito popularidade, o sertanejo definitivamente tem amplo domínio sobre a música atual. 

Instigado por esse cenário, o pesquisador Breno Kruse decidiu escrever uma dissertação sobre o assunto. Desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais (PPGMPA) sob orientação do professor Eduardo Vicente, a dissertação foi intitulada A era do sertanejo: como a digitalização da música contribuiu para a explosão do segmento. Nela, Kruse aponta como o sertanejo foi galgando seu espaço, com ênfase no impulsionamento dado pelas transformações que a música sofreu com a internet. 

 

Nem sempre foi assim 

O sertanejo não é um estilo recente, muito pelo contrário. Suas origens são diversas e remontam ao início do século passado, partindo das tradições do interior paulista e mineiro até a guarânia paraguaia. A primeira gravação de uma música sertaneja data de 1929, feita por Cornélio Pires, um importante estudioso da cultura caipira. Nesse período, bem como durante boa parte das décadas seguintes, o gênero não dominava o país, ficando restrito ao interior, com uma penetração menor e mais específica. 

Kruse aponta um cenário musical bastante restrito até o fim dos anos 1980, em que as gravadoras controlavam os processos criativos e escolhiam o que iria ou não tocar nas rádios. Em um contexto de crise econômica que afetava a venda de discos de vinil, a prevalência recaía sobre o sertanejo, o rock, a música infantil e a música romântica. “A indústria tinha menos dinheiro, então começaram a investir em menos gêneros. Acaba uma década com muita criatividade [a de 1970] e se entra em outra na qual quatro estilos dominavam o cenário”, observa o pesquisador.

Mais tarde, já no princípio dos anos 1990, uma mudança alterou profundamente as estruturas do jogo: o compact disc, ou, simplesmente, CD. Anunciado à época como uma grande inovação tecnológica, que trazia um áudio de maior qualidade, o CD impulsionou a indústria musical. Enquanto isso, o disco de vinil continuou a ser fabricado e vendido nas lojas, o que fez com que as gravadoras lucrassem em cima de ambos os formatos. O bom resultado nas vendas permitiu que as gravadoras passassem a investir em selos independentes e artistas de fora do eixo Rio-São Paulo.

Em meados da década de 1990, a internet e o mundo digital começam a impactar a indústria musical. Em 1999, é lançado o Napster, uma plataforma que possibilitava o compartilhamento e download de músicas gratuitamente. Seis anos depois, o YouTube aparece. Com a maior facilidade de acesso e difusão de arquivos digitais de áudio e vídeo, o quadro é promissor e, mais do que nunca, aberto à diversidade musical. 

 

O domínio é estabelecido 

No fim dos anos 90 e começo dos anos 2000, abria-se uma grande porta no mundo da música, que agora tornava-se mais acessível e comportava mais estilos. De modo geral, isso foi uma coisa boa, pois permitiu o surgimento de artistas que provavelmente não viriam à tona em outra situação. E também foi uma oportunidade que os músicos sertanejos e seus empresários não deixaram escapar.

Em sua pesquisa, Kruse identifica alguns fatores que foram elementares para a poderosa ascensão do gênero. Além da abertura proporcionada pela digitalização da música,  a presença de um público preexistente foi fundamental. Nos anos 1990, com os Amigos, grupo formado pelas duplas Chitãozinho & Xororó, Zezé di Camargo & Luciano e Leandro & Leonardo, começa a se formar um circuito de shows muito sólido no meio que, amparado por uma bem-sucedida estratégia de marketing, vê um público cada vez maior e mais assíduo.

Festa do Peão de Barretos

foto área de uma multidão de pessoas durante a festa do peão de barretos

O Festival de Barretos é um dos maiores eventos de música sertaneja no país. No ano de 2019, movimentou R$ 900 milhões segundo a Secretaria de Turismo do Estado de São Paulo. Imagem: Reprodução/André Silva

 

“Isso começou a dar certo e nenhum outro estilo conseguiu se organizar para ter essa capacidade de estruturação do sertanejo”, explica Kruse. Eles passaram a investir pesado na divulgação de shows, algo que não era feito. Também houve uma profissionalização dos artistas envolvidos nesse setor. 

 


“Os sertanejos começaram a se tornar muito bons e ágeis em conseguir compositores, produzir e lançar música com uma frequência muito grande. Há um potencial criativo muito organizado e focado.” 
 

Breno Kruse, publicitário e mestre em Meios e Processos Audiovisuais pela ECA
 

 

Nesse contexto, as gravadoras foram perdendo o protagonismo para empresários e escritórios que se especializaram nesse estilo musical. Esse fenômeno, aliado aos outros fatores, fez surgir um modelo de negócios próprio da música sertanejo, que hoje envolve milhares de pessoas, mentes criativas que funcionam a todo tempo, e que gera muito, muito dinheiro mesmo, chegando a atrair fundos de investimento.

 

O passado e o futuro do sertanejo

O sertanejo de hoje definitivamente não é o mesmo do passado. Houve mudanças em relação às letras, aos ritmos, aos instrumentos utilizados e mesmo às personas dos cantores e cantoras. Para Kruse, porém, não se pode dizer que o sertanejo universitário e o de raiz sejam coisas completamente distintas. O pesquisador acredita que a linha histórica do gênero é um contínuo, ou seja, não é dividida em fases, pois essas diferenças são uma maneira do sertanejo se autorrenovar.

Ele cita o exemplo da dupla Tonico & Tinoco, que hoje é tida como tradicional, mas que na época inovou ao usar chapéus de cowboy e botas americanas. Já nos anos de 1970 e 1980, artistas como Milionário & José Rico e o Trio Parada Dura trazem novidades de uma música mais eletrônica, com teclados e sintetizadores. Depois deles, os Amigos e outras duplas agregaram ainda mais instrumentos, valendo-se de bandas completas em seus shows. Atualmente, o sertanejo se mescla com outros estilos, como o pop, o funk ou a pisadinha. 

Amigos

Foto de seis homens abraçados em cima de um palco, vestindo uma camiseta preta customizada com letras, de modo que na ordem em que eles estão dispostos, as letras formam a palavra amigos. Bem ao fundo estão várias pessoas vestidas de branco, as quais parecem integrar um coral. No centro e atrás dos cantores, encontram-se luzes amarelas de natal, dando forma à uma árvore de natal.

Amigos foi um especial de fim de ano da Rede Globo, que durou de 1995 a 1998 e rendeu uma série de lançamentos musicais. Imagem: Reprodução/Jornal de Brasília

 

Tudo isso mudou, sim. Mas sempre foi sertanejo. Como ressalta Kruse, “a imagem sertaneja continua sempre lá. Eles continuam sendo chamados de artistas sertanejos e sendo vistos pelo público da mesma forma”. Um ponto interessante que é possível observar nessas transformações é o fato de que elas sempre são recebidas com receio por parte do público. De Tonico & Tinoco a Gusttavo Lima, todos esses músicos tiveram que lidar com críticas que afirmavam que o que eles tocavam não era música sertaneja. Para Kruse, o que acontece é o contrário: ao se fundir com outros gêneros, o sertanejo atrai novas audiências e se mantém relevante no cenário musical.

No futuro, Kruse acredita que a música sertaneja continuará sendo a mais tocada nas rádios e a mais ouvida pelas pessoas. O mesmo vale para o circuito de shows, em que o gênero engole a maior fatia de público. O sertanejo é maior que todos os outros somados, na verdade. Mas o pesquisador também enxerga uma tendência de queda no grau dessa dominância. Para Kruse, “as pessoas começam a entender que não é só o sertanejo que pode estourar. Existem outros segmentos que podem fazer sucesso. Eu espero que no futuro o sertanejo continue sendo um dos grande ritmos do Brasil, mas não o único”. 

 

Música Ruim?

 

 
“É difícil diferenciar a música que você gosta da música boa.”
 

Breno Kruse, publicitário e mestre em Meios e Processos Audiovisuais pela ECA
 

 

Quem não gosta de sertanejo, normalmente não gosta mesmo, a ponto de preferir tapar os ouvidos quando uma música toca. Isso porque existe uma espécie de preconceito social e musical contra o sertanejo, que acaba sendo visto como ruim ou de menor qualidade em comparação a outros gêneros. Para Kruse, isso foi um incentivo para a realização da pesquisa.

O pesquisador conta que na própria academia enfrentou algumas ressalvas e olhares de desconfiança para seu objeto de pesquisa. Os argumentos eram do mesmo teor de outros que ele encontrou em outros lugares – o de que o sertanejo é uma música sem qualidade ou que o segmento universitário não é um sertanejo verdadeiro. “É um gênero que gera uma polêmica e uma visão superficiais, pois a questão do segmento musical mexe com as pessoas em um nível visceral", explica Kruse.

Superadas essas barreiras, o pesquisador terminou os seus estudos chegando à conclusão de que o sertanejo é um gênero diferenciado, que pode criar estratégias para se manter importante e dominante durante um longo período de tempo. Ele acredita que esse modo de lidar com o meio musical pode servir como aprendizado para outros gêneros, que podem desenvolver uma maior organização e um circuito de eventos que não fique restrito ao digital. Como diz a última frase de sua dissertação, o sertanejo foi capaz de “estar em todos os lugares onde a música acontece.” Talvez seja disso que os outros ritmos precisem para conquistar espaços maiores. 

 

Foto de capa: Portal G1